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RACISMO E CAPITALISMO | A Escravidão como base fundamental do Capitalismo

Por que não estudamos a história do Haiti? A importância de se estudar a história haitiana é nada mais que a importância de se resgatar nossa própria história, que sofre da alienação por um propósito bem específico, que é de retirar o conhecimento de nossas próprias forças.

quarta-feira 24 de agosto de 2016 | Edição do dia

“Eu não sou um homem e um irmão?”
“Eu não sou uma mulher e uma irmã?”

Campanha abolicionista britânica do final do século XVIII e início século XIX.

Gostaria de começar meu texto com um questionamento ao leitor: Por que não estudamos a história do Haiti? Ao leitor desavisado, fruto da educação nas escolas que enaltece a história “oficial” branca e das classes dominantes – que ainda hoje vigora mais do que nunca com o “Escola Sem Partido” - a minúscula porção de terra que faz divisa com a República Dominicana na América Central passa despercebia aos seus olhos, até mesmo dos que se interessam pela história do povo negro e das populações africanas.

Porém, estamos falando sobre uma das primeiras colônias a receber a mão de obra escrava e que no seu melhor período econômico era o país que mais comprava africanos, a principal fonte de recursos do gigantesco império francês, que depois da emancipação dos Estados Unidos, se tornou a principal e mais próspera fonte de recursos para o mercado mundial no Novo Mundo. É o primeiro e único país a efetivar uma revolução negra e abolir a escravidão pelas próprias mãos dos escravos e sua história ainda se faz recente, com a miséria, a exploração, os imigrantes haitianos vindos ao Brasil como mão de obra barata e as ocupações militares no país ocorridas durante o período de Lula, que vigoram até hoje.

Então por que os historiadores se esforçaram tanto para colocar o Haiti embaixo do tapete?

Para isso precisaremos compreender a ligação entre o Capitalismo moderno e a escravidão dos tempos da colônia de São Domingos, o antigo Haiti. Geralmente alguns setores de estudiosos argumentarão que o período da escravidão está ligado unicamente a moral de uma monarquia europeia atrasada, dos feudos e da busca por novos recursos, algo que morreu com o surgimento do nosso atual sistema econômico e que não está nada relacionado com os patrões das fábricas e escritórios ou com os teóricos do liberalismo.

“A triste ironia da história humana”, segundo o político francês Jean Léon Jaurès, era o fato de que a Revolução Francesa foi erguida somente por causa do comércio de negros e a produção escravista. Toda burguesia francesa da época, seja a detentora das fábricas ou da burguesia marítima – detentora e produtora de barcos, inclusive os negreiros – e até das próprias burguesias latifundiárias e comerciais, que lideraram a Revolução, estavam intrinsecamente ligadas a escravidão, sem a qual, não existiriam. A partir do século XVIII já haviam 16 fábricas na França só para refinar o açúcar bruto vindo do Haiti, os comerciantes prosperavam como nunca.

Nos períodos posteriores a Revolução, já na época da ascensão das burguesias europeias, os maiores impérios da época disputavam entre si: França e Inglaterra. Num plano bem articulado, os patrões franceses incentivaram e financiaram a independência da colônia americana – maior fonte de recursos da época – não com o intuito da liberdade, mas para atacar os recursos dos patrões britânicos, o que abriu o caminho para colônia de São Domingos prosperar como nunca, e conquistar o posto de melhor colônia.

A Inglaterra, em desvantagem, mudou sua estratégia a partir da independência dos EUA. A burguesia britânica, que detinha fábricas de tecer algodão nas Índias Orientais, o que fazia com que também lucrasse com a escravidão, iniciou uma arriscada campanha abolicionista, no intuito de atacar o maior posto da França. Os anos de 1780 foram dos acadêmicos e eruditos contra a escravidão, escondendo a sua real intenção com teorias cristãs e humanistas.

Com o crescimento da burguesia industrial britânica que clama pelo comércio livre – que inclusive colocou os trabalhadores da Índia em condições desumanas – crescem os ataques ao comércio agrícola. Teóricos como Adam Smith e Arthur Young são os precursores da nova era, sua responsabilidade é convencer os patrões de quão caro é o sistema escravista e da necessidade do trabalho assalariado, que possibilita o sistema de mais-valia e trabalhadores com poder de consumo.

Dentro dos intelectuais precursores da Revolução Francesa, como Condorcet e Robespierre, se iniciam movimentos abolicionistas baseados nos ideais iluministas – a sociedade Amigos dos Negros – o que foi muito bem recebido pela burguesia britânica, que inclusive financiou a campanha antiescravagista dos franceses. William Pitt, um primeiro-ministro e discípulo de Smith, foi quem enviou a proposta de abolição ao Parlamento, que foi recusada.

