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SEMANÁRIO

A guerra na Ucrânia e a reatualização das tendências de crises, guerras e revoluções

Claudia Cinatti

A guerra na Ucrânia e a reatualização das tendências de crises, guerras e revoluções

Claudia Cinatti

A guerra na Ucrânia confirma que, com a crise capitalista de 2008, que pôs fim à prolongada hegemonia neoliberal, agravada pela pandemia e pela crise ambiental, abriu-se um período em que as profundas tendências da era imperialista de guerras, crises e revoluções (Lênin) estão novamente na ordem do dia.

Na década de 1920, Trotsky analisou as perspectivas da situação internacional em termos de "equilíbrio capitalista", conceito dinâmico que surgiu da tomada da situação internacional como um todo, uma relação dialética entre economia, geopolítica e luta de classes, para compreender as tendências mais profundas que poderiam quebrar esse equilíbrio instável.

Voltando a essas definições de Trotsky, as consequências estratégicas da guerra na Ucrânia indicam que, no mínimo, estamos diante de uma significativa deterioração (ou ruptura?) do "equilíbrio capitalista", o que significa que as margens para o desenvolvimento evolutivo são reduzidas e que as crises, o militarismo das grandes potências, assim como as tendências revolucionárias e contra revolucionárias, se inscrevem na lógica da situação.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia/OTAN é o fator gravitacional da situação internacional e continuará a sê-lo no próximo período. O fato de sua evolução e eventual resolução não poder ser prevista com precisão levanta a necessidade de abordarmos a análise da situação internacional com base em hipóteses e cenários que teremos de ajustar conforme o desenrolar dos acontecimentos.

Apesar desse importante grau de indeterminação, é claro que se trata de um conflito com uma dimensão estratégica que já produziu realinhamentos geopolíticos e viradas de dimensão histórica, como o rearmamento da Alemanha ou o abandono da neutralidade pela Suécia e Finlândia, que solicitaram sua incorporação à aliança atlântica hegemonizada pelos Estados Unidos.

No curto prazo, o governo de Joe Biden está capitalizando a guerra na Ucrânia, usando a invasão russa para restaurar a hegemonia dos EUA sobre as potências da União Europeia de olho em sua disputa com a China, que é o principal desafio à sua liderança. No entanto, a perspectiva de uma guerra prolongada, que parece ser o cenário mais provável, está estressando o bloco ocidental e gerando o conflito de interesses entre as potências imperialistas.

Mas, fora do “oeste”, a guerra também expôs os limites da liderança dos EUA. Os Estados Unidos não conseguiram o alinhamento automático de outros aliados importantes como Índia, México e Brasil, nem mesmo aliados estratégicos como Israel, que por diversas razões se absteve de se juntar aos Estados Unidos na votação contra a Rússia na ONU.

Em suma, no curto prazo, a guerra na Ucrânia permitiu o fortalecimento da liderança dos Estados Unidos, que havia sido enfraquecida pela sua retirada caótica do Afeganistão e pelos anos da presidência de Trump, mas por si só não é suficiente para reverter o declínio hegemônico e fundar uma "nova ordem mundial liderada pelo imperialismo norte-americano", como afirma Biden.

Em contrapartida à reorganização das potências ocidentais em uma frente "anti-Putin", foi formalmente estabelecida uma aliança entre a China e a Rússia, uma sociedade com projeção eurasiana fundada sobretudo na oposição à liderança dos Estados Unidos e não em interesses estratégicos compartilhados. Isso se manifesta no fato de que a aliança com a Rússia colocou a China em um lugar desconfortável, que não está interessada em uma guerra prolongada que a distancia de seus mercados europeus e coloca em questão sua ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota. Por isso, o governo Xi Jinping tenta manter uma posição relativamente ambígua na guerra na Ucrânia, apoiando Putin em sua justificativa para a invasão e principalmente no campo econômico para contrariar as sanções, mas sem jogar pela Rússia, como fazem as potências imperialistas, por trás do governo Zelensky.

A dimensão global da guerra ultrapassa a esfera geopolítica

As sanções econômicas que os Estados Unidos e as potências da União Europeia impuseram à Rússia, e o fato de a guerra envolver dois dos principais exportadores de grãos (e, no caso da Rússia, de petróleo, gás e fertilizantes) se traduziram em um choque imediato para a economia mundial, que ainda estava se recuperando de forma desigual da depressão induzida pela crise de saúde do coronavírus.

A inflação, que já vinha em alta, entre outros problemas devido às interrupções nas cadeias produtivas e às características da recuperação pós-pandemia, está atingindo níveis recordes nos países centrais. Teve média de 7,5% na zona do euro (com picos como 11,9% na Holanda, 9,5% na Espanha) e chegou a 8,5% nos Estados Unidos, as taxas mais altas das últimas quatro décadas.

Funcionários do FMI, presidentes e primeiros-ministros de potências imperialistas e até mesmo a grande burguesia reunida em Davos anunciam recessões, catástrofes alimentares, fome e crises de dívida nos países emergentes. As medidas de restrição monetária, como o aumento das taxas de juros, que o Federal Reserve dos Estados Unidos e outros bancos centrais vêm implementando para controlar a inflação, tornam palpável a ameaça de "estagflação", ou seja, estagnação econômica com inflação. Nesse contexto, a desaceleração do crescimento chinês, agravada pela política "zero covid" de Xi Jinping, e as restrições comerciais (sanções, tarifas etc.) colocaram de volta no horizonte a perspectiva sinistra de uma recessão global, embora por enquanto essa não seja a situação. Os mercados ecoaram esses temores com quedas significativas de ações, especialmente de empresas de tecnologia.

