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DIA NACIONAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL | 18 de maio – na pandemia, nossa luta contra os manicômios e a exploração deve ser ainda maior

No dia Nacional da Luta Antimanicomial, buscamos resgatar um pouco sobre o processo que se constituiu como a Reforma Psiquiátrica no Brasil e a necessidade da luta ainda presente por uma sociedade sem manicômios.

segunda-feira 18 de maio de 2020 | Edição do dia

Antes mesmo da loucura ser entendida como uma doença e da psiquiatria se estabelecer como ciência hegemônica para tratar o sofrimento psíquico, já haviam instituições sendo criadas para lidar com a parcela da população caracterizada como indesejável, demonstrando como o isolamento e a segregação sempre foram uma forma de lidar com problemas sociais em vários períodos da história. Foucalt (1978) retrata o período que denomina como “A Grande Internação”, ou o “Grande Enclausuramento”, em que os Hospitais Gerais eram o espaço de exclusão e isolamento de uma parte significativa da sociedade. Não somente de pessoas com alguma comorbidade curável ou incurável (tendo sido a lepra a principal doença a sofrer as medidas de isolamento), mas sim de indivíduos cuja principal característica era a pobreza.

Com as mudanças históricas, a constituição da ciência e a produção de conhecimento da sociedade moderna, os hospitais gerais passaram a ser instituições médicas ligadas à construção de um saber científico representado pela figura de Phillippe Pinel, conhecido como pai da psiquiatria, com o ato que se tornou “mítico” de desacorrentar os loucos. Contudo, em que pese o progresso representado pela sua ação de inspiração iluminista, esta não mudou a essência da forma como a loucura era tratada: se antes eram isolados e acorrentados pelo medo do desconhecido, neste período são trancafiados para serem curados e começam a ganhar força as “terapias morais”. Aqui percebemos a posição protagonista que a figura do médico vai tomando, se consolidando como uma autoridade incontestável dentro desse espaço, que já nesta altura possui um caráter carcerário, segregador e agressivo. A medicina vai progressivamente se constituindo como o discurso do saber sobre a loucura, o que expressará suas consequências até os dias atuais.

No Brasil, tivemos experiências tão ou mais brutais como as “Colônias de Alienados”, que mantinham o princípio do isolamento como tratamento, com os mais distintos níveis de adoecimento, mas que marcaram a história do país com centenas de milhares de internações e milhares de mortes, tendo como caso mais expressivo o Hospital Psiquiátrico Colônia localizado em Barbacena, com registros de 60.000 mortes, não à toa considerado por Franco Basaglia – pioneiro do movimento da antipsiquiatria na Itália – como o “holocausto brasileiro” em sua visita ao país. A barbária era tanta que até os cadáveres dos internos eram vendidos ilegalmente para faculdades de medicina. O caso de Barbacena inspirou o livro de Daniela Arbex de mesmo nome e o documentário também homônimo de Arbex e Armando Mendz.

Mas a Colônia de Barbacena é apenas um dentro centenas de outros exemplos de instituições totais marcadas pelo tratamento desumano, que não somente mataram centenas de milhares de pessoas, como retiraram tantas outras do convívio familiar, apagando suas histórias e vida, utilizando esses métodos cruéis não apenas contra os loucos, mas contra qualquer tipo de “desajustado” (como nos mostra, por exemplo, o depoimento de Austragésilo Carrano imortalizado no filme de Laís Bodanzsky “Bicho de sete cabeças”). Somente no Rio de Janeiro, tivemos um dos maiores parques manicomiais do mundo, conhecido como Colônia Juliano Moreira, onde viveu o artista Bispo do Rosário, que apesar de sua genialidade artista, morreu confinado dentro dos muros do hospital.

Diante de tanto horror, contado por documentários, livros, filmes e incontáveis depoimentos de pacientes, somados ao questionamento dos próprios profissionais que passavam a contestar não apenas a política de isolamento compulsório, mas também tratamentos como lobotomias, Eletroconvulsoterapia (ECT) sem sequer anestesia, que não levavam a nenhum tipo de melhora e são práticas atravessadas por violências e agressões, os trabalhadores da saúde mental, junto a usuários, familiares e estudiosos passaram não somente a questionar essas práticas, mas a propor mudanças na forma de se tratar a loucura, impulsionando o movimento que ficou conhecido como Reforma Psiquiátrica.

