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SEMANÁRIO

O momento populista de Joe Biden

Claudia Cinatti

O momento populista de Joe Biden

Claudia Cinatti

A classe dominante e o governo Biden resolveram apostar no desvio e na cooptação da classe trabalhadora atuando de maneira burocrática nos novos fenômenos políticos que surgiram no coração do imperialismo nos últimos tempos, como o Black Lives Matter e a luta de classes mais tradicional que vem ressurgindo, como na Amazon.

Em um centro de capacitação para carpinteiros na cidade industrial de Pittsburgh, na Pensilvânia, e diante de uma plateia composta majoritariamente por trabalhadores sindicalizados, o presidente Joe Biden anunciou um plano ambicioso de investimento em infraestrutura, conhecido como The American Jobs Plan [Plano de Emprego Estadunidense], o qual qualificou como o maior investimento estatal em criação de empregos desde a Segunda Guerra Mundial.

O peso simbólico do cenário escolhido para o anúncio – o coração do Cinturão da Ferrugem, que foi seduzido pela demagogia populista de Trump mas logo voltou às rédeas democratas – e o discurso do presidente são indicadores das mudanças na correlação de forças e na situação política que vêm se desenhando nos últimos anos e que deram um salto com a pandemia.

O plano de infraestrutura consiste em um investimento de 2 trilhões de dólares nos próximos oito anos, divididos em: conserto e construção de aeroportos, portos, pontes, ruas e outras obras de infraestrutura para o setor de transporte, que se encontra em ruínas como consequência de uma queda de 40% do investimento estatal desde a década de 1960 (os Estados Unidos se encontram em décimo terceiro lugar no ranking mundial de investimentos nesse setor); reparação de prédios, casas e escolas; reconversão de setores de energia fóssil a energias renováveis (o que inclui a produção de carros elétricos); subsídios para cuidadores de idosos e pessoas com deficiências. Estes são os principais pontos destacados. Além disso, esse plano contempla 180 bilhões de dólares para pesquisa e desenvolvimento em áreas como semicondutores, baterias e tecnologias do campo da informática. Tal investimento tem como objetivo explícito a disputa com a China.

Para além do investimento estatal, criação de emprego e mudança climática, o discurso que veio junto ao plano teve um viés de nacionalismo econômico, algo muito próximo do próprio Trump. A competição com a China é, sem dúvida, um eixo central da política de Biden, tanto que uma das propostas do governo é repatriar setores da indústria de baterias elétricas e suas cadeias de abastecimento, que hoje tem suas bases na China e em outros países asiáticos que oferecem mão de obra mais barata do que nos Estados Unidos. De acordo com um estudo citado pelo The New York Times, apenas 46% de uma bateria Tesla é produzida nos Estados Unidos, o restante vem da China e do Japão.

A mensagem de Biden ao sistema é de que o plano que, para os republicanos, democratas de fé neoliberal e importantes setores da burguesia, aparece como um exorbitante gasto de dinheiro, na realidade é o preço a se pagar por “fazer os EUA grandes novamente” (“Make America Great Again”, a promessa não cumprida de Trump) e para recompor o máximo possível a legitimidade da liderança a principal potência imperialista.

O montante de investimento indubitavelmente aparece como um número chocante, ainda que, se colocado lado a lado com as prioridades do imperialismo norte-americano, seu tamanho se torna menos assustador. Dividido por anos, o valor seria cerca de 282 bilhões de dólares, o que é menos de um terço do orçamento anual do Pentágono, de 741 bilhões até 2021.

Esta é uma mudança importante na orientação da política estatal depois de décadas de “reaganomias”, ou seja, de Estado mínimo e cortes de impostos para os ricos, algo que foi repetido como um mantra por Republicanos e Democratas (dois Bushes, Clinton e Obama).

O Plano de Emprego faz parte de um pacote triplo de investimento estatal – o trio se completa com o Plano de Resgate (estímulo de 1,9 trilhão de dólares já votado pelo Congresso) e o ainda pendente Plano Família (que consistiria em auxílio financeiro para educação e outros itens). Somados, os três planos significam, na teoria, uma injeção estatal de algo entre 4 e 6 trilhões de dólares para dar impulso à recuperação econômica em curso. Embora as projeções indiquem que esta recuperação será robusta no curto prazo (o Federal Reserve estima crescimento acima de 6%), ainda que haja dúvidas sobre sua sustentabilidade, seus frutos serão distribuídos de forma tão desigual quanto o impacto da crise social produzida pela pandemia do coronavírus.

Quais são as chances do plano ser aprovado no Congresso? Por enquanto, permanece um mistério, mas tudo indica que a estrada será tortuosa e que envolverá negociações árduas que provavelmente acabarão arquivando o plano original. O próprio Biden já se antecipou e disse que está aberto a “novas ideias” para financiar seu plano.