Enquanto isso, o Haiti prosperava como nunca na história das colônias. Sua população dobrava de tamanho enquanto africanos chegavam aos montes. Cerca de meio milhão de escravos, sendo dois terços nascidos na África, fazendo da pequena ilha uma gigantesca bomba de ódio de classe. Com o aumento dos escravos, crescia o medo e os castigos dos patrões, tanto que já nem se obedecia mais o Código Negro da época, que regia as leis perante os escravos. Afinal, o que garante a paz social não é a prosperidade do país, mas sim o equilíbrio entre as classes.

A monarquia estava falida e era alvo das revoltas camponesas, a aristocracia europeia já bem engordada pela escravidão não se demorou a aproveitar o momento perfeito para o ataque ao Estado francês. Em setembro as notícias chegaram ao porto de Le Cap, em São Domingos. No dia 14 de julho de 1789 a Bastilha havia caído, a ordem dos poderes a partir dali, tenderia a agravar a mudança que já estava ocorrendo. Se antes nobres e camponeses, agora patrões e trabalhadores. Mas como ficam os escravos nessa história?

Apenas um setor minoritário da Revolução reivindicava a abolição, principalmente porque o maior setor de sua liderança era a burguesia marítima, que nem podia sonhar com o fim do seu comércio. Porém, os ideais da Revolução os empurraram pra mais longe do que eles queriam. Em 1790, um ano após a Revolução, os mulatos – termo utilizado pelo autor CLR James para designar uma classe social de São Domingos de pessoas mestiças e livres – se rebelaram contra os brancos proprietários. Em 1791, se inicia a revolta escrava. Em 1792, os Girondinos foram obrigados a garantir direitos políticos e sociais aos mulatos.

A partir de 1792 a revolta dos negros eclodiu e só cresceu em São Domingos, sem apoio algum de qualquer outro setor, nem mesmo dos mulatos livres. Uma revolta liderada do começo ao fim apenas por ex-escravos, que até então não sabiam nem ler ou escrever, enfrentaram as tropas que defendiam os senhores que até hoje levam a fama dos mais violentos da história da escravidão africana. A ilha de São Domingos foi dividida em duas colônias, uma francesa e outra espanhola – por isso hoje na mesma ilha se encontram Haiti e República Dominicana – e os espanhóis começam a apoiar a revolta dos negros contra seus senhores franceses por seus próprios interesses econômicos.

Toussaint L’Ouverture, principal líder da revolução escrava, liderou cerca de 4 mil tropas negras contra os exércitos franceses e britânicos. Em 1792 a França começava seu triunfo revolucionário contra o antigo regime e agora, as massas que antes eram indiferentes a causa das colônias, num súbito de solidariedade revolucionária, empurraram os dirigentes da revolução para a causa escrava. Com o apoio dos aristocratas mulatos, das massas francesas e de um setor erudito da burguesia, em 1794, sem discussão, foi decretada a abolição da escravatura em território francês.

Após a abolição, L’Ouverture rompe sua aliança com os espanhóis e se alia com os franceses. As massas negras tomam o controle de São Domingos e em 1801 é decretada uma Constituição autônoma, a primeira a decretar o negro enquanto cidadão de uma nação. Entretanto, as tropas de Napoleão Bonaparte, na tentativa de manter uma colônia francesa, retiram Toussaint L’Ouverture do posto de governador e o deportam pra França. Somente em 1804, sob o comando de Dessalines, o Haiti finalmente conquista sua tão sofrida independência.

Independente das distorções dos historiadores e acadêmicos, ou dos políticos e empresários midiáticos, a história da revolução que foi o marco de ruptura para o mundo moderno foi construída em larga escala pelas mãos de escravos, e só ousou por mais por causa dos trabalhadores do mundo, assalariados ou não. Não aprendemos sobre a história do Haiti nas escolas e universidades porque ela simboliza de maneira mais precisa a realidade sobre o nascimento do regime dos patrões: A maneira como acumularam suas riquezas, de como se industrializaram, de quais eram suas reais intenções e qual era sua moral.

A história oficial teima em romantizar figuras como da Princesa Isabel, que como qualquer outro a serviço do mercado mundial, só decretou a abolição movida por interesses econômicos e por pressão das próprias massas revoltadas. Figurões como Luciano Huck, vão romantizar a ação das tropas brasileiras no Haiti, que nada mais fazem senão gestionar a miséria que o país sofre desde o período de sua independência, fruto de constantes invasões, embargos e tributos aos países maiores, por ser apenas uma ilha ideologicamente isolada do resto do mundo.

A importância de se estudar a história haitiana é nada mais que a importância de se resgatar nossa própria história, que sofre da alienação por um propósito bem específico, que é de retirar o conhecimento de nossas próprias forças. Somente nós, a classe que é oprimida e explorada no regime democrático da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, poderemos nos salvar das misérias e assédios cotidianos, independente dos patrões e de seus governos.




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