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GUERRA E POLÍTICA | ’A fórmula’ e o significado implícito de política no pensamento de Clausewitz

Com essa série de artigos quero expressar o esboço, o início mesmo, de uma pesquisa mais de fundo sobre o pensamento do general prussiano Carl von Clausewitz, quase certamente o autor mais clássico a teorizar sobre a guerra, e sua relação com o pensamento e a prática política marxista.

sexta-feira 27 de maio de 2016 | Edição do dia

Introdução

Com essa série de artigos quero expressar o esboço, o início mesmo, de uma pesquisa mais de fundo sobre o pensamento do general prussiano Carl von Clausewitz, quase certamente o autor mais clássico a teorizar sobre a guerra, e sua relação com o pensamento e a prática política marxista.

Evidentemente essa influência não é nova e aqui não se pretende avançar nada de completamente original, mas apenas pontuar algumas questões e reflexões que ocorreram ao autor a partir da leitura de Clausewitz, tanto a partir da leitura do próprio quanto a partir da leitura de alguns de seus comentadores, sejam eles marxistas ou não.

A busca por se apropriar do vocabulário e da lógica de pensamento do general prussiano data pelo menos desde o começo do século XX, nos debates dentro da social-democracia alemã, das polêmicas entre Rosa Luxemburgo e Karl Kautsky sobre guerra de desgaste ou guerra pela decisão, no marco da defesa por Rosa da tática da greve geral como tática prioritária para a social-democracia.

Essa apropriação do pensamento de Clausewitz no entanto terá seu grande marco a partir da fundação da III internacional e dos debates em seus quatro primeiros congressos, numa internacional ainda não burocratizada e que tinha como tarefa central a tomada do poder como tarefa que se colocava na ordem do dia.

Lenin e Trotsky, assim como o restante da direção bolchevique e da III internacional, se apropriarão das ferramentas e da lógica de pensamento utilizada pelo prussiano para pensar a relação e articulação entre cada movimento e luta particular e parcial (a tática) e a forma como impormos pela força nossa vontade política ao nosso inimigo no conflito entre as classes (a estratégia), ou seja, como se relacionam cada luta parcial, cada greve, cada conflito, com nossa estratégia, a ditadura do proletariado e a relação da estratégia com nosso programa e objetivo político mais profundo, a realização de uma sociedade baseada na propriedade coletiva dos meios sociais de produção, sem classes e sem estado, onde os produtores associados decidam de maneira livre os rumos que dão a coletividade.

Junto a Lenin e Trotsky o grande nome dentro do marxismo que naquele momento irá se apropriar do pensamento do general prussiano para enriquecer sua perspectiva estratégica é o revolucionário italiano Antônio Gramsci. No entanto, após esse primeiro experimento de apropriação do pensamento de Clausewitz dentro do pensamento político marxista esse elemento vivificador do pensamento estratégico da luta das classes subalternas irá em grande medida se perder.

Muito por conta do stalinismo, onde qualquer perspectiva estratégica de derrubada revolucionária do capitalismo se apagará de maneira cada vez mais decidida, mas mesmo no campo do trotskismo, com seus desvios centristas após os acordos de Yalta e Potsdam que marcam o fim da segunda guerra mundial.

Porém, minha geração, aquela que viveu sob o signo da profunda derrota sofrida pelo proletariado com a queda do muro de Berlin e o fim dos estados operários, que mesmo que burocratizados e deformados expressavam uma importante conquista da luta dos trabalhadores, foi a que mais diretamente sentiu o peso da falta de um debate estratégico por parte daqueles que buscavam lutar contra as contradições geradas pelo desenvolvimento do capitalismo. Novos ventos, no entanto, sopram desde o começo da grande crise capitalista e a consequente primavera árabe. Se esses ventos demoraram a chegar em terras brasileiras, fruto do ciclo das commodities e da "pax lulista", agora cada vez mais vemos que eles tendem a soprar forte por aqui também.

Isso faz com que tenhamos que urgentemente superar o "grau zero de debate estratégico" para utilizar a feliz expressão cunhada pelo trotskista francês Daniel Bensaid, e o resgate do pensamento do prussiano se faz tarefa premente.

Essa série de artigos terá como temas, além desse primeiro que busca debater o significado implícito de política contido na famosa "fórmula" de Clausewitz (a guerra é a continuação da política por outros meios) os temas: a relação entre guerra com objetivos totais e guerra com objetivos parciais e a dinâmica própria do desenvolvimento capitalista, onde a economia se desenvolve sempre na dialética entre o capital e os múltiplos capitais, guerra de posição e guerra de movimento e sua relação com a estratégia revolucionária e um debate sobre o significado do entendimento por parte do general prussiano da guerra como arte e não como ciência.

