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10 anos da Revolta do Busão: uma contribuição pela expressão da fúria potiguar

Marie Castañeda

10 anos da Revolta do Busão: uma contribuição pela expressão da fúria potiguar

Marie Castañeda

Com o caos no transporte público promovido pelo prefeito Álvaro Dias (PSDB), defensor da máfia da SETURN, a juventude potiguar se prepara para tomar as ruas em defesa da retomada de linhas de ônibus e contra o aumento nesta quarta-feira, muito se diz que é necessário fazer uma nova Revolta do Busão, a última vez na qual foi possível barrar o aumento do valor das passagens. Nesta contribuição inicial, queremos retomar o que foi a Revolta do Busão e quais lições podemos tirar dela, enquanto nos enfrentamos com os ataques de Bolsonaro, Mourão e o Congresso Nacional, e vemos categorias de trabalhadores municipais protagonizarem fortes greves como os trabalhadores da saúde e da educação, estes últimos contra a justiça que quer retirar-lhes o direito de greve.

Após o dia 17 de junho de 2013, jornais do mundo noticiaram que centenas de milhares saíram às ruas no Brasil, com tantas demandas que não cabiam em cartazes. Chocados com o ruir da imagem do Brasil potência, o Cristo Redentor em forma de foguete da Revista Times tinha fendas profundas e, logo abaixo, ônibus estavam incendiados. Naquele momento, o New York Times apontava como os protestos haviam se antecedido em um mês na capital potiguar, e as mídias locais debatiam com receio o processo ocorrido um ano antes. Aqui buscamos fazer um resgate do que foi o histórico recente de luta em defesa do transporte público em Natal (RN), sua canalização parcial nas mudanças no Conselho de Trânsito e Mobilidade Urbana da STTU - Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana e a centralidade da auto organização democrática para preparar novas explosões como as de 2012 e 2013, no sentido de debater algumas de suas lições. O fervilhar das contradições potiguares não explodiu somente em 2013, mas em 2005, 2012 e 2013 e se depender do atual andar da carruagem, dos impactos do cancelamento de linhas e as demissões de mais de 1000 rodoviários, além dos impactos da crise econômica internacional e nacional, voltará a explodir novamente.

Na história recente, podemos destacar três períodos de mobilizações massivas contra o aumento das passagens de ônibus, 2005, contra os ataques da prefeitura de Carlos Eduardo Alves, então no PSB e atualmente no PDT; 2012, contra a então prefeita Micarla de Sousa (PV) e 2013, contra o aumento da tarifa de Carlos Eduardo Alves, já no PDT, novamente, mas como o que se desenvolveu a partir de maio como parte da luta nacional com o conhecido canto “não é só por 20 centavos”, onde os primeiros impactos da crise do capitalismo internacional que chegou ao Brasil abriram questionamentos profundos sobre a degradação dos serviços públicos e as perspectivas colocadas para uma geração de juventude que começava a ver o futuro prometido ruir. Hoje a família Alves, de oligarquia política no RN, se prepara para ter Walter Alves como vice de Fátima Bezerra (PT), que também já se enfrentou com greves de trabalhadores que exigiam seus mínimos direitos e segue governando o RN à serviço da burguesia, como com Flávio Rocha, presidente do Grupo Guararapes. Isso tem sua expressão extrema na política nacional, onde Lula apresenta ninguém menos que Geraldo Alckmin, que reprimiu brutalmente e cegou manifestantes em todo estado de São Paulo em 2013, como vice.

As gerações de millennials, Zs e alphas tem seu futuro condenado com Bolsonaro, Mourão e os ataques que precarizam ainda mais suas perspectivas, em meio ao descontrole capitalista que provocou a pandemia do coronavírus pelo seu modo de produção, ou incendiou o mar do Golfo do México por um vazamento de óleo, além da guerra na Ucrânia, demonstrando novamente que o capitalismo não tem nada benéfico a nos oferecer. Todas as gerações, que têm seu futuro ameaçado pelo capitalismo, devem se apropriar das lições que as lutas do passado nos trouxeram.

Caça aos Vampiros e às bruxas

O ano é 2005 e Carlos Eduardo Alves começava seu segundo mandato, naquele momento como membro do PSB, com Micarla de Sousa (PV) como vice, sua coligação é ampla e inclui o PP, PCdoB, PDT, PTB, PSC, PTN, PPS, PL, PMN, PSDC, PV e PRP. Nos anos de 2004 e 2005, são justamente o PCdoB e o PSB que compõem as gestões das principais entidades do movimento estudantil, UMES, APES, GEDM e DCE da UFRN.