A guerra aprofundou tendências que já vinham se desenvolvendo. O esgotamento (ou pelo menos a profunda crise) da globalização neoliberal, revelada com a Grande Recessão de 2008, deu origem ao surgimento de tendências nacionalistas e protecionistas nos países centrais –Trump nos Estados Unidos, Brexit e tendências soberanas na UE –, cuja base social e eleitoral são os setores prejudicados pelas políticas globalizantes. O avanço norte-americano sobre a Europa provavelmente alimenta o desenvolvimento dessas tendências pró-independência (de direita, mas também de esquerda).

No entanto, persiste uma profunda internacionalização do capital, tanto na produção (cadeias de valor) como no comércio, finanças, comunicações, em constante reconfiguração. A estagnação econômica gera, nessa estrutura complexa, maior competição entre Estados e empresas por espaços de acumulação, gerando lacunas entre as próprias classes dominantes, diferentemente do momento mais hegemônico da globalização neoliberal (entre os anos 90 e 2008).

A burguesia está preparando medidas para que os trabalhadores sejam os que paguem pela crise, atacando os salários e o emprego. Seus economistas argumentam abertamente que é necessário reduzir os salários e aumentar a taxa de desemprego para reduzir a inflação e restaurar a lucratividade. Mas, como outros economistas, incluindo aqueles de convicção ideológica oposta, como M. Roberts e Adam Tooze, mostraram, o que impulsiona a inflação nos Estados Unidos não são os salários, mas o lucro das empresas.

A guerra na Ucrânia agravou as condições criadas pela pandemia, que aprofundou a desigualdade social e tornou a vida mais precária para milhões de trabalhadores, enquanto um punhado de ricos aumentou seus lucros em maior escala do que nas últimas duas décadas.

Esta situação explosiva está criando as condições para explosões sociais, motins de fome e aumentos de preços, mas também lutas do movimento sindical organizado. A rebelião operária e popular no Sri Lanka contra a austeridade, as lutas camponesas no Peru, as greves selvagens agora circunscritas, mas sem precedentes, dos petroleiros na Grã-Bretanha e, sobretudo, o processo de lutas e organização de uma vanguarda estendida do movimento operário nos Estados Unidos, esses são alguns sintomas de que a luta de classes será um ator nesta nova etapa convulsiva.

É neste quadro que devemos entender o significado da guerra atual. Não é que não tenha havido guerras antes. Ao contrário. Com a vitória americana na Guerra Fria não veio uma era de "globalização pacífica". Além das guerras imperialistas no Iraque e Afeganistão (e a guerra contra o terrorismo como estratégia) houve e há múltiplos conflitos regionais (Iêmen, Israel-Palestina-Líbano) com a intervenção de grandes potências, como a guerra civil na Síria . Mesmo guerras terríveis em solo europeu como as guerras dos Balcãs. Mas, em geral eram, guerras assimétricas ou conflitos circunscritos. A guerra na Ucrânia é um salto dessas guerras por causa de sua dimensão global e porque envolve as duas grandes potências nucleares e contendores na Guerra Fria.

Sobre o caráter da guerra

Antes de desenvolver os elementos de análise, parece-nos importante sintetizar a definição da natureza da guerra, visto que se trata de um fato complexo que dividiu a esquerda em nível internacional e abriu uma discussão programático-estratégica fundamental.

A invasão da Ucrânia pela Rússia tem um caráter profundamente reacionário, uma ação típica do "imperialismo militar", embora, pela escala de sua economia e seu papel no sistema mundial, a Rússia não seja uma potência imperialista. Esta invasão e guerra ocorre no contexto geopolítico e histórico de uma política hostil dos Estados Unidos em relação à Rússia, expressa na expansão da OTAN para leste, e em particular na relação estabelecida entre os Estados Unidos (e a UE) com a Ucrânia, após o levante Maidan de 2014, sem o qual não pode ser entendido.

Historicamente, a política externa do imperialismo norte-americano foi pautada pelo objetivo de impedir o surgimento de uma "hegemonia hostil" que pudesse desafiá-lo pela liderança mundial. Essa política tinha dois objetivos centrais: o primeiro, impedir uma aliança entre a Europa (particularmente a Alemanha) e a Rússia. Nesse sentido, a OTAN é o braço militar da hegemonia dos EUA na Europa. O segundo objetivo, evitar um bloqueio entre a Rússia (e antes da URSS) e a China. Essa política se materializou no pacto entre Nixon e Mao em 1972, que foi muito importante para o desenvolvimento da Guerra do Vietnã.

Com esses objetivos em mente, após o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética, os Estados Unidos continuaram uma política de cerco à Rússia através da expansão da OTAN que dobrou seus membros, incorporando grande parte das ex-repúblicas soviéticas . Essa hostilidade aumentou com a chegada ao poder de Putin no ano 2000 e incluiu a promoção por Washington de movimentos de oposição a governos próximos ao Kremlin para trocá-los por outros, pró-ocidentais, conhecidos como as "revoluções coloridas" (Ucrânia 2004- 2014, Geórgia, etc.).

Em seu livro The Grand Chess Board of the World (1997), Zbigniew Brzezinski, um dos arquitetos da política externa dos EUA, argumentou que a capacidade dos Estados Unidos de exercer sua primazia dependia de impedir o surgimento de uma "potência eurasiana dominante". Nessa estratégia, a Ucrânia foi peça chave para a “contenção” da Rússia. A política proposta por Brzezinski, em 2014, consistia em armar a Ucrânia, mas não incorporá-la à OTAN.

