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TEORIA
Educação e formação humana
Ivo Tonet

Formar integralmente o homem. Mas, o que significa exatamente isso? Podese definir esse conceito de modo a que seja um ideal válido para todos os tempos e lugares? Parece que não. Então, o que significaria isso, hoje? E como articular, hoje, a atividade educativa com uma formação humana integral? Muitas perguntas. Tentaremos refletir sobre essas questões ao longo desse artigo.

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Formação humana

Talvez nenhuma palavra tenha expressado tão bem a idéia de formação humana como a palavra grega paidéia. Paidéia exprimia o ideal de desenvolver no homem aquilo que era considerado específico da natureza humana: o espírito e a vida política. Mas, por isso mesmo, essa formação era privilégio apenas de alguns poucos, os cidadãos. Além disso, excluía todo tipo de atividades – as que lidavam com a transformação da natureza – que não fossem condizentes com essa natureza propriamente humana.

A humanitas romana, o humanismo renascentista e a Bildung alemã também expressam, cada uma com nuances próprias, esta mesma idéia de uma ampla e sólida formação do ser humano. Não por acaso, todas elas são profundamente devedoras da cultura grega clássica.

No entanto, essas palavras, que expressam momentos altos da trajetória humana, também deixam entrever a unilateralidade com que era vista essa formação humana. É sempre o cultivo do espírito que é privilegiado. Mesmo quando, como entre os gregos e romanos, se acentua a necessidade de formar o corpo e o espírito, a ênfase está na formação deste último. Quanto ao primeiro, trata-se apenas do seu cultivo através de exercícios físicos de forma a possibilitar o pleno desenvolvimento das faculdades espirituais.

O que era inteiramente deixado de lado nesse processo de formação do humano era a problemática do trabalho, da transformação da natureza, da manipulação da matéria para a produção da riqueza. Entende-se que assim fosse porque até o advento do capitalismo as tarefas eram de responsabilidade de seres considerados de condição inferior. Daí porque a formação se dirigia apenas àquelas pessoas que, não precisando trabalhar, podiam dedicar-se integralmente às atividades de cunho espiritual.

Nem é preciso fazer menção à Idade Média para constatar mais ainda esta separação e este desnível entre o trabalho material e as atividades espirituais.

Quando o capitalismo entrou em cena, houve uma profunda mudança nessa idéia da formação humana. Na verdade, houve até uma inversão entre trabalho e formação cultural. O trabalho passou a ser privilegiado como a atividade principal. Não, porém, o trabalho como uma atividade criativa, explicitadora das potencialidades humanas, mas o trabalho como simples meio de produzir mercadorias e, especialmente, a mercadoria das mercadorias, que é o dinheiro. Certamente, a formação cultural ainda era bastante valorizada, especialmente no período ascensional do capitalismo, ou seja, até a realização plena da revolução burguesa. No entanto, ela passava a ser cada vez mais perpassada pela lógica do ter, terminando por ser uma espécie de cereja no bolo da acumulação da riqueza material.

Coube a Marx, e a outros pensadores que desenvolveram as suas idéias, lançar os fundamentos de uma concepção radicalmente nova de formação humana. E o fundamento desta concepção radicalmente nova encontra-se exatamente na apreensão da correta articulação entre espírito e matéria, entre subjetividade e objetividade, entre a interioridade e a exterioridade no ser social.

Tomando como ponto de partida do trabalho, considerado como o ato ontológico-primário do ser social, Marx constata que este ser não se define pela espiritualidade, mas pela práxis. Ora, esta última é exatamente uma síntese de espírito e matéria, de subjetividade e objetividade, de interioridade e exterioridade. Na realidade, ele mostra que entre interioridade e exterioridade não há uma relação de exclusão, nem de soma, mas uma relação de determinação recíproca. Desta determinação recíproca é que resulta a realidade social.

Para compreender melhor o impacto desta descoberta, lembre-se a definição aristotélica do homem. Definição que predomina quase que integralmente até hoje no pensamente ocidental. Ele define o homem como um animal racional. Contudo, o que o define, especificamente, é a racionalidade, porque a animalidade nos é comum com os animais.