No final de 2004, Carlos Eduardo vetou um projeto de lei que atacava a meia passagem estudantil, se localizando como referência de colaboração para a juventude, o que era fomentado pelas direções das entidades já que estas pertenciam ao mesmo governo. No ano seguinte, no entanto, foi aprovado um aumento de R$1,30 para R$1,45, o que provocou a ira estudantil, com duas atuações combinadas executadas pelas direções das entidades, eram extremamente pressionados pela base dos estudantes e assim convocavam manifestações parciais e apareciam em negociatas que serviam para alimentar expectativas. Para isso, se apoiavam em mais de 30 grêmios que eram mantidos pela venda das carteirinhas estudantis, como aponta Ramon Amorim, em sua dissertação "A novidade pede passagem: ciclos de mobilização contra o aumento da tarifa de transporte em Natal em 2005 e 2012":

“O protesto contra o aumento da passagem aparece, nesse contexto, não somente como uma escolha das organizações do movimento estudantil, mas também como uma necessidade de sobrevivência na disputa no interior das entidades. Diante da força da organização do movimento nas escolas públicas, como disse o entrevistado 3, as entidades direcionavam a matrícula de suas principais lideranças para as escolas de maior porte da cidade, as entidades eram cobradas para responder aos reajustes em um contexto crítico da economia e também em função do espaço estratégico de atuação das lideranças entidades: as escolas públicas.” [1]

A garantia da legitimidade e continuidade das entidades estava portanto diretamente vinculada ao fomento destas mobilizações, cujo conteúdo era determinado pelas próprias direções das entidades, o que se evidencia na escolha do primeiro inimigo a ser denunciado e combatido: a STTU e a assim chamada “máfia do transporte”. A criatividade dos estudantes era tanta, que compareciam às manifestações com caracterizações das grandes empresas de transporte, com cabeças de alho penduradas, cruzes com dizeres de exigência da queda do aumento, entre outras. O conteúdo deste primeiro momento foi bastante determinado pela coincidência concreta em termos de organização entre as direções e o próprio governo.

Amorim traz em primeira mão o relato da atuação de um dos principais líderes destas manifestações:

“Começava com um pedido de reunião, se o pedido fosse atendido, nós íamos à reunião, levar nossas reivindicações, dizer o porquê de não querer aquilo. Isso como medida de contenção. Se algo já houvesse acontecido, nós fazíamos protesto. Dependia muito do clima político para definição do que fazer”.

As definições contidas neste depoimento são centrais para compreender o papel do PCdoB e do PSB à frente das entidades, por um lado privilegiando a busca por parlamentares e reuniões como parte da contenção de ataques, e a contenção do desenvolvimento do movimento estudantil que poderia se transformar em uma ameaça a eles próprios como direção e ao seu governo. As direções declaram abertamente que sua organização e as decisões a respeito de tudo eram tomadas entre si, sem promover a auto organização dos estudantes para que pudessem definir por si próprios os rumos da mobilização.

Os estudantes secundaristas estiveram majoritariamente à frente deste processo e realizaram manifestações de centenas de pessoas em diversos pontos da capital potiguar, chegando até mesmo a fechar a ponte de Igapó, que conecta a Zona Norte da cidade, e importantes manifestações na Zona Leste (para os que se manifestam hoje e questionam o repetido trajeto controlado do Midway até a Igreja Universal ou Natal Shopping, um refresco da insubordinação estudantil).

Da caça aos vampiros desenvolveu-se a caça às bruxas, centrada na figura da secretária municipal de Transporte e Trânsito Urbano, Elequicina Santos, apontada como a responsável pela degradante situação do transporte público natalense, respondendo com manifestações simultâneas em diversos pontos da cidade. Apesar da repressão e forte campanha contrária da mídia, o movimento teve grande legitimidade, mesmo não sendo levado adiante pelas direções, levando a um beco sem saída sem apontar os verdadeiros responsáveis pelo caos instaurado, o governo e as empresas.

Fora Micarla e a #RevoltadoBusão

Quando debatemos o impacto de Junho de 2013 no Brasil, muito se fala da imprevisibilidade, como se o país não fizesse parte de um globo em convulsão contra os impactos da crise econômica de 2008, onde revoltas questionavam regimes anti-democráticos, e jovens e trabalhadores se recusavam a pagar as contas da crise, protagonizando manifestações e movimentos massivos, como na Primavera Árabe e no Estado Espanhol, entre outros. Também é deixada de lado a histórica greve das universidades federais de 2012, que denunciava a precariedade da expansão do REUNI sem permanência estudantil garantida e abrindo espaço para a privatização, esta política que, junto ao PROUNI e ao FIES, fortaleceu os tubarões do ensino das faculdades privadas. Também são escondidas as greves das obras do PAC, contra as quais Dilma Rousseff (PT) fez uso da Força Nacional de Segurança.

