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COTAS ÉTNICO-RACIAIS NA USP | A conquista das cotas na USP é um enorme passo para lutarmos pelo fim do vestibular

Nesse artigo, fazemos uma primeira análise sobre a importante conquista das cotas étnico-raciais na USP e sua relação com o momento em que estamos vivendo. Buscamos apontar também quais são os próximos passos da luta e como podemos transformar essa conquista em um enorme ponto de apoio para acabar com o filtro social e racial do vestibular.

Odete AssisMestranda em Literatura Brasileira na UFMG

Marcello Pablito Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.

quinta-feira 13 de julho de 2017 | Edição do dia

A conquista histórica das cotas étnico-raciais na USP, foi fruto de uma luta de décadas do movimento negro dentro e fora da USP, e nos últimos anos dois encampada por funcionários, estudantes e setores de professores. Essa pressão interna se combinou com a profunda transformação na maneira com que as relações raciais são entendidas no Brasil. Essa transformação é fruto da histórica luta de Junho de 2013, aos efeitos da crise econômica, aliados à intensa crise política que o Brasil atravessa. Essa transformação, entre outros aspectos, tem tido como fruto o maior reconhecimento da existência do racismo no Brasil, o que se choca com o ainda muito forte mito da democracia racial, segundo o qual não há racismo generalizado no Brasil.

Sentimos isso a cada dia, seja saindo nas ruas e nos deparando com dezenas de negros levantando seus blacks com orgulho e reafirmando sua identidade. Movimento que acontece também pela entrada em cena da classe operária, que no Brasil é majoritariamente negra, que mesmo com o boicote de suas direções, vem protagonizando importantes ações na luta contra as reformas que afetarão profundamente as vidas de milhões de trabalhadores e jovens.

O peso da herança histórica do racismo estrutural, que surge junto com o capitalismo como base para a sustentação desse sistema econômico, começa a se tornar um barril de pólvora em um país com a maior população negra fora do continente africano. A junção de todos esses elementos internos e externos, foi fundamental para colocar as burocracias universitárias, da USP e Unicamp, em uma encruzilhada onde foram obrigadas a aprovar as cotas étnico-raciais, a contragosto seu e de muitos setores da elite burguesa.

Uma conquista que só fortalece a luta para acabar com o filtro social e étnico-racial do vestibular

A proposta de cotas étnico-raciais aprovadas na USP não foi a reivindicação apresentada pelo conjunto do movimento que, diga-se de passagem, a reitoria nem se deu ao trabalho de pautar. Mesmo assim, a aprovação de um percentual de cotas para pretos, pardos e indígenas, constitui uma conquista para todo o movimento e nos deixa muito melhor localizados para seguir batalhando por cotas proporcionais ao número de negros do estado de São Paulo, para a implementação do vestibular diferenciado para a população indígena e para conquistar muito mais, buscando acabar com o filtro social e racial do vestibular, que hoje deixa de fora do acesso ao ensino superior, público e gratuito, milhares de jovens todos os anos. Só em 2017, foram mais de 136 mil inscritos na FUVEST (exame de vestibular que seleciona os ingressantes da USP), para menos de 9 mil vagas.

Após a vitória da cotas, a reitoria buscou rapidamente se relocalizar e tentar passar a imagem de quem sempre defendeu as cotas raciais. Justamente a reitoria da universidade que está processando estudantes e funcionários por lutarem por...cotas!

O acesso às universidades públicas hoje é extremamente elitizado e excludente. E o vestibular é o meio pelo qual se perpetua essa lógica meritocrática, que ignora complemente o fato de que em um país tão desigual quanto o nosso as condições sociais, econômicas e até mesmo históricas para realizar uma prova como a Fuvest são completamente diferentes. Fazendo com que dessa forma, somente um número ínfimo da população consiga ter acesso ao ensino superior gratuito, onde a população negra e indígena, devido as condições proporcionadas pelo racismo, são as que encontram as maiores dificuldades para passar em um exame como esse.

