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A guerra de Israel contra o povo palestino

Claudia Cinatti

A guerra de Israel contra o povo palestino

Claudia Cinatti

Centenas de milhares de pessoas estão tentando escapar como podem. Em carros deteriorados. Em caminhões sobrecarregados com improvisados pacotes, crianças e famílias. A pé. Em carroças puxadas por burros. Ao lado, podem-se ver os destroços de edifícios destruídos por bombardeios. Eram hospitais, abrigos, residências. A imagem horrível replicada pelos meios de comunicação é do norte da Faixa de Gaza em 14 de outubro, após o término do prazo de 24 horas estipulado pelo Estado de Israel para a evacuação de mais de um milhão de palestinos. Uma tarefa considerada impossível até mesmo pelas Nações Unidas, que alertaram sobre a catástrofe humanitária em andamento. AFaixa de Gaza é uma jaula de 300 quilômetros quadrados, com uma densidade populacional maior do que a de Londres, da qual é praticamente impossível sair, mesmo que o Egito concordasse em abrir a passagem de Rafah na fronteira.

Conforme o colunista do jornal Haaretz, Gideon Levy, a evacuação forçada em Gaza revive de forma mais intensa o "trauma da Nakba", a "catástrofe" que representou a expulsão das aldeias e terras dos palestinos em 1948.

Sob o impacto e a comoção causados pelo brutal ataque do Hamas, que, de acordo com as autoridades israelenses, resultou na morte de mais de mil civis e uma centena de reféns, o governo de Benjamin Netanyahu mais uma vez adotou o método de punição coletiva contra a Faixa de Gaza. A região está bloqueada por Israel e Egito por via aérea, terrestre e marítima desde 2007. "Estamos impondo um cerco total a Gaza [...] sem eletricidade, comida, água ou gás, tudo está fechado," disse o Ministro da Defesa de Israel, Yoav Galant, que justificou a ação afirmando que estavam combatendo "animais humanos." Esse cerco e os constantes bombardeios custaram a vida de cerca de 2.000 civis palestinos, uma cifra que só tende a aumentar nos próximos dias e semanas.

A convocação de 360.000 reservistas e a concentração de tropas e tanques perto de Gaza indicam que essa ofensiva pode incluir uma incursão terrestre do exército israelense em território palestino, uma opção considerada altamente arriscada pela maioria dos analistas. Além disso, nos bombardeios em larga escala e no assalto militar terrestre, reféns, incluindo cidadãos norte-americanos, franceses e britânicos, podem perder a vida. Em última análise, o problema não é militar, como apontado em um artigo no Financial Times por Lawrence Freedman, mas sim o fato de Israel carecer de uma estratégia política viável.

Apesar das diferenças que o governo de Biden e os governos liberais europeus possam ter com o primeiro-ministro "trumpista" Netanyahu, os aliados históricos e estratégicos de Israel, começando pelos Estados Unidos e a União Europeia, como é comum em casos como esse, saíram em defesa do "direito incondicional à defesa" do Estado israelense. A dupla medida da "comunidade internacional", ou seja, da opinião pública "ocidental" moldada pelos valores do imperialismo norte-americano, é uma obscenidade. Quando Israel comete crimes de guerra, incluindo o cerco colonial, as potências imperiais simplesmente veem isso como exercício do direito de defesa. No entanto, quando os palestinos resistem à ocupação, são rotulados como "terroristas".

Mais uma vez, a complacência de seus poderosos aliados foi aproveitada por Netanyahu para legitimar sua próxima guerra contra o povo palestino. No entanto, como já foi observado pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, seria um erro interpretar que ele tem um cheque em branco.

O cenário está em aberto. As consequências internas e o impacto regional e internacional dessa guerra de Israel contra o povo palestino em Gaza - a sexta desde que o exército se retirou da Faixa em 2005 - ainda estão por serem vistas.

Netanyahu sobreviverá?

Em seu âmbito doméstico, os problemas de Netanyahu não são insignificantes. Sob o seu governo, Israel acaba de sofrer um ataque sem precedentes em seu próprio território. Não por acaso, a comparação é feita com a Guerra do Yom Kippur de 1973, quando Israel foi pego de surpresa pela ação conjunta do Egito e da Síria. Sua suposta invulnerabilidade foi violada pela ação do Hamas, uma milícia armada com um poder de fogo completamente assimétrico, perpetrada através de uma combinação de métodos artesanais, como parapentes e retroescavadeiras. Essa operação não se limitou a alvos militares, atingindo também centenas de jovens que estavam em uma festa, famílias que viviam em kibutzim e muitos outros que não tinham nenhuma função militar. O ataque a alvos militares e à população civil foi facilmente aproveitado por Netanyahu e pelas potências imperialistas para tentar legitimar sua declaração de guerra, ao mesmo tempo que demonstrava que o Hamas carece de qualquer estratégia eficaz para a libertação do povo palestino.