Para impedir a ascensão da China, Obama iniciou o que chamou de "pivô para a Ásia", que envolvia o reforço da presença militar dos EUA no Indo-Pacífico (ou seja, a vizinhança marítima da China) e o estabelecimento de alianças de segurança e tratados comerciais com vizinhos asiáticos para isolar a China. Trump aprofundou a linha anti-China e lançou uma guerra comercial contra Pequim que, essencialmente, continua na presidência de Biden.

Desde 2017, a principal hipótese de segurança nacional para o Estado norte-americano é a rivalidade com a China e Rússia (e secundariamente o Irã) que chama de “potências revisionistas”; isso significa que são potências que buscam minar a "ordem liberal" comandada pelos Estados Unidos sem ainda ir a um confronto direto e global.

A dinâmica que a guerra na Ucrânia estava tomando, em particular os tropeços iniciais do exército russo, fez com que os Estados Unidos a percebessem como uma oportunidade estratégica para enfraquecer a Rússia, colocar a União Europeia sob seu comando através da revitalização da OTAN e posicionar-se no disputa com a China alinhando seus aliados nessa luta pela hegemonia.

Por esta razão, embora do ponto de vista das ações militares tenha permanecido limitado ao território ucraniano (ou seja, não estamos mais diante de uma "terceira guerra mundial", como alguns dizem), é um conflito de dimensão internacional. Tanto os Estados Unidos como o resto das potências europeias não intervêm diretamente com "botas no terreno" - ou seja, não há guerra entre a Rússia e a OTAN - mas, sem cruzar a "linha vermelha" do confronto militar direto, o imperialismo norte-americano, através da OTAN, desempenha um papel de liderança político-militar do lado ucraniano com base em seus próprios interesses: enfraquecer a Rússia e alinhar seus aliados em sua disputa com a China. Isso faz com que tenha elementos de uma "guerra de proxy" (proxy war). Além de armar a Ucrânia, a outra ferramenta de “guerra” dos Estados Unidos e da UE são as sanções econômicas contra a Rússia, que buscam afogar a economia russa e encurralar o regime de Putin, mas que, como veremos mais adiante, são uma faca de dois gumes.

A partir dessa posição independente e anti-imperialista, contra a invasão russa e contra a OTAN, polemizamos tanto com o setor da esquerda "campista" alinhado com a Rússia (e China) por suas contradições com o imperialismo norte-americano, quanto com o setor da esquerda esquerda que considera que uma "guerra de libertação nacional" está em curso, sem ver que os Estados Unidos e todas as potências imperialistas atuam por trás do governo Zelensky e, portanto, sua vitória fortaleceria o imperialismo.

Também com posições como a do Partido Obrero de Argentina que, embora levante a necessidade de se opor à invasão russa, define que o principal é que se trata de uma guerra imperialista (dos Estados Unidos e da OTAN) para completar a restauração capitalista na Rússia, o que o leva a manter uma posição incoerente, pois caso a Rússia mantenha, ainda que de forma degradante, o caráter de Estado operário, o PO deveria alinhar-se ao campo russo, ao lado do caráter reacionário do regime autocrático de Putin.

Ao contrário de outras guerras que tiveram claramente um caráter imperialista, como a guerra no Iraque, desta vez não surgiu um movimento antiguerra e os governos ocidentais chegaram a um consenso para a interferência da OTAN, disfarçada de argumentos humanitários e de defesa da Ucrânia.

O alinhamento de grande parte da esquerda com a política imperialista – mesmo com o envio de armas pela OTAN e sanções – vai contra o surgimento de um pólo independente para além de algumas pequenas ações de vanguarda.

Sobre a dinâmica da guerra e possíveis cenários

De um modo geral, a guerra até agora teve dois momentos

A hipótese de uma blitzkrieg vitoriosa pela Rússia – uma invasão massiva em torno das grandes cidades, incluindo Kiev, levando à queda ou capitulação do governo Zelensky – não ocorreu devido a uma combinação de fatores, entre eles, que Putin encontrou uma resistência ucraniana maior do que a esperada, aumentada pela assistência da OTAN, e que o exército russo apresentava falhas logísticas e estratégicas significativas, o que significava baixas e perda de material militar.

Com o cenário de uma blitzkrieg descartado, o conflito entrou em uma segunda fase concentrada na região de Donbas e no sul da Ucrânia. Esta segunda fase assumiu cada vez mais as características de uma guerra de desgaste, com o exército russo avançando lentamente e de modo custoso. Até agora, a importante vitória que Putin alcançou é a conquista de Mariupol, uma posição valiosa porque privou a Ucrânia do acesso ao Mar de Azov e porque estabeleceu uma ponte terrestre entre Donbas e a Crimeia, dando unidade territorial à ocupação russa. A partir desta posição da Rússia, abrem-se diferentes possibilidades: que Putin busque consolidar o controle do território que já conquistou. Que a partir dessas conquistas continue avançando em direção à Moldávia, a oeste, nas fronteiras da Romênia, ou seja, da UE. Ou que, como resultado da combinação de fatores militares, econômicos e políticos, existam outras variantes intermediárias.

