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A experiência do Ateliê Popular da Escola de Belas Artes de Paris no Maio de 68

Luno P.

A experiência do Ateliê Popular da Escola de Belas Artes de Paris no Maio de 68

Luno P.

Maio de 68 na França foi um momento marcante de convergência da arte com a luta de classes, tendo a força dos trabalhadores em aliança com a juventude enquanto um guia para a estética. Aqui, nesta breve contribuição, retomaremos a experiência do Ateliê Popular da Escola de Belas Artes de Paris e suas lições para pensar a função da arte e do artista, e qual o papel da estética na luta de classes.

OS ANTECEDENTES DO MAIO DE 68

Em 22 de março de 1968, uma sexta-feira, estudantes da Universidade de Nanterre, na região parisiense, ocupam o 8° andar do prédio da reitoria para protestar contra a prisão de ativistas do comitê CVN, um grupo formado por intelectuais como Jean-Paul Sartre, que havia saqueado, dois dias antes, uma agência da American Express em Paris em repúdio à intervenção americana no Vietnã. Dois militantes detidos eram estudantes de Nanterre. Essa ocupação deu origem ao Movimento Estudantil de 22 de Março, um marco na contagem regressiva para o incendiário Maio de 68.

A repressão ao 22 de março pela polícia de Charles de Gaulle, presidente da França na época, foi a “faísca que incendiou a cidade”. Ao fim de abril, é preso um de seus principais dirigentes, Daniel Cohn-Bendit, o Dany, le Rouge. Os estudantes da Universidade de Sorbonne, a mais importante da França, se mobilizaram em solidariedade com os estudantes de Nanterre que haviam sido presos, enquanto isso, o Partido Comunista Francês (PCF) acusava os manifestantes de serem “grupinhos ultra-esquerdistas” influenciados pelo trotskismo. É nesse meio tempo que a universidade de Sorbonne é fechada pelo governo, o que levou os estudantes a chamarem uma greve geral universitária pela liberdade dos presos e pela retirada da polícia do Quartier Latin (que cercava a Sorbonne neste bairro universitário).

Cartaz traz Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes da revolta de Maio de 1968, com a ‘legenda nós somos todos indesejáveis' — Foto: Atelier Populaire/École de Beaux Arts
Cartaz traz Daniel Cohn-Bendit, um dos líderes da revolta de Maio de 1968, com a ‘legenda nós somos todos indesejáveis’ — Foto: Atelier Populaire/École de Beaux Arts

Neste processo, se generalizou por todas as universidades e escolas a profunda organização estudantil que marcou 68, com os seus combates de rua e as barricadas, que chegaram ao ponto culminante no dia 10 de maio. Nesse dia, as barricadas chegaram a mais de 60, marcando a data como “A noite das barricadas”. Nesta noite, juntaram-se aos estudantes centenas de jovens trabalhadores que se sentiam identificados com a juventude insubmissa que se levantava contra os ataques do governo de Charles de Gaulle, do imperialismo estadunidense que invadiu o Vietnã, que lutava pelos seus direitos civis e contra a universidade regida por seu caráter de classe dominante. Esses jovens operários haviam sido abandonados pelo PCF já em 1967, nas greves operárias que explodiram na França. Com a ajuda dos vizinhos do Quartier Latin, os jovens estudantes e trabalhadores impediram a entrada da polícia em Nanterre. É nesse momento que as centrais sindicais se viram obrigadas a chamar uma greve geral para 13 de maio. Ali se consolida a unidade entre estudantes e trabalhadores, se conformando na maior greve da França: mais de 9 milhões de trabalhadores e mais de mil estudantes se manifestaram em Paris e dezenas de cidades contra De Gaulle e sua política.

Entre os trabalhadores se estenderam rapidamente as ocupações de fábricas, muitas com sequestros de patrões e empresários de menor escalão. Os jornalistas que serviam as imprensas “gaullistas” investiam na dramatização dos eventos, com fotos chocantes e manchetes sensacionalistas, se mobilizando para produzir até 10 páginas por dia sobre os protestos, o que cobria um terço de jornais como o Le Monde. Paralisou-se os transportes, os estaleiros, o gás, a eletricidade, entre outras categorias, o que levou o PCF e a CGT a girarem ainda mais esforços para separar o movimento estudantil dos trabalhadores, organizando seus militantes para impedir a solidariedade entre os dois setores.