No curto prazo, Netanyahu conseguiu consolidar uma unidade nacional reacionária. No entanto, a atual unidade não significa automaticamente que a profunda divisão social, política e estatal que levou a mobilizações em massa contra sua pretendida reforma judicial tenha sido superada. Essa reforma era considerada "pouco republicana" por retirar atribuições do poder judicial para concentrá-las no poder executivo. Ao longo deste ano, todos os sábados, dezenas de milhares de israelenses, principalmente das classes médias seculares, setores empresariais tecnológicos, reservistas e até pilotos das forças armadas, vinham se reunindo nas principais cidades contra a coalizão governamental de Netanyahu e os partidos dos colonos e da extrema direita religiosa, que, entre outros privilégios, estão isentos do serviço militar e recebem subsídios milionários do Estado. Esses mesmos setores, juntamente com parentes dos reféns, começaram a sair às ruas e responsabilizam Netanyahu pelo desastre no sul do país. O argumento central é que o exército estava concentrado em proteger os colonos na Cisjordânia.

No entanto, a divisão não está relacionada à política em relação aos palestinos. O historiador de origem judaica Ilan Pappé explica corretamente que a oposição à reforma judicial não é, como afirmam os meios de comunicação ocidentais, um movimento em "defesa da democracia", simplesmente porque não questiona a opressão dos palestinos. Há um consenso básico que não questiona a política colonial do Estado sionista, embora se rejeitem medidas extremas, como a expulsão de palestinos e a anexação total da Cisjordânia, que são propostas abertamente por ministros de Netanyahu.

A configuração do poder israelense após o ataque do Hamas reflete tanto o momento de unidade que Netanyahu conseguiu quanto suas fraquezas estratégicas. Com a aprovação do Knesset (parlamento), o primeiro-ministro formou um "gabinete de guerra" e um "governo de emergência", no qual B. Gantz, do opositor Partido de Unidade Nacional (de centro-direita), se integrou, sendo uma possível alternativa que o presidente norte-americano Joe Biden está considerando. Até agora, Yair Lapid, do principal partido de oposição (Yesh Atid), recusou o convite, talvez reservando-se para uma crise maior. Em troca dessa "salvação nacional", Netanyahu aceitou a condição de excluir seus ministros de extrema direita das decisões-chave. Estrategicamente, este ataque pode significar o fim de sua carreira política, assim como aconteceu com Golda Meir, que renunciou dois anos após a Guerra do Yom Kippur.

O futuro incerto da "normalização"

Externamente, o interrogante é se a resposta militar de Israel pode desencadear uma guerra regional envolvendo não apenas o Líbano, mas principalmente o Irã, a potência regional que é inimiga do Estado sionista, agindo por trás do Hezbollah e mantendo uma aliança tática com o Hamas.

Essa possibilidade não pode ser descartada, embora haja uma atividade política frenética por parte dos aliados imperialistas de Israel para evitá-la. Em um cenário mundial convulsionado pela guerra Rússia-Ucrânia/OTAN e pelo retorno da rivalidade entre grandes potências, com o bloco ocidental sob a liderança dos EUA e uma aliança emergente entre a Rússia e a China (que se projeta para o "Sul Global"), é do interesse dos EUA não abrir a caixa de Pandora de uma guerra regional no Oriente Médio, o que os levaria de volta a uma região na qual investiram recursos militares significativos durante as duas décadas da "guerra ao terror" e que terminou em derrota.

O ataque do Hamas abalou o mapa geopolítico regional. Os Estados Unidos, cujos interesses estratégicos estão em sua disputa com a China, vinham promovendo a política de "normalização" das relações entre os Estados árabes e o Estado de Israel, com o objetivo de isolar o Irã. Essa política foi iniciada por Donald Trump em 2020 com osAcordos de Abraham, inicialmente assinados pelos Emirados Árabes Unidos e Bahrein. A "normalização" e, com ela, suas promessas comerciais, implicaram a normalização da situação colonial do povo palestino.

A política de "apaziguamento" continuou sob o governo Biden que, nos dias anteriores ao ataque do Hamas, estava avançando com a "normalização" das relações entre Israel e a Arábia Saudita. De forma pragmática, Biden deixou passar a política da China que pressionava pela restauração das relações diplomáticas entre a Arábia Saudita e o Irã e aproveitou o clima criado para chegar a um acordo com o Irã sobre uma troca de prisioneiros para libertar espiões americanos detidos pelo regime iraniano.

O ataque do Hamas e a declaração de guerra de Israel colocaram esses planos em espera. A Arábia Saudita novamente levantou sua exigência formal de que qualquer acordo fosse condicionado a uma resolução da "questão palestina", uma causa popular no mundo árabe e muçulmano. Em um cenário de tensão elevada, esses interesses estatais provavelmente atuarão como moderadores das tendências aos extremos.