É interessante notar como é a descoberta de que há uma determinação recíproca entre esses dois momentos que constituem o ser social que permite compreender as formas concretas desta relação ao longo da história. Por exemplo, é o fato de a produção da riqueza material ser realizada pelos escravos ou pelos servos que permite entender o privilegiamento concedido ao espírito na formação humana. No caso da sociabilidade capitalista, é a centralidade do trabalho abstrato que permite entender a subordinação da formação cultural/espiritual/humana aos imperativos da produção da riqueza e, portanto, a impossibilidade de uma autêntica formação humana integral.

Certamente, a formação humana é sempre histórica e socialmente datada. Por isso mesmo não é possível definir, de uma vez para sempre, o que ele seja como se fosse um ideal a ser perseguido. Porém, como o processo de tornar-se homem do homem não é apenas descontinuidade, mas também continuidade, é possível apreender os traços gerais dessa processualidade, traços esses que, não obstante a sua mutabilidade, guardarão uma identidade ao longo de todo o percurso da história humana.

Assim, pode-se dizer, partindo dos fundamentos onto-metodológicos elaborados por Marx, que o processo de o indivíduo singular tornar-se membro do gênero humano passa pela necessária apropriação do patrimônio – material e espiritual – acumulado pela humanidade em cada momento histórico1 . É através dessa apropriação que este indivíduo singular vai se constituindo como membro do gênero humano. Por isso mesmo, todo obstáculo a essa apropriação é um impedimento para o pleno desenvolvimento do indivíduo como ser integralmente humano.

Se olharmos as coisas de um ponto de vista histórico, veremos que, nas sociedades primitivas, portanto, antes da existência das classes sociais, a formação dos indivíduos era um processo do qual participava diretamente toda a comunidade. Todos podiam e, para a sua sobrevivência até deviam, ter acesso ao patrimônio material e espiritual da comunidade. Todavia, dado o precário desenvolvimento material e espiritual da humanidade nesse período, também o patrimônio era muito limitado e, portanto, limitado era o desenvolvimento dos próprios indivíduos.

A entrada em cena da sociedade de classes produziu um duplo efeito na história da humanidade. Por um lado, possibilitou um desenvolvimento muito rápido das forças produtivas e também da riqueza espiritual. Por outro lado, a divisão da sociedade em classes excluiu a maioria da população do acesso à riqueza acumulada pela humanidade. O que fazia com que essa massa ficasse confinada a um nível muito próximo da animalidade.

Por outro lado, a propriedade privada, com a divisão do trabalho, também deu origem ao fenômeno da alienação, do qual participam não apenas os explorados, mas também os exploradores. Os explorados, por motivos óbvios. Os exploradores, porque o seu acesso à riqueza acumulada pressupõe uma relação que reduz à desumanização a maior parte da humanidade. Além disso, porque a divisão do trabalho faz com que eles mesmos sejam levados a privilegiar o lado espiritual e a menosprezar a atividade que é o fundamento por excelência do ser social, que é o trabalho. Por tudo isso, a formação dos próprios exploradores não pode deixar de ser unilateralizante e, de certa maneira, deformada.

A sociedade capitalista também é uma sociedade de classes. Porém, entre ela e as formas anteriores – asiática, escravista, feudal e outras – há uma diferença importante. É que nas formas anteriores a desigualdade era tida como algo natural. Por isso mesmo, a exclusão das classes subalternas do acesso à riqueza também era visto como algo absolutamente natural. Ao contrário, na sociedade burguesa é proclamada a igualdade de todos os homens por natureza. O que significa que, em princípio, todos eles deveriam poder ter acesso ao conjunto do patrimônio humano. No entanto, como isso, de fato, não é possível (justifica-se essa impossibilidade pela desigualdade que resultaria da livre iniciativa, expressão do inato egoísmo humano), a dissociação entre discurso e realidade efetiva impõe-se como uma necessidade. Proclama-se o direito de todos a uma formação integral. Mas, de um lado, a maioria é excluída do acesso aos meios que possibilitariam essa formação e, de outro, essa mesma formação é definida privilegiando os aspectos espirituais2 : formação moral, artística, cultural, intelectual.