Vamos começar falando da burguesia. Sem dúvidas, diante do espantalho de mais quatro anos de trumpismo e do surgimento de um processo de luta de classes sem precedentes nas últimas décadas, a “América corporativa” apostou na presidência de Biden como um governo de transição. O Plano de Resgate foi saudado por Wall Street com uma alta nos ativos, mesmo que tal plano seja baseado em um aumento massivo da dívida pública (que hoje se encontra em volta de 130% do PIB). Janet Yellen, secretária do Tesouro, transmitiu uma convicção de que o endividamento a tal nível não chega a ser um risco.

Mas, ao contrário do Plano de Resgate, o Plano de Infraestrutura será financiado com um aumento no imposto a empresas, praticamente revertendo a redução fiscal de Trump em 2017. O imposto irá de 21% para 28%, um aumento que empresários e republicanos rechaçam, ainda que esteja bem abaixo dos 35% da administração Obama.

Esse aumento nos impostos corporativos colocou na defensiva alguns setores da burguesia que já estão acionando seus lobistas para conseguir isenções, como AT&T, UPS, FedEx, a Associação Nacional de Fabricantes e a Câmara de Comércio dos Estados Unidos. Inclui-se aí também o setor de energia fóssil, que se beneficiou enormemente de reduções fiscais e subsídios extras do governo Trump durante os piores meses da pandemia, mas que mesmo assim reduziu seu quadro de funcionários em 16%.

Outra força importante são os sindicatos. A burocracia sindical AFL-CIO é uma importante peça da base do governo de Biden, e o presidente os vê com bons olhos por enquanto. Na apresentação do Plano de Emprego, Biden se definiu como um union guy [sindicalista], disse que são os trabalhadores que constroem o país, não Wall Street; e finalmente, terminou denunciando que os “1%” dos estadunidenses mais ricos somaram 1,3 trilhões de dólares a suas fortunas no horrível ano da pandemia, enquanto milhões perdiam seus empregos.

Biden assegurou que seu plano de infraestrutura, junto ao Plano de Resgate, vai criar por volta de 18 milhões de postos de trabalho sindicalizados e bem pagos dentro dos próximos quatro anos, além de potencializar o crescimento econômico, diminuir a emissão de carbono para combater a mudança climática e melhorar a posição dos Estados Unidos em sua competição com a China. Prometeu também restabelecer o direito à livre associação sindical depois de décadas de ofensiva patronal e estatal contra os sindicatos, o que resultou em um colapso da taxa de sindicalização, a qual hoje se encontra em um histórico patamar mínimo (10,8% dos trabalhadores, apenas 6,3% no setor privado).

No entanto, vários sindicatos tradicionais do setor automotivo e de energia já questionaram as promessas de Biden, uma vez que as empresas de energia renovável pagam salários significativamente mais baixos e praticamente não têm sindicatos. Além disso, a conversão eliminaria cerca de 130 mil empregos na indústria de energia fóssil, mais especificamente em gás e carvão.

Por último, falemos do Congresso. Em um senado paritário, dividido exatamente na metade entre republicanos e democratas, a vice-presidente Kamala Harris dá o voto de minerva. Isso foi determinante para aprovar o Pacote de Resgate que recebeu apenas votos democratas. Mas não está claro se a maioria absoluta de 60 votos para aprovar o Plano de Infraestrutura pode ser abalada e o plano não passar. Isso daria aos republicanos a possibilidade de bloquear a votação recorrendo ao “filibusterismo” (uma tática de obstrução parlamentar através da oratória, o que inclui, por exemplo, a leitura de receitas ou de romances até que se vença o prazo de votação).

No caso de que seja aprovado por maioria, também não está claro se todos os democratas votariam a favor. Provavelmente a ala esquerda do partido o fará. Ainda que Alexandra Ocasio Cortez e outros referentes do setor, como Bernie Sanders, já tenham criticado o plano por considerá-lo insuficiente (comparado com a proposta original do Green New Deal, que previa um investimento estatal de 10 trilhões de dólares e que foi rechaçada por Biden), fala mais alto a lógica do “mal menor”, para “não fazer o jogo da direita” republicana. Mas há dúvidas sobre os votos dos democratas conservadores, entre os quais há críticos ao plano e que, para votar a favor do pacote de estímulo, pediram que se retirem pontos fundamentais para os trabalhadores, como o aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora.

O destino do plano e seu conteúdo final dependem, em última instância, da relação de forças entre todos esses atores. Biden, porém, se apoia em analogias históricas com seu programa de 100 primeiros dias de governo para virar a balança em seu favor.

