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A fundação da República Popular da China

Gabriela Liszt

A fundação da República Popular da China

Gabriela Liszt

Há 72 anos, no dia 1º de outubro de 1949, com a entrada do Exército Vermelho em Pequim, é fundada a República Popular da China sob a direção de Mao. Republicamos este texto que propõe algumas lições a serem tiradas da experiência da Revolução Chinesa.

Para compreender o processo e o resultado da formação da República Popular da China, produto da terceira revolução chinesa (logo após os processos revolucionários de 1911 e de 1925-27), é preciso retroceder um pouco em sua história.

A política do PC Chinês e a III Internacional na segunda revolução

A segunda revolução que se iniciou em 1925 foi derrotada em 1927, resultado da política de colaboração de classes entre o Partido Comunista Chinês e o partido do nacionalismo burguês, o Kuomintang (KMT). O KMT, ainda que com distintas alas internas, era representado por Chiang Kai Shek. Este, após ser elogiado e reivindicado pelo PC Chinês, dedicou-se a perseguir e massacrar milhares de comunistas, impondo uma dura derrota. A classe trabalhadora tardaria em se recuperar deste massacre.

A III Internacional (já estalinizada) então, realiza um giro político ultra-esquerdista (chamado de Terceiro Período). O objetivo era ocultar o fracasso de sua política tanto na URSS como internacionalmente, e avançar na luta interna contra a oposição à burocratização. O dirigente Li Li San, um estalinista servil, aplicou esta linha, proclamando a imediata tomada do poder, quando os trabalhadores seguiam sofrendo a derrota. Os comunistas seguiam sustentando um apoio considerável entre o proletariado, e convocaram, nos anos de 29 e 30, uma serie de levantes que os isolaram ainda mais e fizeram crescer a perseguição do regime contra o movimento operário. A linha aventureira da Terceira não estava com seu centro no movimento operário, mas apoiava ideologicamente e politicamente uma lenta e prolongada rebelião camponesa, que se desenvolvia a despeito da cidade, nas zonas mais pobres da China.

Os soviets camponeses de Hunan e Kiangsi

A organização camponesa nas zonas do interior tomou a forma de soviets, agrupando os pequenos camponeses e os pobres. O PC dirigiu aproximadamente 200 sub-províncias: pequenas aldeias do sudoeste da China onde os comunistas haviam expropriado os grandes proprietários de terra e, em alguns casos, os burgueses. Essa profunda rebelião camponesa não poderia triunfar se não fosse acompanhada e dirigida desde as cidades, pelo movimento operário, que haviam sido por sua vez abandonadas pelos comunistas. Baseado no ascenso tardio no campo, no princípio dos anos 1930, Stálin pôde manter a ficção de uma “República Vermelha” nos territórios dominados por Mao; porém, os soviets camponeses, por sua condição de classe e sua limitação geográfica-política (estando isolados das cidades), não podiam levar adiante nenhuma medida “socialista”, nem triunfar nacionalmente.

A aplicação e agitação do programa agrário pelo PC ganhou apoio das massas pobres do campo e o permitiu sobreviver por algum tempo à reação nacionalista. Porém a ficção de um governo soviético baseado exclusivamente no campo teve que ser abandonada frente às constantes “campanhas de guerra” dos exércitos do Kuomintang. Em 1934 tem início a epopeia militar da “A Longa Marcha”, forma que ganhou a retirada do PC das bases Vermelhas de Hunan e Kiangsi. Um ano depois, em outubro de 1935, rompem o cerco nacionalista e sobrevivem com 30.000 homens (de uns 90 mil que partiram dos vales vermelhos) nas altas montanhas do norte da China.

Nas cidades uma nova onda de agitação se produzia contra a ocupação japonesa, iniciada em 1931 com a ocupação da Manchúria. “Os operários de Shangai e outras cidades costeiras haviam lançado um novo desafio e levado a cabo greves e manifestações turbulentas. Mas devido a sua carência de uma direção competente, foram derrotamos, uma e outra vez” [1]. Em 1937, o Japão estende sua nova invasão para as cidades costeiras chinesas, que são devastadas, e a indústria é destruída. A partir dali se cria o mito maoísta de que toda revolução “terá que ser levada desde o campo até a cidade”.

A Guerra contra o Japão e a Frente Única Anti-imperialista

A agitação anti-imperialista contra o invasor japonês acontece nas cidades e se abre a possibilidade de que o Exército Vermelho chinês possa fugir do cerco nacionalista. O governo do Kuomintang entra em um profundo desprestígio por sua política contemporizadora com os invasores. Porém um novo giro ira guiar o PC para abraçar uma orientação de unidade política com a burguesia nacionalista ao propor-lhes a conformação de uma Frente Única Antijaponesa, abandonando a agitação pela reforma agrária já que esta atacava as bases de poder dos generais do Kuomintang , entre os quais estavam grandes proprietários de terra chineses. A contradição principal, dizia Mao, era com o imperialismo japonês. A “contradição” com burguesia nacional e inclusive com as antigas classes feudais, passavam para um plano secundário.

O maoísmo propunha (e segue propondo hoje em dia) uma teoria etapista, na qual a tarefa correta de enfrentar o imperialismo estrangeiro vem acompanhada de sua política de conciliação de classes de não lutar pela reforma agrária e outras tarefas que questionem aos seus “aliados” da burguesia nacional.