Curiosamente, mas não por acaso, na sociedade burguesa, essa formação integral também a inclui a preparação para o trabalho. Quando, porém, essa formação é desnudada dos seus elementos superficiais e ideológicos, deixa ver que ela nada mais é do que a formação de mão-de-obra para o capital. Como o caráter de mercadoria da força de trabalho não é questionado, antes é tomado como algo natural, então essa parte da preparação “integral” nada mais é do que a transformação do ser humano em mercadoria apta a atender os interesses da reprodução do capital. Em Trabalho assalariado e capital, Marx faz um belíssimo resumo do que acontece com o trabalhador no momento da produção. Diz ele (1970: 27)
A força de trabalho é pois uma mercadoria que seu proprietário, o trabalhador assalariado, vende ao capital. Para que? Para viver.
Pois bem, a força de trabalho em ação, o trabalho mesmo, é a própria atividade vital do trabalhador, a própria manifestação da sua vida. E é esta atividade vital que ele tem que vender a outro para assegurar-se os meios de vida necessários. Quer dizer que sua atividade vital não é para ele mais do que um meio para poder existir. Trabalha para viver. O trabalhador nem sequer considera o trabalho parte da sua vida; para ele é muito mais um sacrifício da sua vida. (...) Para ele a vida começa ali onde terminam estas atividades (tecer, fiar, tornear, construir, cavar, etc. ...I. T. ), na mesa da sua casa, no banco da taverna, na cama. As doze horas de trabalho não têm para ele sentido algum como tecer, fiar, etc, mas apenas como meio para ganhar o dinheiro que lhe permite sentar à mesa ou no banco da taverna e deitar-se na cama.
Por seu lado, o aspecto espiritual da formação “integral” também sofre deformações. Isto porque, estando todo o processo de autoconstrução humana mediado pela propriedade privada de tipo capitalista, a própria formação espiritual não poderia escapar dessa lógica.

Começa pelo fato de que somente quem tem dinheiro – essa mercadoria das mercadorias – pode ter acesso a esses bens. A medida do dinheiro é também a medida do acesso. Mas, mesmo o pleno acesso aos bens materiais e espirituais que compõem o patrimônio da humanidade na sociedade capitalista tem, por sua própria natureza, um viés profundamente deformador. Se pensarmos que a formação moral e ética é uma parte importantíssima desse processo, veremos imediatamente como uma apropriação centrada no indivíduo e, portanto, oposta aos outros indivíduos, induz a uma deformação da personalidade. Isso porque toda essa formação leva o indivíduo a aceitar como natural uma forma de sociabilidade que implica que o acesso de uma minoria esteja alicerçado no impedimento do acesso da maioria.

Vale enfatizar: uma formação integral do ser humano, no sentido que a definimos acima, é uma impossibilidade absoluta nessa forma de sociabilidade regida pelo capital. Uma formação realmente integral supõe a humanidade constituída sob a forma de uma autêntica comunidade humana, e esta pressupõe, necessariamente, a supressão do capital.

Se definimos a formação humana integral como o acesso, por parte do indivíduo, aos bens, materiais e espirituais, necessários à sua autoconstrução como membro pleno do gênero humano, então formação integral implica emancipação humana3 . Vale dizer, uma forma de sociedade na qual todos os indivíduos possam ter garantido esse acesso. Porém, uma tal forma de sociedade requer, necessariamente, um tipo de trabalho que tenha eliminado a exploração e a dominação do homem pelo homem. Somente uma sociabilidade baseada nessa forma de trabalho poderá garantir aquele acesso.

Essa forma de trabalho foi denominada por Marx de “trabalho associado” ou “associação livre dos produtores livres”. Uma forma de trabalho que se caracteriza pelo domínio livre, consciente e coletivo dos produtores sobre o processo de produção e distribuição da riqueza. Na medida em que todos trabalhem, segundo as suas possibilidades, e possam apropriar-se daquilo de que necessitam, segundo as suas necessidades, estará posta a matriz para a justa articulação entre espírito e matéria, subjetividade e objetividade. O trabalho, voltado para o atendimento das necessidades humanas e não para a reprodução do capital, se transformará, nos limites que lhe são próprios, numa real explicitação das potencialidades humanas.