Não é possível saber exatamente o estado da frente russa nem o apoio econômico (e político) de Putin para sustentar o esforço de guerra, mas tudo indica que a Rússia não está encurralada e que a propaganda ocidental exagera as fraquezas do exército russo para criar o impressão de que caminha para uma derrota retumbante. Ao mesmo tempo, esconde a situação do exército ucraniano. Embora as sanções sejam um golpe, a economia russa não afundou imediatamente, embora se estime que seu PIB se contraia entre 7 e 15%. O governo tinha uma política para estabilizar o rublo e tentar conter a inflação. E o estado aumentou sua receita com as exportações de petróleo, que até aumentaram, permitindo que Putin demagogue e conceda aumentos de salários e pensões para manter sua base enquanto ele persegue duramente qualquer oposição à guerra. Para uma possível negociação, ele tem o cartão para levantar o bloqueio naval no Mar Negro, que impede a saída das exportações de grãos da Ucrânia, em troca do levantamento das sanções.

Dos três cenários lógicos, há dois que aparecem como os menos prováveis.

O cenário de uma vitória ucraniana, entendida como a retirada das tropas russas das novas posições, ou como sugerem os mais belicosos, dos territórios que anexou e/ou ocupa desde 2014, está praticamente descartado. Embora tenha havido uma mudança discursiva dos Estados Unidos e seus aliados mais próximos na OTAN, como a Grã-Bretanha, de uma posição “defensiva” para dizer que “a Ucrânia pode vencer”, essa não é uma perspectiva realista. Este discurso baseia-se na manutenção do conflito e do fluxo de armas e financiamento à Ucrânia para que a guerra possa continuar, política que é promovida sobretudo pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Polónia e países bálticos.

Embora não possa ser categoricamente descartado, também não parece provável uma escalada e maior internacionalização dos confrontos militares, por exemplo, que os Estados Unidos ou a OTAN tenham decidido atacar diretamente o território russo. Ou que Putin ataque algum membro da OTAN. Uma guerra aberta entre a Rússia e a OTAN levantaria objetivamente a possibilidade do uso de armas nucleares.

Com base nos elementos que temos vindo a analisar, o cenário mais provável que vemos é o de um conflito prolongado devido a uma relativa estagnação do ponto de vista militar, e porque nenhuma das partes consideram que chegou o momento de negociar, posto que esperam melhorar sua posição no campo de batalha.

Esta situação, aliás, é sobre-determinada pela política belicista dos Estados Unidos, que por enquanto considera que o tempo está jogando contra a Rússia e a favor de seus próprios interesses. A magnitude do financiamento para a Ucrânia, aprovado pelo Congresso dos EUA em maio, indica que os Estados Unidos estão se preparando para uma longa guerra (ou pelo menos alguns meses). Este pacote de 40.000 milhões de dólares (que devem ser adicionados aos 13.000 milhões anteriores) destina-se fundamentalmente ao financiamento militar, com apenas 8.000 milhões para ajuda econômica e 900 milhões para refugiados ucranianos nos Estados Unidos.

O prolongamento do conflito também está colocando a Casa Branca em um dilema: quanto mais adiar a negociação, aumentará não apenas a destruição da Ucrânia, as vítimas civis e as consequências da guerra na economia internacional, mas também a probabilidade de Putin sair com uma porção de território maior do que ele tinha sob seu controle antes de 24 de fevereiro. Isso seria interpretado como uma vitória certa para a Rússia (mesmo que não seja o tipo e a magnitude da vitória que Putin buscou) e um sinal de fraqueza na aliança ocidental. Por esse motivo, alguns analistas sugerem que poderia permanecer como um conflito mais crônico na região de Donbas (ou estendido ao sul da Ucrânia) sem a assinatura de um acordo formal de paz, que alguns analistas comparam ao fim da guerra da Coréia.

O governo Biden intensificou a retórica belicista, mas além do objetivo vago de “enfraquecer a Rússia”, não definiu claramente seus objetivos estratégicos. A principal contradição dessa política é que ela dificulta qualquer negociação com Putin envolvendo concessões territoriais, que segundo a maioria dos analistas é a única maneira de acabar com a guerra. Um setor do establishment, referenciado pela corrente conservadora "realista" - que tem Henry Kissinger e Richard Haass entre seus referentes - considera que essa indeterminação estratégica faz o governo Biden deslizar para uma política de "mudança de regime", o que seria perigoso para o interesses do imperialismo norte-americano, não só pela perspectiva de uma guerra eterna (como as do Iraque e do Afeganistão, mas com a segunda potência mundial), mas sobretudo pelas consequências de um possível desmantelamento não só do regime de Putin, mas do Estado russo. Eles argumentam que a Rússia, mesmo, governada por um autocrata como Putin, tem valor como reduto conservador e que seria um erro visar sua destruição. Em certo sentido, este setor anti-neoconservador coincide com a política que a Alemanha, a França e a Itália vêm formulando, que tendem a evitar a humilhação da Rússia e abrir uma negociação com Putin antes que seja tarde demais, o que implicaria fazer a Ucrânia concordar conceder território. É nesse contexto que Biden recentemente apontou em um artigo do New York Times que os EUA não tentarão provocar a queda do regime na Rússia, voltando atrás no que ele havia insinuado na época em seu discurso em Varsóvia.

As rachaduras na frente ocidental

No curto prazo, a invasão russa teve o efeito de revitalizar a OTAN, que, como dissemos acima, estava em crise devido à política de Trump a ponto de Macron, o presidente francês, a ter diagnosticado como "morte cerebral".