O Exército Vermelho entra em Pequim

Apesar da tentativa de subordinar a “contradição secundária”, a guerra civil entre o campesinato e a burguesia volta a estar no percurso da guerra antijaponesa com os levantes espontâneos dos camponeses nas zonas liberadas, que duram de 1942 até 1949.

Na saída da Segunda Guerra Mundial (1945), depois da derrota do Japão, Mao Tsé-Tung dominava grandes zonas do norte da China que agrupavam cerca de 100 milhões de pessoas, apesar da traição do estalinismo, que entregou as armas obtidas dos japoneses ao Kuomintang e não aos exércitos camponeses.

O Kuomintang, agora mais valente por conta da política de Mao frente à reforma agrária nas zonas dominadas pelo Exército de Chiang, e ainda mais, de reconhecer o governo de Chiang como legítimo governo da China, baixo os auspícios do general norte-americano Marshall, comete um enorme erro de cálculo estratégico: decide atacar Mao em seu próprio território.

Isso obriga Mao a mudar sua política e promover a reforma agrária em todo o território chinês. Desatando um torrente de energia revolucionária de dezenas de milhões de camponeses, que ainda antes que chegassem os exércitos de Mao a cada zona, repartiam a terra e queimavam nas aldeias os livros de contabilidade dos usurários (aliados dos proprietários de terra). O levante operário em 1946 teria permitido que a revolução contasse com a participação ativa (ou a direção) dos trabalhadores. Mas foi sufocado com a ajuda dos comunistas para manter a direção e a política de Mao. Desde o verão de 1946 até o 1º de outubro de 1949, quando o Exército Vermelho entra em Pequim, a guerra civil se estendeu como uma chama no campo. O campesinato pobre e sem terra se insurrecionava não só contra os proprietários de terra e usurários mas também contra os camponeses ricos e tornava inevitável o avanço do exército de Mao até as cidades.

O novo governo da República Popular da China legaliza a reforma agrária que havia sido realizada pelos camponeses pobres. Porém, por vários anos se nega a expropriar a burguesia nacional, que era considerada parte do “bloco das quatro classes”.

Será como consequência da nova guerra da Coreia lançada pelos Estados Unidos (50-53), na qual a China intervém com um milhão de combatentes para assegurar sua autodefesa, que a direção maoísta será empurrada a finalmente expropriar o que restava da burguesia nacional chinesa, que havia se deslocado abertamente ao campo do imperialismo e a contrarrevolução. Concretizando assim a formação de um novo Estado operário produto de uma revolução.

A direção burocrática de Mao e do Partido Comunista Chinês levou a que o Estado operário chinês surgisse com caráter deformado. Um regime onde a democracia soviética está ausente desde seu início. Como assinala um aspecto da teoria da revolução permanente, as tarefas da revolução democrática se concretizam com a revolução socialista. As condição excepcionais do pós-guerra, de redistribuição do poder mundial, obrigaram Mao a ir mais além de que havia se proposto. A III Internacional já havia sido dissolvida por Stálin, e Mao, inclusive em sua ruptura com Stálin, continuou sendo parte e defendendo a burocracia estalinista.

Os acontecimentos posteriores e a própria revolução de 1949 vão se desenvolver como uma ruptura com o legado revolucionário da III Internacional. Já não seria o proletariado organizado em conselhos e influenciado por um partido operário revolucionário o que levaria adiante a revolução, mas sim uma revolta generalizada de camponeses pobres, ou diretamente sem terra, sob a direção de um partido organizado como exército guerrilheiro. Assim, a China de 1949 parece contradizer a teoria da revolução permanente: para Mao, a revolução defendida não conduzirá a ditadura do proletariado como havia acontecido na Rússia, mas sim será uma revolução antifeudal e anti-imperialista, conduzida por um “bloco de quatro classes”: proletariado, campesinato, pequena burguesia urbana e burguesia nacional. Porém, um acumulado de condições excepcionais pode explicar a anomalia da revolução.

Na Revolução Russa é a partir do retrocesso e isolamento desde meados dos anos 1920 que o PC estalinizado liquida a democracia soviética e instaura uma ditadura bonapartista, levando à degeneração da Revolução Russa. Por sua vez, na Revolução Chinesa o maoísmo assume este papel burocrático muito tempo antes de seu triunfo. Ainda que as massas camponesas pobres e semiproletárias tenham feito uma grandiosa revolução, que deu um grande impulso para a revolução anticolonial e as lutas anti-imperialistas em todo o mundo, a ausência do proletariado como classe dirigente, com um partido revolucionário à sua frente, impediu que a revolução chinesa impulsionasse a construção de uma nova internacional revolucionária, como o fez a Revolução Russa de 1917 que deixou lições estratégicas de valor incomensurável como as contidas nos quatro primeiros Congressos da Terceira Internacional de Lênin e Trótski. Como vemos agora, esta burocracia terminou dirigindo o processo de restauração capitalista, avançando como país capitalista mas retrocedendo nas desigualdades sociais e perdendo as conquistas da revolução.


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FOOTNOTES

[1Isaac Deutscher. O Maoísmo e a revolução cultural chinesa, Ed. Era, México, 1975.
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