Por sua vez, esta forma de trabalho possibilitará – a todos – o acesso à riqueza espiritual e o auto-desenvolvimento naquelas atividades mais especificamente humanas. Com isso estarão dadas as condições para um desenvolvimento harmonioso – o que não quer dizer isento de conflitos – dos diversos aspectos do ser humano.

Educação e formação humana

Como se articulam, então, hoje, educação e formação humana?

Costuma-se dizer que a educação deve formar o homem integral, vale dizer, indivíduos capazes de pensar com lógica, de ter autonomia moral; indivíduos que se tornem cidadãos capazes de contribuir para as transformações sociais, culturais, científicas e tecnológicas que garantam a paz, o progresso, uma vida saudável e a preservação do nosso planeta. Portanto, pessoas criativas, participativas e críticas. Afirma-se que isto seria um processo permanente, um ideal a ser perseguido, de modo especial na escola, mas também fora dela.

Como se vê, está aí estabelecida aquela dicotomia a que aludimos acima: de um lado um ideal estabelecido sob a forma de um dever-ser e, de outro lado, uma realidade objetiva que segue caminhos próprios, inteiramente contrários às prescrições desse ideal. A teoria pedagógica tradicional, que se prolonga com muita expressividade até hoje, pensa que essa contradição entre ser e dever-ser é algo natural, que não pode ser inteiramente eliminada. Por isso mesmo, a busca eterna de melhorias seria o caminho para tentar harmonizar o ideal com a realidade objetiva.

Ora, esta é exatamente a maneira idealista de pensar a questão da relação entre educação e formação humana, ou seja, uma forma que parte do céu para a terra. O estabelecimento do ideal seria uma tarefa do espírito, da consciência, da subjetividade. A realização prática consistiria na tentativa permanente de configurar a realidade objetiva a partir do que foi estabelecido.

Na esteira de Marx, nosso caminho vai da terra para o céu, isto é, da análise do processo real, objetivo, como ele resulta da atividade dos indivíduos concretos. A partir desta análise buscamos delimitar o conceito de formação humana. O mesmo teremos que fazer agora em relação à educação, exatamente para podermos não prescrever normativamente, mas verificar o processo concreto e as possibilidades que se abrem no seu interior para a articulação entre a educação e a formação humana nos dias de hoje.

Como já tratamos mais extensamente, no livro Educação, cidadania e emancipação humana, da natureza da educação, permitimo-nos fazer, aqui, um resumo do que lá dissemos.

Se partimos, com Marx, do ato do trabalho como aquele ato que funda o ser social, veremos que ele é uma atividade eminentemente social. Portanto, uma atividade que exige a cooperação entre os indivíduos, qualquer que seja a forma que esta cooperação assuma. Por outro lado, também perceberemos que não nascemos humanos, mas nos tornamos humanos. Que não são leis biológicas que nos dizem o que devemos fazer para atender as nossas necessidades, mas que isto se dá pela apropriação daquilo que se tornou patrimônio do gênero humano.

É neste momento que descobrimos a natureza e a função social da educação. Cabe a ela, aqui conceituada num sentido extremamente amplo, a tarefa de permitir aos indivíduos a apropriação dos conhecimentos, habilidades e valores necessários para se tornarem membros do gênero humano.

Com a entrada em cena da sociedade de classes, também a educação foi, por assim dizer, “seqüestrada”, isto é, organizada, em seu conteúdo e em seus métodos, de modo a atender os interesses das classes dominantes. Mas, de novo, nas formas de sociabilidade anteriores à burguesa, a desigualdade social, aceita como natural, fazia com que a desigualdade na educação também fosse vista como algo inquestionável.

Na sociedade burguesa, ao contrário, onde é proclamada a igualdade natural, supõe-se que a educação deveria propiciar a todos os indivíduos aquela formação integral a que acima nos referimos. Quando isso não acontece, as causas desse insucesso não são buscadas na matriz da sociabilidade burguesa, que é o capital, mas em inúmeros outros fatores, como má administração, falta de recursos, desinteresse, etc.