A Reforma Psiquiátrica

A reforma psiquiátrica foi um marco na construção de uma nova concepção de cuidado, que não acredita mais nos manicômios como forma de tratamento, e busca o cuidado em liberdade. Estabelecendo aí novos princípios para o cuidado em saúde mental, levando em consideração a desinstitucionalização e com objetivo da reabilitação psicossocial daqueles que tiveram seu direito à vida e ao convívio negado. A principal conquista dessa luta de décadas foi a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica em 2001, que estabeleceu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como a conjunção de órgãos multiprofissionais destinados ao atendimento às questões de saúde mental, substituindo os manicômios, que passaram a ser fechados progressivamente. Os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) são instituições destinadas a acolher esses usuários. E têm como sua meta principal buscar integrar essas pessoas com transtorno mental a um ambiente social e cultural concreto, designado como seu “território”, o espaço da cidade onde se desenvolve a vida cotidiana de usuários e familiares.

Esse movimento completou 30 anos em 2017, e ganhou sua legitimidade enquanto política pública após a instituição da lei 10.216/01, que prevê o direito das pessoas com transtorno mental receberem tratamento o mais adequado e menos invasivo possível em liberdade, com a perspectiva de inserção na família, no trabalho e na comunidade. Isso possibilitou a efetivação e ampliação de uma rede de saúde mental não mais pautada no tratamento pela exclusão nos manicômios, mas em serviços assistenciais de base territorial e comunitária como os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).

É importante salientar que mesmo com a institucionalização da Reforma Psiquiátrica, a saúde mental sempre foi marcada pela disputa ideológica, política e econômica, tal como a reforma sanitária, que tem como inimigos os empresários donos dos planos de saúde, que, pelos seus interesses incessantes de lucro, disputam a forma como o SUS, enquanto política pública, vai garantir o acesso e qualidade dos serviços para todos. A previsão da “saúde suplementar” privada na Constituição de 1988 marca isso: os empresários da saúde só podem ter seu nicho de mercado garantido se a saúde pública não for universal e nem de qualidade, obrigando a que as pessoas recorram aos serviços privados – isso se puderem arcar com seus custos. Isso se demonstra bem no fato de que grande parte do que era previsto da Reforma Psiquiátrica nunca saiu propriamente do papel, e os equipamentos existentes enfrentam a precariedade e a privatização por meio das Organizações Sociais de Saúde (OSS).

As internações psiquiátricas sempre foram fonte de muito enriquecimento, já que os manicômios em sua maioria eram privados, e recebiam repasses milionários do Ministério da Saúde pelo custo das internações. Somente por este fato, já se demonstra que nunca foi uma batalha fácil daqueles que defendem o tratamento em liberdade, principalmente numa sociedade capitalista. Por mais que se garanta pela via da institucionalidade, neste caso, da lei, o direito ao tratamento em liberdade, esta garantia na vida não se dá de forma automática. Não apenas pelos interesses privados por trás das internações, mas também porque é necessário que a RAPS possua recursos materiais para cobrir todo o território. Portanto, a garantia na lei não garante a efetividade dessa política, onde vários atores políticos possuem distintos interesses na sua falência. Não podemos perder de vista que, no marco de uma sociedade capitalista que está pautada no lucro, as demandas dos trabalhadores podem ser garantidas por meio de lutas e conquistas parciais, mas que inevitavelmente elas serão depois atacadas pelos governos dos capitalistas, que possuem uma necessidade inerente de fazer avançar seus lucros nos privando de nossos direitos.

Isso fica evidente na própria política do PT (Partido dos Trabalhadores), que foi o partido que propôs a lei que garante o direito a tratamento em serviços territoriais, e, após vermos nas gestões de Lula um crescimento do número de CAPS pelo país, quando veio a crise vimos também o segundo governo Dilma iniciar os bilionários cortes na saúde para agradar seus aliados capitalistas e tentar evitar que organizassem o golpe institucional que derrubou seu governo. E não foi apenas um ataque do ponto de vista econômico, pois Dilma indicou em 2015 para a coordenação de Saúde Mental o psiquiatra Valencius Wurch, ex-diretor da Casa de Saúde Dr. Eiras, o maior hospício da América Latina, questão que criou uma grande mobilização e atos dos trabalhadores, usuários e familiares com ocupação da sede da coordenação de Saúde Mental em Brasília até a saída do mesmo.