Natal, no entanto, produziu consequências da crise colocada em 2011 e 2012, com um dos maiores movimentos sociais já vistos, o Fora Micarla, seguido da #RevoltadoBusão. Micarla de Sousa é relembrada até hoje como a reacionária que nos arrancou as estações de integração de ônibus, projeto aprofundado com maestria pelo reacionário atual prefeito Álvaro Dias (PSDB), do qual trataremos brevemente mais adiante.

Uma característica marcante da geração que lutou contra Micarla de Sousa é o rechaço aos negócios ilícitos típicos do Estado burguês que, frente aos contratos que a prefeitura levava adiante, provocou protestos organizados por jovens a partir de 2011, quando em maio aconteceu a ocupação “Acampamento Primavera Sem Borboleta” que exigia a instauração de inquéritos investigativos, quando sua gestão chegou a 76% de rejeição. [2]

Naquele momento, no entanto, as entidades estudantis haviam perdido seu financiamento em meio à reestruturação nacional das carteirinhas da UNE e UBES, o que, combinado ao desgaste da direção majoritária, composta pelo PCdoB, PT e Levante Popular da Juventude, por cumprir o papel de contenção máxima do movimento estudantil, levou a que estas não tivessem a mesma capacidade de direção inicial, ainda que participassem das mobilizações e estas não tenham superado seus marcos, fortalecendo-os depois.

No ano seguinte, quando a rejeição à então prefeita Micarla de Sousa chegava a patamares inacreditáveis, de 90%, foi promovido um aumento da tarifa do transporte, o que foi respondido com manifestações cada vez mais massivas e descontroladas. A fúria da juventude foi tamanha, que obrigaram a Câmara Municipal a votar o Decreto Legislativo n. 37/2012, que revogou o aumento da tarifa, mantendo seu valor em R$ 2,20, em uma sessão histórica na qual o legislativo natalense disponibilizou um telão em frente à Câmara Municipal para o acompanhamento dos manifestantes, com parabenizações demagógicas dos vereadores.

Em seguida, a Seturn determinou a suspensão do sistema de integração gratuita do transporte público, justificada por um “desequilíbrio econômico”, o que gerou novos protestos, mas que não foram capazes de barrar este ataque. Em outubro de 2012, Micarla de Sousa foi afastada da prefeitura de Natal, por denúncia de participação em fraude na Secretaria da Saúde de Natal.

Na #RevoltadoBusão, as mobilizações eram convocadas centralmente pelas redes sociais, no Facebook e Twitter, o que por um lado permitiu dar vazão ao processo, encontrou seu limite na ausência da auto-organização democrática por locais de trabalho e estudo, o que não fomentou a entrada em cena da classe trabalhadora e fez com que a juventude, ao invés de se auto organizar para definir o que defenderia, interviesse difusa e com um programa que não questionava por quem o transporte público deveria ser controlado..

Ainda assim, quando Carlos Eduardo assumiu a prefeitura no ano seguinte e junto a milhares de prefeitos buscou aplicar um reajuste, havia se operado um questionamento mais profundo a partir da ideia de que a tarifa não deveria sequer existir e o direito à cidade, em uma capital tão fragmentada e marcada por contrastes sociais que incluem resorts de luxo entre comunidades como Mãe Luiza e a praia, e a experiência de terem se enfrentado com a repressão em 2005 e 2012. Os relatos dos jovens que levavam carrinhos de supermercados lotados de pedras para responder à repressão policial são sem fim e são expressão de uma geração que naquele momento reconhecia os seus inimigos. Ao mesmo tempo, as iniciativas de canalização para a direita daquela mobilização foram concentradas, enquanto o PT, como direção do movimento de massas através da CUT e da UNE, junto ao PCdoB também com a CTB as deslegitimou porque se colocavam contra o seu governo e fazia uma das suas tarefas mais bem executadas, a de separação entre a classe trabalhadora e a juventude.

A Profª Drª Ermínia Maricato ao Le Monde Diplomatique escreveu que quem acompanha a realidade das cidades brasileiras, não se impressionou com o junho de 2013. A conjuntura das cidades teria sido ainda mais pressionada e dramatizada pela agenda urbana produzida desde o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência do país e teria perpassado políticas públicas variadas: Programa de Aceleração do Crescimento, Minha Casa Minha Vida, entre outras. As políticas de intervenção urbana teriam sido caracterizadas por remoções violentas, penalizando os mais pobres, e priorização do capital imobiliário em detrimento do interesse público.