Ao contrário da fraca resposta das potências ocidentais quando Putin anexou a Crimeia em 2014, o governo dos EUA desta vez impôs uma política de duras sanções econômicas contra a Rússia, obrigando a Alemanha (e a UE) a repensar sua dependência energética da Rússia. Além disso, a Alemanha abandonou seu tradicional “pacifismo”: o governo social-democrata Scholz ordenou um aumento sem precedentes no orçamento militar e iniciou o rearmamento do imperialismo alemão, por enquanto a serviço da OTAN. Suécia e Finlândia, dois países que optaram pela neutralidade – Suécia no século 19 e Finlândia depois de derrotada pela União Soviética – formalizaram seu pedido de adesão à OTAN.

Este notável avanço da presença dos Estados Unidos na política europeia levou o sociólogo alemão Wolfgang Streeck a afirmar que o “rei está de volta” e que assumiu a política (e os orçamentos) europeus. No entanto, à medida que o conflito se espalha ao longo do tempo, a foto da “unidade do Ocidente” comandada pelos Estados Unidos começa a envelhecer.

O cenário de uma guerra mais longa do que o esperado está afetando a unidade das potências ocidentais.

O endurecimento das sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos atingiu o limite de que são as potências europeias as que mais sofrem as consequências dessas sanções devido à sua dependência energética da Rússia.

Embora Bruxelas venha discutindo planos graduais para reduzir suas importações dessas commodities, suas principais economias, em especial a Alemanha que já se contrairá em função da guerra, não podem cortar o fornecimento sem entrar em profunda recessão. Assim, os governos da Alemanha e da Itália, em discussão com a UE, criaram um mecanismo duvidoso para que as empresas possam abrir contas em rublos, supostamente sem violar sanções, para pagar as importações de gás russo.

O embargo total ao petróleo e gás russos está bloqueado na União Europeia, que só pode aprovar tal medida por unanimidade. Hungria e Eslováquia, que dependem 100% da energia russa e não têm portos ou dutos que lhes permitam fontes alternativas de abastecimento, vêm vetando a medida. Eles finalmente chegaram a um consenso sobre um embargo parcial de petróleo – deixando o gás de fora – após semanas de cúpulas fracassadas e negociações árduas (com exceções para o petróleo que passa por oleodutos como Druzhba para a Hungria, República Tcheca e Eslováquia).

As divisões vão além das sanções e do problema energético. Por trás das diferenças sobre se a Ucrânia deve ou não concordar em fazer concessões territoriais nas negociações de paz está a preocupação com os riscos de uma guerra prolongada e, em última análise, as diferenças sobre o papel da Rússia na segurança europeia.

De acordo com The Economist, a Europa começou a se dividir em dois blocos sobre as condições para acabar com a guerra. Um bloco, que chama de “partido da paz”, é formado por França, Itália e Alemanha, que vêm propondo, com diferentes argumentos e intensidades, a necessidade de parar a guerra agora e iniciar uma negociação. E outro bloco que chama de “partido da justiça”, formado pelos aliados mais fiéis dos Estados Unidos – Grã-Bretanha, Polônia e países bálticos – que defende que a Rússia tem que pagar um alto preço pela invasão.

Essas diferenças estão abertas. Macron, que não abre mão de sua aspiração pela "soberania europeia", lembrou que a Europa "não está em guerra com a Rússia" e alertou que "humilhar a Rússia" seria um erro semelhante ao cometido pelas potências vitoriosas com a Alemanha no final da Primeira Guerra Mundial.

Mario Draghi, o primeiro-ministro italiano, levantou com Biden durante sua visita a Washington que um caminho de negociação deve ser encontrado o mais rápido possível. E ele já circulou um plano de quatro pontos para um acordo político com Putin para acabar com a guerra. Além de razões geopolíticas e interesses econômicos, uma das motivações de Draghi é manter a unidade de sua heterogênea coalizão de governo, que tem uma ala mais abertamente pró-Rússia (integrada, entre outros, pelo Movimento 5 Estrelas) que se opõe fortemente ao envio de armas letais para a Ucrânia.

Potências menores, mas com aspirações e interesses próprios, como a Turquia, percebem que podem explorar essas brechas para perseguir seus objetivos. Nesse sentido, o presidente turco Recep Erdogan questionou a incorporação da Suécia e da Finlândia à OTAN, que só pode ser aprovada pelo consenso de todos os atuais membros. Em troca de não vetar a entrada dos países nórdicos, Erdogan pretende negociar a extradição para a Turquia de cerca de 30 membros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) que atualmente vivem na Suécia. O desafio turco encorajou outros países menores, como a Croácia, que fez uma observação semelhante: em vez disso, pede que a lei eleitoral na Bósnia Herzegovina seja modificada para melhorar a representação dos croatas bósnios. Não está claro se a relação de forças dará a Erdogan poder para sustentar a chantagem ou se acabará se conformando com alguma compensação, mas o simples fato de ele ter um dos sucessos mais retumbantes da OTAN na balança já mostra a magnitude dos problemas.

A política dos membros fundadores da UE para evitar que membros secundários tenham o poder de impedir suas decisões é eliminar a decisão por consenso e resolver por votação majoritária e minoritária. Mas essa reforma institucional também exigiria unanimidade para ser aprovada.

No futuro, a preocupação das grandes potências é continuar incorporando países como Ucrânia ou Moldávia à UE, o que aumentariam o risco de instabilidade no bloco. Diante disso, Macron propôs uma espécie de "sala de espera" ou uma "liga B" de membros que não entrariam na UE, mas sim a uma espécie de comunidade de segunda classe.