A ampla maioria da população negra e de baixa renda que tem acesso ao ensino superior está nas universidades privadas, que viraram um verdadeiro balcão de negócios altamente lucrativos para os capitalistas. A manutenção de um vestibular – ainda mais um vestibular feito sob medida para os alunos de escolas privadas – como um filtro é parte da manutenção dessa lógica de que o ensino superior de qualidade não pode ser para todos. Universidades públicas continuam restritas a um pequeno setor que consegue furar esse filtro social e racial, enquanto as universidades e faculdades privadas se tornam empresas altamente lucrativas para seus donos, sem se importar com a qualidade do ensino, como podemos ver na crise da FMU, ou nos grandes conglomerados de educação privada, como a Kroton/Anhanguera. Lutar pelo fim do vestibular é lutar contra essa lógica de educação como mercadoria, acabando com esse filtro social e defendendo que todas as universidades privadas sejam estatizadas sob controle daqueles que estudam e trabalham.

Um combate ao racismo dentro e fora das universidades

Essa luta pelas cotas étnico-raciais é parte da luta contra o racismo estrutural da USP. Racismo esse que se expressa não só no fato de apenas 10% dos estudantes serem negros, mas também no fato de que a ampla maioria dos negros que entram na universidade, são para ocupar os postos de trabalho mais precários, seja como funcionários efetivos do bandejão e da prefeitura do campus, seja como trabalhadores terceirizados. Racismo presente quando a polícia que mais mata no país, por ordens da reitoria começa a ter livre acesso ao campus e passa a enquadrar jovens negros sem qualquer motivo, como aconteceu recentemente com um trabalhador membro do sindicato preso por ser negro, e como acontece tantas vezes com os jovens da comunidade ao lado, a São Remo.

Racismo que se escancara na perseguição e tentativa de punir aqueles que lutaram por cotas, como os estudantes e trabalhadores que estão sendo processados pela reitoria, que no último sábado demagogicamente publicou artigo na Folha de São Paulo fingindo que era favorável as cotas étnico-raciais. Racismo esse que se perpetua nas salas de aula, quando a história do nosso povo é apagada dos livros, quando se inventam teorias racistas para justificar a desigualdade existente, como aquele professor que em pleno século XXI teve a audácia de dizer numa sala de aula que os negros são biologicamente inferiores que os brancos. Racismo que faz com que o conhecimento produzido aqui dentro esteja a serviço das grandes empresas, que vão lucrar milhões com a pesquisa, ao invés de colocar o nosso conhecimento à serviço de resolver os problemas que afetam a ampla maioria da população, como a falta de moradia, de saneamento básico, a busca pela cura de doenças, como a febre amarela, o dengue, entre outras.

Essa conquista nos dá força e exige novos desafios. Nosso combate agora é pela ampliação do acesso através das cotas étnico-raciais até que seja proporcional ao número de negros e indígenas do estado, e pela adoção das cotas também na pós-graduação e nos concursos públicos. Afinal dos 6 mil professores que hoje dão aula na USP, apenas 120 são negros. Nossa luta segue pela garantia da permanência estudantil para todos os estudantes negros, indígenas e de baixa renda, e também para os estudantes de países africanos, que necessitem desse auxilio para continuar seus estudos e se formar. Mas essa conquista também fortalece a luta contra a expressão do racismo perpetrado sistematicamente pela reitoria em relação aos trabalhadores terceirizados; pode ser uma trincheira para um combate profundo, levado adiante também por setores do movimento negro, estudantes, funcionários e professores, para que os trabalhadores terceirizados sejam incorporados sem concurso público e tenham os mesmo salário que os efetivos.

A luta por cotas precisa questionar também o próprio vestibular, lutar contra esse sistema de ingresso racista e elitista e contra essa estrutura de poder antidemocrática e racista. É preciso tomar o destino da USP em nossas mãos! Lutar por um Congresso Estatuinte livre, soberano e democrático, onde possamos debater nossas propostas sobre como gerir a universidade, acabando com a o regime de reitorado e com o Conselho Universitário, para que a universidade possa ser gerida por uma administração composta de funcionários, professores e maioria de estudantes. Somente assim a USP estará de portas abertas à juventude negra, seu conhecimento estará à serviço da população; somente assim os funcionários terão plenos direitos e salários compatíveis com uma vida digna a si e a suas famílias. Essa é nossa aposta.




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