Em seu discurso de posse, em 20 de janeiro de 1961, o presidente democrata John Fitzgerald Kennedy sintetizou de maneira magistral as lições que a classe dominante havia tirado da crise de 1930. “Se uma sociedade livre não é capaz de ajudar os pobres, ela é incapaz de ajudar os poucos que são ricos”, disse Kennedy. Ele não falava exatamente aos “muito pobres” (dos quais uma boa quantidade havia votado nele, e uma outra porção em Richard Nixon, um republicano populista de antes disso existir, que se apresentava como um homem comum enfrentando a elite). Ele falava fundamentalmente à grande burguesia, que o via com suspeitas. Kennedy estava convencido de que, para enfrentar a “ameaça comunista” e manter a liderança imperialista mundial, era necessário estender a ilusão do “sonho americano” aos que não estavam nele incluídos, principalmente a comunidade afrodescendente.

Não era um problema ideológico, e sim material. Como explica o historiador Joshua Zeitz, no país mais rico do mundo, e em anos de prosperidade sem precedentes, 34 milhões de norte-americanos, ou seja, 22% da população eram pobres, segundo as estatísticas oficiais, e isso alimentava uma profunda insatisfação popular. A combinação do crescimento do movimento pelos direitos civis e a população pobre poderia ser muito explosiva.

A tradução política dessa situação material foi uma série de medidas assistencialistas que Kennedy não chegou a implementar pois foi assassinado no meio de seu mandato, e que se transformaram no programa de governo de seu sucessor, Lyndon Johnson, que anunciou uma verdadeira “guerra contra a pobreza”, mas ficou mais conhecido por ter iniciado a guerra do Vietnã. Este programa, conhecido como Great Society, ainda que fosse uma versão distorcida do New Deal de Roosevelt, funcionou como um Estado de Bem Estar Social europeu, adaptado à realidade dos EUA: onde não existiam partidos trabalhistas reformistas de massas, como a social democracia do velho continente. Se na política doméstica a assistência estatal estava ao serviço de alcançar a paz mediante a cooptação de movimentos potencialmente disruptivos, no plano exterior era parte da Guerra Fria com a União Soviética.

Sessenta anos depois, a realidade é muito diferente, porém ainda tem algumas semelhanças com a década de 1960. A crise social que segue se arrastando, produto da pandemia de coronavírus, e também suas consequências desenham um panorama desolador para a principal potência imperialista, golpeando principalmente as comunidades afro-americanas e imigrantes. A desigualdade alcançou níveis escandalosos. A taxa de pobreza chega aos 12%, mas na segunda metade de 2020 seu crescimento foi o mais acelerado desde a década de 1960. Noventa milhões de pessoas ou não têm plano de saúde algum ou, o que têm, não é suficiente para oferecer qualquer segurança. Há também a iminência de uma crise de despejos que pode deixar milhões de famílias desabrigadas por não terem condições de pagar os aluguéis, e o salário mínimo ainda é de 7,25 dólares por hora, o mesmo de 2009.

A “fase populista” de Biden, um velho político tradicional do establishment democrata, é explicada sobretudo por essas circunstâncias, postas à mostra com a crise capitalista de 2008, que teve como resultado uma profunda polarização política e social que levou Trump à presidência, um ressurgimento da luta de classes num sentido amplo (com seu ponto mais alto no levante contra o racismo e a violência policial pelo assassinato de George Floyd) e o surgimento de novos fenômenos políticos que, tomados de conjunto, podem anunciar uma maior radicalização política.

A aposta da burguesia e do governo Biden é o desvio e a cooptação da classe trabalhadora através de diversas burocracias: sindicais, políticas e de movimentos sociais. Nós, que construímos o Esquerda Diário, assim como nossos colegas do Left Voice nos Estados Unidos e do La Izquierda Diario pela América Latina, apostamos que os trabalhadores e as minorias oprimidas – mulheres, jovens, negros, LGBTs – possam tomar plena consciência de sua força.

Atualmente na Amazon há uma grande batalha pelo direito de sindicalização. Sua vitória apresentaria a outros trabalhadores e trabalhadoras um caminho a seguir. Os trabalhadores, os jovens recém despertos à vida política e que se identificam como “socialistas”, os que deram vida ao movimento Black Lives Matter, às comunidades latinas e de imigrantes: todos esses não podem confiar no partido democrata que, historicamente tem sido o veículo da burguesia imperialista para evitar que os explorados avancem num sentido revolucionário.

Esta situação convulsiva evidencia a necessidade de se construir uma organização independente dos partidos imperialistas, composta pela classe trabalhadora e os setores oprimidos, que unifique a luta contra o racismo, capitalismo e o Estado imperialista norte-americano em uma perspectiva socialista.


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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