Outra bomba-relógio são os milhões de refugiados ucranianos absorvidos principalmente pelos países da UE, muitos dos quais não terão para onde voltar se a guerra continuar.

Claramente, Putin está apostando que essas divisões se aprofundarão à medida que o conflito se prolongar.

As contradições do imperialismo norte-americano

Como dissemos acima, a invasão da Ucrânia pela Rússia deu aos Estados Unidos a oportunidade de fazer uma demonstração de poder, com base nos dois pilares tradicionais da hegemonia estadunidense: o Pentágono (que arma e treina o exército ucraniano) e o dólar.

Sem dúvida, o governo Biden está aproveitando esta oportunidade para recompor a liderança americana, mas, como demonstrado em várias iniciativas, encontra dificuldades para impor seus objetivos, em um mundo muito diferente daquele do imediato pós-Guerra Fria, no qual não só a China despontou como principal concorrente, mas também potências regionais com certa capacidade de agir em busca de seus interesses. De um ponto de vista, os Estados Unidos foram muito bem sucedidos em alinhar o “Ocidente” (que inclui, além da UE, Japão, Austrália e Coreia do Sul) em sua política antirrussa. Mas, ao mesmo tempo, não conseguiu a adesão perfeita da América Latina (muito menos da Ásia e da África). E também não conseguiu a colaboração de aliados tradicionais como Arábia Saudita e até mesmo Israel, que prioriza a segurança proporcionada pela Rússia ao colocar ordem na Síria. Isso ficou evidente nos votos das Nações Unidas, que são o termômetro do alinhamento político. Um importante grupo de países, entre os quais Índia, África do Sul, Brasil e México (que coincide amplamente com os BRICS e o que se chama de “sul global”, com exceção do governo argentino que se submeteu a Washington) não se alinharam com a frente antirrussa. Embora cada um tenha seus interesses particulares que não necessariamente coincidem, como um todo há uma poderosa razão compartilhada, que não é legitimar uma interferência que poderia ser usada contra eles amanhã. Ainda menos consentir com o poder dos Estados Unidos de confiscar reservas cambiais, como fez com metade das reservas em dólares da Rússia, nada menos que cerca de 350.000 milhões nessa moeda.

Isso tem levado alguns analistas a falarem do surgimento de um novo “movimento não alinhado”, embora a analogia não pareça adequada, especialmente considerando que, ao contrário da Guerra Fria, a maioria dos países desenvolveu uma “dependência cruzada” dos Estados Unidos, China e Rússia, por isso vão mudando de posição, gerindo seus alinhamentos com base em interesses econômicos, de segurança ou mesmo afinidade política. Isso dificulta o estabelecimento de um bloco mais ou menos permanente com uma liderança reconhecida.

Biden está buscando “estender a OTAN ao Indo-Pacífico” e, para isso, empreendeu uma turnê pela Ásia para revitalizar o relacionamento com seus aliados contra a China. A política de Biden foi usar a resposta ocidental à Rússia como uma advertência contra a China. Ele disse que os Estados Unidos defenderiam Taiwan militarmente caso fosse atacada pela China, e ficou prestes a abandonar a "ambiguidade estratégica" pela qual os Estados Unidos reconhecem que há "uma só China" sem decidir sobre o status de Taiwan.

Mas se a política de isolamento da Rússia está deixando o mundo à beira de uma crise alimentar, o objetivo de “dissociar” a China, que é o principal parceiro comercial de praticamente todos os países, parece ser diretamente inatingível.

Biden anunciou o lançamento do chamado "Quadro Econômico Indo-Pacífico para a Prosperidade", um bloco comercial para combater o avanço econômico da China, composto por 13 países, incluindo Japão, Austrália, Índia, Indonésia, Filipinas e Coréia do Sul. No entanto, esta iniciativa não é um acordo de livre comércio, não reduz tarifas ou outras barreiras comerciais, não implica acesso preferencial ao mercado norte-americano. Em suma, está muito longe da linha "hegemônica" do Tratado Transpacífico e não oferece uma alternativa comercial à China. O eixo da política dos EUA continua a ser o de fortalecer alianças militares como o Quad ou "quadrilateral" de segurança que com Austrália, Japão e Índia (hoje mais próximo do lado russo na guerra na Ucrânia) e ao qual provavelmente será integrado a Coréia do Sul

A crise ainda não resolvida em torno da "cúpula das Américas" também mostra as dificuldades do governo Biden em liderar a América Latina, uma região convulsionada, instável e politicamente fragmentada, que como um todo passa por uma fraca segunda onda de governos de centro-esquerda e “populistas”, algumas como a de Boric no Chile, como resultado do desvio de levantes e revoltas populares. Ou como no caso da Colômbia, onde o uribismo ficou de fora da corrida e a presidência é disputada entre o centro-esquerdista Gustavo Petro e o "trumpista" Rodolfo Hernández.

Biden tentou impor unilateralmente a agenda, centrada na guerra na Ucrânia, e decidiu excluir Cuba, Nicarágua e Venezuela da cúpula. Além disso, ele queria que o golpista Juan Guaidó fosse aceito como representante da Venezuela. Essas aspirações se mostraram fora da relação de forças real. E abriram uma crise com o México e o Brasil, os dois países essenciais para liderar a região.