Como expresso no começo desse texto essa série de artigos em nada busca ser uma tese conclusiva sobre temas tão complexos; tem apenas a pequena pretensão de suscitar um debate que é essencial nesse novo momento da luta de classes que se abriu no Brasil a partir das jornadas de junho de 2013 e que se aprofundou com a manobra reacionária do impeachment e o ascenso do governo ilegítimo de Michel Temer.

Política, espaço de harmonia ou espaço de conflitos? Política como expressão dos conflitos sociais

Penso que a conceituação sobre política mais famosa e tradicional existente no ocidente é a feita por Aristóteles. O estagirita ao definir o ser humano como zoon politikon, como animal político, expressa uma definição de política como espaço de resolução dos conflitos, espaço da racionalidade que supera as contradições na busca por uma sociedade mais harmoniosa. O ser humano é animal político não porque é o único animal social, evidentemente para o macedônio muitos outros animais também viviam em sociedade, mas porque em sua construção social supera a mera animalidade para construir uma sociedade cada vez mais humana. Nesse sentido, o ser humano tende a polis, forma de organização da sociedade que busca o bem e a virtude.

Essa concepção de política, tão própria à aristocracia escravista da sociedade helenística, não mais podia se sustentar, nem como ideologia, quando da vida do general prussiano Carl von Clausewitz. Contemporâneo da revolução francesa e das guerras napoleônicas a realidade política vivida por Clausewitz será de conflito e confronto, muito longe de expressar um espaço de harmonização.

No entanto, como pensador de um campo específico das relações sociais, a guerra, Clausewitz nem de longe expressará ou formulará uma concepção mais aprofundada sobre o que é a política e qual o seu significado.

O que permite, portanto, levantar a hipótese aqui de que está implícita na "fórmula" de Clausewitz a compreensão da política como espaço de expressão dos conflitos sociais e não de sua harmonização? O fato de que a guerra só pode ser um instrumento da política, só pode ser uma forma sua de realização, se entendemos a política como algo que potencialmente leva a essa realização, que contém em germe a possibilidade da guerra. A guerra só pode ser a continuidade da política por outros meios, por meios mais radicais e violentos, por que a política em si mesma já é espaço de conflitos e confrontos, porque já faz parte da essência mesmo da política o embate entre forças contrárias.

No entanto, a política não é igual a guerra, esse embate entre forças contrárias que se dá no campo político pode se expressar de diversas maneiras, a guerra sendo apenas uma de suas múltiplas possibilidades.

No embate entre estados disputas comerciais, diplomáticas, culturais, e as múltiplas formas que podem assumir os conflitos sem se expressar diretamente por meio de uma guerra interestatal; nos conflitos e lutas entre as classes, as greves, as disputas ideológicas, etc, e todas as outras formas de embate que podem existir sem que se coloque na ordem do dia diretamente uma guerra civil.

A guerra propriamente dita, o conflito físico entre forças políticas contrárias, é o momento em que esses embates políticos que se expressão de outras formas ganham um nível de agudeza e de profundidade que não podem mais se resolver de forma pacífica. A guerra é a forma mais radical e profunda de resolução dos conflitos próprios da esfera política, momento em que qualquer possibilidade de sua resolução por outros meios é inviabilizada.

Estado como personificação da "inteligência social" e luta de classes

A política e seus conflitos, as guerras, parecem ser para Clausewitz, em sua grande obra ’Da Guerra’, no entanto, algo próprio apenas das relações entre os estados e não algo que pode ocorrer dentro do próprio estado entre setores que disputam seus rumos e direção.

Mesmo quando trata do armamento popular o general prussiano faz dele meio auxiliar para a defesa de uma determinada nação contra um invasor estrangeiro e não meio de luta pelo poder político por parte de setores alijados dele dentro do estado.

Isso porque para Clausewitz o estado é a personificação da inteligência social, espaço onde os conflitos dentro da nação são superados. A guerra, portanto, aparece para o general prussiano como algo externo ao estado e podendo se desenvolver entre estados, mas não em seu interior.

Essa concepção é relativamente surpreendente num autor que foi contemporâneo da revolução francesa e suas guerras civis.

Essa concepção implícita, no entanto, do estado como espaço de superação das contradições sociais entra em evidente choque com a realidade e é aqui que uma clara linha de demarcação se estabelece entre os marxistas e o general prussiano. O estado é claramente um instrumento de violência (e consenso, com primazia do primeiro elemento) para manutenção de uma determinada ordem social. A "paz" social que existe no interior de um determinado estado só pode ser alcançada através da repressão à contestação das classes subalternas por parte das classes dominantes.

Nesse sentido, nós marxistas entendemos não só a possibilidade, mas a necessidade (tanto objetiva quanto subjetiva) dos conflitos e das guerras (que ganham forma de guerra civil) no interior de um determinado aparato estatal.