Cartaz trás os principais partidos da França em 68, incluindo o Partido Comunista Francês, enquanto do governo francês, sendo derrubados pelo poder popular — Foto: Atelier Populaire/École de Beaux Arts

De Gaulle regressa do exterior para “colocar ordem” e chama um referendo sobre a reforma social e universitária. Mas “a ordem” não chegava. Seguiam as manifestações, enfrentamentos com a polícia, greves de estudantes e trabalhadores assim com as tendências a unificarem-se apesar de suas direções. No 24 de maio, uma nova “noite de barricadas” termina com um morto e 500 feridos. Em Nantes, se somam também os campesinos, que invadem a cidade sob o lema “Não ao regime capitalista, sim à revolução completa da cidade”.

Cartaz comparando Charles de Gaulle, Franco e Salazar — Foto: Atelier Populaire/École de Beaux Arts

O ATELIÊ POPULAR E A ARTE ENQUANTO ARMA SOCIAL

No dia 8 de maio de 1968, entrou em greve a Escola de Belas Artes de Paris, que ficava a cerca de 1 km de distância de Sorbonne, centro do movimento. Em poucos dias depois, a ocupação atraiu a adesão de dezenas de artistas e intelectuais. No local, especificamente no departamento de litografia, os manifestantes fundaram, no dia 14 de maio, o Ateliê Popular, uma oficina onde foram produzidos ao menos 300 cartazes emblemáticos do movimento de Maio de 68.

O historiador de arte francesa Eric de Chassey afirma que o que se produziu ali é bem oposto ao que se produzia na tradicional escola de Belas Artes, tendo o estilo dos cartazes, que acabava sendo bem diverso, surgindo da urgência e dos meios muito limitados de produção, o que obrigava aos estudantes e artistas a buscar os meios mais eficazes e menos complexos possíveis. Foi aí que, na primeira assembleia da ocupação da Belas Artes, foi votado o uso da serigrafia na construção dos cartazes. Os artistas usavam diferentes tipos de papel, como reciclado, de cartazes e de jornal, e buscavam esse material em toda parte, uma vez que não tinham dinheiro para comprá-lo. Funcionários de jornais em greve, como "Le Figaro", doaram rolos de papel jornal aos estudantes e artistas a fim de contribuir com o movimento. A simplicidade aparente dos cartazes era revestida pela complexidade das ideias que ali eram expressas. As perguntas que guiaram a produção eram: a ideia política é justa? O cartaz transmite bem esta ideia?

Assembleia Geral, maio de 1968 — Foto: ©Philippe Vermès/ Beaux-Arts de Paris

Naquele momento, a própria noção de arte imposta pela burguesia foi posta em questão. Na porta do Ateliê, já estava posto o tom de contestação da universidade de classe e da arte a serviço dos interesses da burguesia, colocando quem ali se colocava na produção de cartazes como sujeitos que assumiram uma posição ao lado da classe trabalhadora.

“Trabalhar no Ateliê Popular é apoiar concretamente o grande movimento dos trabalhadores em greve que ocupam as fábricas contra o governo gaullista antipopular. Pondo todas as suas capacidades ao serviço da luta dos trabalhadores, cada um neste atelier trabalha para si, porque se abre pela prática ao poder educador das massas populares”.

É nesse sentido que o primeiro cartaz produzido dizia Usines - Universités - Union (Fábricas - Universidades - Unidade), apontando a necessidade da aliança operária estudantil como um dos elementos estratégicos que baseavam a produção artística.

Usine, Université, Union (Usina, Universidade, União, em tradução livre) — Foto: Atelier Populaire/ Beaux-Arts de Paris

Muitos dos projetos foram realizados por equipes dos ateliês que se revezam dia e noite. Formam-se depois dezenas de equipes de coladores, às quais se juntam os comitês de ação dos bairros e os comitês de greve das fábricas.