O presidente do México, López Obrador, condicionou sua participação para que se suspendesse a exclusão de Cuba, Nicarágua e Venezuela. Seguiram-no Argentina, Chile e Bolívia. No caso do Brasil, Jair Bolsonaro também ameaçou não ir, principalmente porque se opõe ao governo Biden, e forçou os Estados Unidos a negociar sua participação. No caso do Brasil, o não alinhamento incondicional com os Estados Unidos na frente antirrussa/anti-China e a aspiração por graus de autonomia é uma questão de Estado, pois é uma política compartilhada por Bolsonaro e Lula, que provavelmente vencerá as próximas eleições.

Isso não significa que a cúpula irá falhar, nem que os países latino-americanos não tenham uma relação de dependência em respeito aos Estados Unidos. Mas as negociações que o governo norte-americano foi obrigado a empreender mostram as dificuldades que tem para recuperar o terreno perdido na região, onde a maioria dos países tem a China como principal parceiro comercial e destino de suas exportações.

Internamente, a principal contradição é a fraqueza do governo Biden que provavelmente, devido ao descontentamento generalizado com o governo democrata pela alta inflação, perderá as eleições de meio de mandato. Por enquanto, a política na guerra da Ucrânia tem apoio bipartidário, e a política de intervenção indireta, sem comprometer tropas no terreno, continua popular. Mas esse apoio dificilmente pode ser sustentado se a guerra se arrastar sem fim à vista.

Já emergiu um setor minoritário, mas intenso, de congressistas republicanos – muitos deles trumpistas – que se opõem à política oficial e sustentam que a guerra na Ucrânia não é do interesse nacional do imperialismo dos EUA e questionam o grande orçamento que a Casa Branca aloca para o financiamento do governo e do exército ucranianos.

A perspectiva de que o Partido Republicano – com um forte componente trumpista – ganhe as eleições de meio de mandato e eventualmente a Casa Branca em 2024 é um fator de instabilidade porque levanta uma grande questão sobre a orientação da política exterior do imperialismo norte-americano, se voltará ao unilateralismo do "America First" ou continuará a política "multilateral".

O fantasma da estagflação e a crise alimentar

A guerra e as sanções econômicas impactaram em cheio na economia internacional, aprofundando as tendências que vinham se desenvolvendo no final da pandemia, em particular as tendências inflacionárias, produto de gargalos nas cadeias de suprimentos, entre outras questões. A União Europeia revisou para baixo sua projeção de crescimento, de 4% para 2,5%. E a economia dos EUA sofreu sua primeira contração no primeiro trimestre de 2022.

O aumento abrupto dos preços das commodities, principalmente alimentos e energia, aumentou significativamente a pressão inflacionária, não apenas no mundo emergente, mas principalmente nos países centrais, que passaram de lidar com deflação a taxas de inflação recordes nas últimas três ou quatro décadas. Embora no curto prazo esse aumento do preço das commodities possa beneficiar os países exportadores de alimentos e energia – entre eles vários países da América Latina, incluindo a Argentina – as condições gerais e as perspectivas da economia internacional – muito diferentes daquelas do superciclo das matérias-primas – dificilmente permitem que essa vantagem comparativa nos termos de troca seja sustentável.

A perspectiva de estagflação deixou de ser uma hipótese teórica dos acadêmicos para se tornar um perigo que bancos centrais e governos capitalistas levantam para justificar suas políticas de restrição monetária, que inevitavelmente terão efeito recessivo.

O aumento das taxas de juros pela Reserva Federal e o fortalecimento do dólar aumentaram o peso da dívida em dólar. Segundo o FMI, 60% dos países de baixa renda endividados já enfrentam dificuldades e correm risco de default.

Em seu relatório de abril, o FMI revisou para baixo as previsões de crescimento para 143 países (o que representa 86% do PIB mundial). E apontou três riscos que “obscurecem” a economia mundial: a crise da cadeia de suprimentos, a política de “covid zero” da China que, aliada à crise imobiliária, derrubou fortemente sua economia no primeiro trimestre, e a guerra da Ucrânia. Mas o que é ainda pior é que esses três riscos combinados potencializam o risco mais temido: uma crise alimentar global que pode se traduzir em fome nos países mais pobres. A crise alimentar pode piorar porque alguns países como a Índia estão adotando medidas protecionistas e proibiram ou reduziram drasticamente suas exportações de trigo.

Kristalina Georgieva, que já havia comparado a guerra na Ucrânia a um terremoto, fala agora de uma “confluência de calamidades”– covid 19, guerra, inflação, volatilidade dos mercados, crise climática – à qual se somaria um “risco de fragmentação geoeconômica”.

Para usar a expressão do economista marxista M. Roberts, com um coquetel de desaceleração do crescimento, inflação mais alta, juros mais altos, retornos financeiros mais baixos, riscos de inadimplência (soberana e privada) mais uma guerra na Europa, "2022 não parece bem". E provavelmente, se a guerra continuar se arrastando, 2023 tampouco.

A guerra agravou, mas não criou o perigo da fome. De acordo com um relatório da Oxfam, enquanto cerca de 263 milhões de pessoas podem cair na pobreza extrema em 2022, a riqueza dos principais burgueses do mundo - incluindo os donos dos principais monopólios alimentares - cresceu entre 2020 e 2022 o mesmo que nos 23 anos anteriores. Não se trata apenas da desigualdade, mas da concentração própria do capitalismo.