É quando a classe operária consegue organizar seus aparatos hegemônicos de forma a poder contestar a dominação burguesa que ele deve se preparar para romper com o monopólio do uso legítimo da força, característica central do estado, para organizar um contra poder que possa colocar em xeque o poder capitalista.

Assim, longe de expressar uma instância que sintetiza e supera os conflitos sociais como parece ser a concepção de Clausewitz, talvez influenciado por outro prussiano seu contemporâneo, Hegel, o estado é instrumento de manutenção de uma determinada ordem e determinada "paz". “Paz” essa que é contestada politicamente das mais diferentes formas pelas classes oprimidas. É quando essa contestação assume uma radicalidade e profundeza em que não mais os conflitos podem ser levados a frente de forma "pacífica" que a luta política se expressa como luta militar e a luta de classes assume o caráter de guerra civil pelo poder.

É nesse sentido que a luta física, militar, pelo poder, que tem seu ponto inicial numa insurreição e se desenvolve posteriormente como guerra civil pela conquista ou manutenção do poder político é ponto culminante e mais radical da luta de classes, momento em que as lutas parciais e táticas ganham um caráter decisivo e estratégico.

Fatores físicos e fatores morais na guerra, a predominância do político mesmo nos momentos mais agudos do conflito

Se a guerra é a continuação da política por outros meios isso mostra que mesmo nos seus momentos mais agudos, mais profundos, ela é apenas uma das formas de expressão da política, uma parte de uma totalidade mais ampla. A guerra é parte da totalidade que é a política, portanto.

Isso se expressa no fato de que mesmo nos momento mais agudos da guerra o fator político predomina sobre o fator militar; a vitória na guerra sendo em última instância uma vitória política e não física.

O objetivo da guerra não é o aniquilamento do exercito inimigo, mas sua desagregação como efetiva força combatente, como conjunto de seres humanos capazes de atuar de forma organizada para alcançar um determinado objetivo político através da força.

Isso faz com que um dos meios centrais para a vitória na guerra, principalmente na guerra civil, seja a propaganda política sobre as tropas, a busca de criar fissuras entre comandantes e comandados.

Numa guerra civil isso é uma grande vantagem, inclusive, para o exercito que luta contra a opressão e representa as classes subalternas, em relação ao exercito dos opressores, posto sua óbvia muito maior capacidade, pelo menos potencialmente, de influenciar as tropas inimigas politicamente, posto serem essas tropas formadas principalmente por membros também das classes e setores oprimidos.

É nesse sentido que em qualquer guerra contra a opressão a política levada a frente pelos setores revolucionários é parte central do conflito. Qualquer tática que se coloque como objetivo algo como "primeiro ganhar a guerra e depois levar a frente às transformações políticas e sociais" como fizeram os stalinistas na guerra civil espanhola, por exemplo, enfraquece e muito o exercito que luta pela emancipação, posto que impede e freia a possibilidade de desagregar-se as tropas inimigas por meio de uma política que certamente as impactará (por exemplo, uma clara política de reforma agrária nos setores ocupados por um exercito revolucionário certamente terá grande impacto sobre um exercito inimigo composto majoritariamente de camponeses).

No entanto devemos ter claro também que se a guerra é a política levada a frente por outros meios essa forma política tem suas próprias características e formas de expressão. Não basta apenas uma política correta para ser vitorioso num conflito que foi levado a suas últimas consequências assumindo a forma de uma guerra aberta entre dois setores. Se a política correta é certamente um fator não se deve esquecer que o medo que a força das armas inspira nas tropas inimigas e a decisão de utilizá-las é fator político central numa guerra.

Apenas quando as tropas inimigas temem a utilização das armar de forma decidida por parte dos oprimidos é possível que os setores antes vacilantes e que se mostravam relativamente simpáticos podem romper com a paralisia e o hipnotismo causado pela disciplina militar e romper com a antiga hierarquia para se colocar ao lado daqueles que se levantam.

Comunismo e superação da política

Se a hipótese aventada nesse artigo está correta e a política é expressão dos conflitos e contradições existentes nas sociedades divididas em classes e onde essa divisão de classes em diferentes estados se expressa na existência mesma de conflitos entre esses estados, o comunismo, como forma de superação das divisões de classe e entre estados, é também a superação da política, momento em que o social suprassume o político, absorvendo essa esfera em sua própria realidade de forma imanente, superando as próprias contradições que dão origem a uma esfera política distinta e separada de uma esfera social.

Como forma de associação dos produtores que coletivamente decidem os rumos da sociedade o comunismo suprime as diferenças nacionais e de classes para formar uma comunidade efetivamente humana, onde essas diferenças artificiais possam ser jogadas na lata de lixo da história. A superação da política, nesse sentido, se torna evidentemente uma superação da guerra, que é apenas uma de suas formas de manifestação.


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