Colocar fim ao apartheid

Atualmente, a maioria esmagadora dos governos "ocidentais" e a grande imprensa corporativa têm repetido ad nauseam a narrativa de que Israel é "a única democracia no Oriente Médio", uma espécie de oásis de "civilização" em face da "barbárie árabe-islâmica oriental". Esse "pensamento único" busca silenciar qualquer crítica ao Estado de Israel e à sua política colonial com a acusação fácil de "antissemitismo", manipulando, comodenuncia o historiador Norman Finkelstein, a memória do Holocausto.

Nós, socialistas revolucionários, rejeitamos o ataque a civis e não compartilhamos nem dos métodos nem da estratégia do Hamas, cujo objetivo é estabelecer um estado teocrático. Mas, assim como dezenas de milhares de pessoas em Londres, Paris ou nos Estados Unidos que demonstram ativamente sua solidariedade ao povo palestino, não confundimos essas ações com o apoio à resistência palestina contra a ocupação colonial.

Como demonstraram organizações como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a ONG israelense B’Tselem, o que existe em Israel é um regime de apartheid contra o povo palestino, que está sujeito a várias formas de opressão em Gaza, na Cisjordânia e no Estado de Israel, onde os chamados "árabes israelenses" representam cerca de 20% da população. E que, portanto, não pode ser considerado uma "democracia" para alguns e um regime de opressão colonial para outros.

Essa semelhança com o regime sul-africano de segregação racial baseia-se no fato de que o povo palestino é privado de seus direitos democráticos elementares, a começar pela autodeterminação nacional, que vive sob ocupação militar, que dentro de Israel tem cidadania, mas não tem nacionalidade, porque o Estado de Israel declarou por lei seu caráter exclusivamente judeu, discriminando os árabes e outras minorias. Seria o equivalente a postular, por exemplo, que os Estados Unidos são um estado exclusivamente branco e cristão.

Basta comparar os mapas da região para registrar graficamente o avanço colonial do Estado de Israel, que atualmente ocupa 45% da Cisjordânia com colônias e assentamentos ilegais. Nos últimos anos, esse avanço colonial e a opressão do povo palestino se aprofundaram qualitativamente. E, embora a diferença seja apenas de grau, não é menos significativo que o governo liderado por Netanyahu seja o governo mais direitista já registrado.

Diante dessa realidade de opressão, a Autoridade Nacional Palestina (ANP), chefiada por Mahmoud Abbas, está em uma crise sem volta. Durante os Acordos de Oslo, ela assumiu o papel de polícia interna do movimento de libertação palestino, colaborando com a opressão do Estado sionista. Reduzido à Cisjordânia (tendo perdido Gaza para o Hamas), a ofensiva dos últimos anos tornou a ANP ainda mais irrelevante. Essa crise está dando origem a um fenômeno interessante relatado por vários analistas: o surgimento de umanova geração de jovens ativistas palestinos, que também estão escapando do rígido controle religioso do Hamas.

Com o fracasso dos Acordos de Oslo e o fim da ilusão da solução de "dois Estados", e a escalada das políticas coloniais do Estado israelense, multiplicaram-se as vozes de intelectuais, ativistas e personalidades de origem judaica denunciando o caráter colonial, racista e opressor do Estado sionista e pedindo como alternativa o estabelecimento de um "Estado único, binacional e democrático" baseado no desmantelamento do regime de apartheid.

Em seu livro The Ethnic Cleansing of Palestine (A limpeza étnica da Palestina), Ilan Pappé demonstra, com uma pesquisa cuidadosamente documentada, que a fundação do Estado de Israel em 1948 baseou-se na expulsão da população árabe por meio de limpeza étnica. Essa política de expulsão sistemática constitui o que ele define como "genocídio incremental". De acordo com Pappé, a única maneira de evitar o fim da limpeza étnica é acabar com o regime de apartheid e estabelecer "uma Palestina de-sionizada [de-zionized, termo que utiliza], liberada e democrática, do rio ao mar", para onde os refugiados possam retornar e "onde não haja discriminação cultural, religiosa ou étnica".

Muitos desses ativistas antissionistas participam ativamente de campanhas conjuntas com palestinos, como a campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que há anos usa vários métodos para expor a natureza racista e segregacionista do Estado israelense. Ou a chamada "Campanha por Um Estado Democrático", que reúne pessoas de origem judaica e palestina com o mesmo objetivo de acabar com o regime colonial, apoiado pelo imperialismo.

Para acabar com o regime de apartheid e a opressão contra o povo palestino, é necessário liquidar sua base material. É por isso que acreditamos que a única saída verdadeiramente progressista é lutar por uma Palestina operária e socialista, porque somente um Estado que tenha como objetivo acabar com toda a opressão e exploração pode garantir a coexistência democrática e pacífica entre árabes e judeus, como primeiro passo para uma federação socialista no Oriente Médio.


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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