Natal, a essa altura se preparava para sediar jogos da Copa do Mundo, com denúncias até mesmo da ONU de remoções irregulares, mortes de operários da construção civil pela ausência de segurança e obras inacabadas até hoje. A cidade não foi mais palco de lutas tão massivas, com as exceções de 2016 e 2017, quando durante as ocupações contra o golpe institucional tanto a UFRN quanto o IFRN tiveram expressões e na greve do dia 28 de abril de 2017, quando 100 mil tomaram as ruas de Natal, processo posteriormente enterrado pela burocracia sindical.

Lições iniciais para pensar o presente

Nas experiências brevemente retomadas aqui, temos a burocracia do movimento estudantil atuando em dois sentidos, por um lado na contenção e disciplinamento, por outro na promoção da divisão. Essa divisão foi utilizada nacionalmente dezenas de vezes, como em 2019 na luta contra os cortes nas federais e contra a Reforma da Previdência, caindo nas chantagens de Bolsonaro e Mourão.

Nesta divisão se combinou a lógica de substituição da atuação burocrática das direções, sem garantir o direito à auto organização de base, com um programa que não leva o questionamento massivo até o final. Hoje, a UJS tem menos localização nas entidades locais natalenses, com o DCE da UFRN dirigido pelo Juntos (MES-PSOL), que nacionalmente agora defende a aliança com a ecocapitalista e anti-direitos Rede e a Correnteza (juventude impulsionada pelo PCR), com uma longa história de conciliação. O PT segue dirigindo os rodoviários por meio da CUT, fortemente golpeados nos últimos anos por milhares de demissões na pandemia, com fortes greves que foram isoladas por política da própria CUT. Mas o PT também dirige o governo do Estado e tem figuras na câmara municipal, como Brisa Bracchi e Divaneide Basílio, Isolda Dantas na ALRN e Natalia Bonavides como deputada federal, que promovem políticas próprias adaptadas à institucionalidade, com um discurso de que somente a mobilização vai garantir, em um reformismo supostamente combativo sem organização desde as bases.

Hoje é levantada a exigência de licitação, como faz o Juntos, a UP, junto ao PT, é assumida até mesmo políticos da direita como Kelps. Essa medida básica dentro do balcão de negócios que é o Estado apenas serve para que grandes monopólios dos transportes, como o do empresário Agnelo Cândido, que detém linhas de ônibus em Natal, João Pessoa e Campina Grande, de grandes concessionárias e do convênio Hapvida, disputarem entre si quem terá maiores lucros com o transporte da cidade. Esses empresários que agora dizem que precisam se “recuperar da pandemia”, foram quem deixou 1000 trabalhadores na rua nesse período e recebeu uma série de isenções de impostos de Álvaro Dias e Fátima Bezerra. Seus interesses são opostos aos da população de Natal. não vai ser através disso que vamo combater a máfia e o lucro

Nossa luta deve ser pela readmissão de todos os rodoviários demitidos, a volta imediata das linhas suspensas durante a pandemia, junto à exigência de abertura dos livros de contas das empresas, para que os trabalhadores e a população saiba onde é que está essa crise dos transportes. Isso é parte da necessidade de que os rodoviários supere a burocracia mafiosa do Sindicato dos Transportes, dirigidos por Juninho Rodoviário da CUT, e se auto-organizar para decidir sobre todo o funcionamento do transporte rodoviário de Natal, através da estatização da frota de ônibus sem indenização aos empresários dos transportes, sob direção dos motoristas, cobradores e controle dos usuários. Somente assim podemos garantir a redução sistemática e gratuidade do preço das passagens, sem levar a maior indenização de grandes empresários, e que os ônibus sejam organizados sob interesse dos trabalhadores e da população dos bairros da Zona Norte, Oeste e bairros afastados.

Retomar a combatividade da Revolta do Busão é essencial para pensar nossas lutas do presente, nos apoiando em toda a potencialidade criativa que a então juventude natalense demonstrou e apontando um caminho que favoreça a aliança com os trabalhadores e a população, que tanto paga as contas da crise.

[1]AMORIM, R. A novidade pede passagem: os ciclos de mobilização contra o aumento da tarifa do transporte em 2005
e 2012. Tese de Mestrado em Estudos Urbanos e Regionais pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Natal, 2019

[2] ARAÚJO, c. Jornadas de junho de 2013: A rede em rede. Tese de Mestrado e Ciências Sociais pelo PPGC no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFRN. Natal, 2016.


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Marie Castañeda

Estudante de Ciências Sociais na UFRN
Estudante de Ciências Sociais na UFRN
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