‘O patrão precisa de você, você não precisa dele’, diz cartaz — Foto: Atelier Populaire/ École de Beaux Arts

Ateliê Popular foi um mecanismo de auto organização dos estudantes, onde participaram mais de 300 artistas e milhares de estudantes. Apesar de toda a abertura e da quantidade de artistas envolvidos, os cartazes têm uma unidade verdadeiramente original. A maior parte dos cartazes são textos e manuscritos. As palavras de ordem, as mensagens transcritas, são marcadas por uma profunda combatividade que refletia o que se gritava na rua. Os cartazes absorviam a espontaneidade juvenil do movimento e difundiam rapidamente as palavras de ordem e as temáticas: De Gaulle, os CRS (polícia de choque) e a sua violência, a liberdade, as greves nas fábricas, etc.

Policial é retratado em cartaz como oficial nazista — Foto: Atelier Populaire/ École de Beaux Arts

Na sua busca em dividir o movimento, as centrais sindicais (CGT, CFDT, FO, etc.) concordam com o governo e os empresários para firmar os “acordos de Grenelle”. Estes acordos se consolidam em 27 de maio e estabelecem um aumento salarial, a redução da jornada de trabalho e outras concessões, o que foi rechaçado como um desvio da luta pelos trabalhadores da fábrica Renault e Citroën. De Gaulle se preparava para uma possível intervenção militar, apoiando-se em manifestações de direita que diziam “Não ao comunismo”. Dissolveu o parlamento, suspendeu o referendo e adiantou as eleições legislativas. Em junho, ainda seguem as barricadas, porém a divisão imposta pela burocracia deixou ilhada a vanguarda que se opunha a sua política. Neste momento começa o ciclo de repressão policial que levou a morte de estudante, a morte de um trabalhador na fábrica da Pegeot, e a desocupação da Sorbonne. De Gaulle triunfa nas eleições legislativas, porém as greves de vanguarda se estenderam até maio de 1969. Embora De Gaulle perca um referendo nesse ano e renuncie, se realizam eleições presidenciais em junho onde ganha o anterior ministro de De Gaulle, Georges Pompidou.

É neste momento que acontece uma retomada à normalidade. Um cartaz ironiza está volta ao normal mostrando um rebanho de ovelhas caminhando obedientemente na direção da empresa.

Retorno à vida normal — Foto: Reprodução/ Atelier Populaire/ Bibliothèque Nationale de France

O movimento estudantil perde o fôlego, porém ainda vivia nos cartazes um sentido de continuidade da luta.

A luta continua — Foto: Atelier Populaire/ École de Beaux Arts

Slogan ’a luta continua’, combinando desenho do punho levantado e forma de uma empresa — Foto: Atelier Populaire/ École de Beaux Arts

A LUTA DE CLASSES ENQUANTO O GUIA DA ESTÉTICA

O processo histórico do Maio de 68 e a experiência do Ateliê Popular da Escola de Belas Artes nos possibilitam tirar lições sobre os caminhos que apontam para uma estética profundamente compenetrada pela luta de classes. É possível fazer paralelos com o que Trotski e Breton discutiam no Manifesto da FIARI contra o indiferentismo político dos artistas, onde colocavam que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior. Assim também versava Mário Pedrosa na conferência As Tendências Sociais da Arte e Kathe Kollwitz, quando dizia que a arte, como qualquer outra manifestação social, é corroída interiormente pelo determinismo histórico da luta entre os diversos grupos sociais. Sendo o fenômeno estético uma atividade social como outra qualquer, está por isso mesmo situado pelo conjunto de todas as outras manifestações da sociedade, isto é, por uma determinada civilização. Sendo assim, na sociedade cortada pelo mais terrível antagonismo de classe, só atingirá público, ou pelo menos a uma forma classista de consciência pública, sendo revolucionária. Desta forma de consciência geral, só uma das duas classes em luta tem o direito de representar. Não só pelo número crescente, como pelo formidável papel histórico a que está destinada- esta classe é o proletariado moderno.

Esse sentido histórico da função da arte esteve presente na juventude do Maio de 68. Estava presente no espírito de “é proibido proibir”, que ganhou inscrições nos muros franceses naquela época – inspirando a Tropicália brasileira – , e que evidenciava o desejo de liberação sexual da juventude da época e da defesa dos direitos das mulheres e dos homossexuais. Estava presente na aliança de estudantes e trabalhadores e da “Universidade - Fábrica - Unidade”. Neste pequeno artigo, buscamos retomar essa experiência histórica para embasar, no campo da estética, nossos futuros combates.


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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