O exemplo do manicômio Dr. Eiras, localizado no Rio de Janeiro, é bem emblemático para se refletir as disputas internas no momento do ascenso da reforma psiquiátrica, pois ele foi fechado somente em 2012, dois anos após a ordem da justiça para que as atividades no local fossem encerradas devido a uma série de denúncias das condições sub-humanas existentes ali. Isso se deu apenas após longos 10 anos da auditoria do Ministério da Saúde (em maio e agosto de 2000), que descreviam um quadro de “casa dos horrores”, e da proibição de novas internações (em 2001) pela Secretaria de Estado de Saúde. Neste período, havia pouco mais de 1.500 pessoas trancafiadas neste manicômio, e a verba do SUS destinadas à Casa de Saúde Dr. Eiras era R$ 13 milhões. Ou seja, mesmo no seu momento de ascensão, a política de saúde mental demonstra seus limites e debilidades para o avanço na atenção psicossocial. Enquanto isso, milhares seguiam desassistidos ou vítimas da epidemia de hipermedicalização que assola a conduta médica hegemônica ditada pelos interesses da indústria farmacêutica em todas as partes.

Ana Maria Pitta, em 2011, nos dez anos da lei 10.210/01, faz alguns questionamentos que poderiam ser levantados nos dias de hoje, há 30 anos da reforma psiquiátrica, exceto por um elemento não menos importante: hoje a luta antimanicomial não é hegemônica não somente na sociedade, mas também politicamente, o que requer daqueles que defendem uma outra forma de tratamento uma nova posição e novas estratégias. Desde o governo Temer, vimos o início de um grave retrocesso na política de saúde mental com a revalorização dos hospitais psiquiátricos.

Com o governo Bolsonaro, a necessidade de garantir vantagens a seus aliados das Igrejas evangélicas levou a que atacasse os CAPS e aumentasse o financiamento às “Comunidades Terapéuticas”, que significa colocar o tratamento a dependentes químicos sob o controle dos dogmas religiosos dessas instituições reacionárias. Também voltou a privilegiar o tratamento por Eletro-Convulso Terapia (ECT), conhecido popularmente como “eletrochoque”, todas medidas que atestam imensos retrocessos em relação às conquistas das lutas de décadas. Por isso se faz tão necessário repensar qual o papel dos serviços de Atenção Psicossocial nesta sociedade ainda manicomial, e que produz tanto adoecimento e perspectivas de saídas individuais para questões sociais produzidas pelo capitalismo.

Pandemia, crise e saúde mental

Muito já vem sendo discutido a respeito de como a situação da pandemia agrava os problemas de saúde mental em diversos níveis, seja em decorrência do isolamento, da insegurança em decorrência da maior dificuldade de acesso aos serviços da RAPS. Contudo, por mais grave que sejam as consequências psicológicas da pandemia em si, o mais grave é o que acarreta a gestão capitalista dessa pandemia. Enquanto milhões de patrões seguem o lema proclamado abertamente por Bolsonaro e empresários como Durski, dono do Madero, de que 5 ou 7 mil mortos não poderia afetar a economia (leia-se, seus lucros), já são milhões os que estão sendo duramente atingidos pelos ataques desses setores, que se aproveitam da pandemia para endurecer ainda mais as condições de vida dos trabalhadores. Desemprego, pobreza e até mesmo a fome já são a realidade dos trabalhadores.

Da mesma forma que o capitalismo em tempos “normais”, com sua brutalização da vida e sua transformação da saúde e do nosso tempo em mercadorias já criava uma pandemia de adoecimento mental, agora, durante a pandemia, é evidente que isso se agravará muito. A garantia da saúde mental das pessoas, ainda mais em um contexto como esse, não pode se dar sem que lutemos para garantir uma vida digna, onde possamos ser sujeitos de nosso tempo e nosso destino, e não meros números a irem para valas ou peças na engrenagem dos capitalistas para aumentarem seus lucros.

Referência bibliográfica

AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2007.
BRASIL. Lei Federal Nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Brasília, 2001.
GOMES, T. M. da S. Para além da rima pobre do capital: questões sobre a inserção de pessoas com transtorno mental no trabalho formal. Rio de Janeiro: Tese (Doutorado em Serviço Social), Departamento de Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2014.
Disponível em https://esquerdadiario.com.br/spip.php?page=gacetilla-articulo&id_article=5032 acessado em 06/12/2019.
PITTA, Ana Maria F. Um balanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira: Instituições, Atores e Políticas. In: Revista Ciência & Saúde Coletiva (16) 12, pp. 4579-89, Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v16n12/02 acessado em 06/12/2019.




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