Perspectivas políticas e da luta de classes

Desde a crise capitalista de 2008 ocorreram duas ondas muito importantes de luta de classes, que com desigualdades se estendera a nível internacional. A primeira, como resposta direta aos efeitos da Grande Recessão, teve seu ápice na Primavera Árabe, uma rebelião generalizada contra as ditaduras árabes pró-americanas, desencadeada pelo aumento do preço do pão. Essa onda teve sua expressão na Europa com o movimento dos indignados no Estado espanhol e as dezenas de greves gerais na Grécia, capitalizadas principalmente por novas representações reformistas de esquerda como Podemos e Syriza.

A segunda onda começou na França em 2018 com a mobilização dos “coletes amarelos” contra o aumento dos preços dos combustíveis, transformada em uma grande rebelião contra o governo Macron. Essa onda atingiu a América Latina com a revolta no Equador (contra o aumento dos preços dos combustíveis ordenado pelo FMI), os protestos e greves nacionais na Colômbia e a revolta no Chile em outubro de 2019, que poderia ter aberto o caminho para a revolução, mas não superou o caráter de revolta, e o desvio foi imposto primeiro pela Constituinte e depois pelo governo de Boric.

Essa onda entrou em pausa devido à pandemia do coronavírus, mas após o momento inicial das quarentenas, a luta de classes voltou com força, nada menos que nos Estados Unidos com a eclosão do movimento Black Lives Matter, um processo de mobilizações em repúdio ao assassinato de George Floyd, um afro-americano assassinado pela polícia, no qual participaram mais de 25 milhões de pessoas.

No quadro de aumento da desigualdade e da precariedade deixada pela pandemia, a inflação – e principalmente os aumentos de alimentos e combustíveis – atua como gatilho para situações de conflito social e político. Já estamos vendo as primeiras respostas operárias e populares a essa nova situação, que vão desde lutas pela distribuição de salários em setores da classe trabalhadora organizada até levantes e revoltas.

Entre essas lutas destaca-se a rebelião operária e popular no Sri Lanka, onde o governo deixou de pagar sua dívida externa e busca se preservar por meio de um acordo com o FMI que aprofundará o empobrecimento da maioria da população. E o processo de mobilização no Irã antes da retirada dos subsídios do governo para nada menos do que trigo e farinha, o que levou a um aumento de 300% nos preços.

Além disso, houve lutas camponesas no Peru – setor que era o núcleo da base eleitoral de Pedro Castillo; greves selvagens no Reino Unido de trabalhadores do petróleo e gás no Mar do Norte por aumentos salariais; greves e paralisações de setores operários na Alemanha e na Itália.

O aspecto mais inovador da luta de classes é o processo que vem se desenvolvendo nos Estados Unidos nos últimos anos, que inclui experiências de luta, organização sindical e política. Além da luta pela defesa do direito ao aborto, ameaçada pela ofensiva conservadora no Supremo e nos legisladores republicanos.

O que estamos vendo em processos como a onda de greves de outubro passado (Striketober) e em outro nível a "grande demissão" é uma mudança significativa na autopercepção de setores importantes da classe trabalhadora, especialmente os trabalhadores que foram considerados essenciais durante a pandemia, suas forças e seu papel no funcionamento da sociedade. É uma profunda mudança de consciência, que se expressa no fato de que a maioria considera os sindicatos positivamente, apesar de apenas 10% dos trabalhadores serem sindicalizados. O mais avançado é o processo de sindicalização de trabalhadores precários, como na Starbucks, ou em setores capitalistas estratégicos como na Amazon. É um processo emergente de "sindicalismo de base" que tem contradições, é pressionado pelas políticas de cooptação do Partido Democrata e da burocracia sindical através de seus setores mais de esquerda, mas que no seu conjunto constitui uma grande experiência que ainda está no início.

Esses processos têm como pano de fundo a profunda polarização política que continua a se desenvolver. Não são apenas fenômenos de extrema direita que surgem como vetores de descontentamento, especialmente entre as classes médias conservadoras e setores despolitizados das classes populares. Continuam a se desenvolver fenômenos políticos da "esquerda radical" (à esquerda do reformismo tradicional), que em muitos casos têm pontos de contato com processos de luta e organização (como nos Estados Unidos). Um exemplo é a alta votação para J-L Mélenchon na França, que se concentrou principalmente nos bairros populares e operários, nos banlieues (periferia onde vivem sobretudo a segunda e terceira gerações de imigrantes) e em jovens entre 18 e 24 anos. Esse fenômeno, por enquanto eleitoral, mostrou que há uma divisão de "três terços" e não apenas uma polarização entre a extrema direita de Le Pen e a "frente republicana" de Macron.

Outro exemplo é o surgimento da chamada “Geração U” (por Union-sindicato) nos Estados Unidos, que é a que vem liderando o processo de sindicalização e, como dissemos acima, passou pela experiência do BLM. Trata-se de uma vanguarda que em grande parte foi a base do "fenômeno Sanders", especialmente organizado no DSA, e tem uma preferência político-ideológica pelo "socialismo".

Provavelmente no Chile, onde há uma rápida experiência com o governo de desvio de Boric e sua política de restaurar os antigos processos de centro-esquerda, também surjam processos à esquerda.

Abriu-se um período em que temos que nos preparar para mudanças bruscas na situação e no potencial surgimento da luta revolucionária da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, as condições da época e as "calamidades" do capitalismo - crises capitalistas, belicismo, militarismo - nos apresentam a necessidade de redobrar a ofensiva ideológica com um discurso que articule a intervenção na luta de classes e os processos políticos em cada país e internacionalmente, com o nosso objetivo da sociedade socialista pela qual lutamos.

Tradução: Gabriel Ulbricht e Angelo Delazeri


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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