Por sua natureza, a sociedade burguesa está assentada em uma contradição insanável. A forma do trabalho, que lhe dá origem – a compra-e-venda de força de trabalho – leva à produção da desigualdade social. Esta é uma determinação insuperável nos limites da sociedade burguesa. Não há como impor ao capital uma outra lógica que não seja a da sua auto-reprodução através da exploração do trabalho. Por outro lado, a reprodução do capital exige, também, e ao mesmo tempo, a instauração da igualdade formal. Capitalistas e trabalhadores são livres, iguais e proprietários e assim têm que ser para que o capitalismo se reproduza.

Percebe-se, então, que desigualdade real e igualdade formal não são dois momentos separados, mas partes de uma mesma e incindível totalidade.

Isto se reflete no âmbito da educação sob a forma de uma contradição entre o discurso e a realidade objetiva. O primeiro proclama uma formação integral, isto é, livre, participativa, cidadã, crítica para todos os indivíduos. O segundo proclama, no seu movimento real, a impossibilidade daquela formação. É escusado dizer que a regência está nas mãos da realidade objetiva, de modo que a realização de uma formação integral jamais pode se transformar em uma efetividade.

Deste modo, fica claro que o discurso da formação integral, sem o questionamento das raízes da desigualdade social, sem uma firme tomada de posição contra a lógica do capital, contribui, não importa se consciente ou inconscientemente, para a reprodução de uma forma de sociedade inteiramente contrária àquela proclamação.

Se não bastasse a lógica própria do capital, a trágica situação em que está mergulhada hoje a humanidade, devida à crise estrutural do capital, mostra que o processo de deformação tanto da sociedade como dos indivíduos é cada vez mais intenso. Sob a regência do capital, a humanidade foi se tornando uma entidade cada vez mais unitária, mais interdependente. Porém, no seu interior, as oposições – entre os países, as classes, os grupos sociais, os indivíduos – foram se tornando cada vez mais profundas.

Em resumo, se uma educação cidadã, participativa, crítica, incluindo aí a formação para a capacidade de pensar, de ter autonomia moral, a formação para o trabalho, a formação física e cultural, a formação para a defesa do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável é a mais elevada contribuição que a educação pode dar para a construção de uma autêntica comunidade humana, então chegamos à absurda constatação de que isto nada mais significa, ao fim e ao cabo, do que formar para a escravidão moderna. Pois, a relação capital-trabalho implicará sempre a exploração do homem pelo homem e, portanto, uma forma de escravidão.

Ora, a educação é um poderoso instrumento para a formação dos indivíduos. Mas, como já vimos, nas sociedades de classes ela é organizada de modo a servir à reprodução dos interesses das classes dominantes. Na sociedade capitalista isto é ainda mais forte e insidioso porque as aparências indicam que uma formação de boa qualidade é acessível a todos, enquanto a essência evidencia que tanto o acesso universal quanto a qualidade não passam de uma falácia.

É, pois, inútil dar voltas à inteligência para – tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático – querer conceituar e levar à efetivação uma educação que contribua para a formação humana integral no interior desta forma de sociabilidade. O que, segundo nos parece, se pode e deve pensar são atividades educativas – portanto, não a educação no seu conjunto – que estejam inseridas na luta pela transformação radical da sociedade. Contribuir para uma educação integral, hoje, só pode ter o significado de formar indivíduos comprometidos – teórica e praticamente – com a construção de uma forma de sociabilidade – o comunismo – em que aquela formação integral possa efetivamente ser realizada.

Já demonstramos, tanto em nosso livro Educação, cidadania e emancipação humana, como em vários artigos, que formar para a cidadania não é formar para a emancipação humana em sua plenitude. Mas, como a emancipação humana plena só pode se realizar para além do capital, então, hoje, a educação integral, na forma como ela é possível, implica o compromisso com a luta pela construção de uma outra sociedade.

Esta afirmação tem enormes implicações para a ação de todos aqueles que se ocupam de atividades educativas, tanto em sentido lato como em sentido estrito.

Considerando que a educação é um poderoso instrumento ideológico de controle do capital sobre a reprodução social, não apenas na escola, mas também fora dela, é preciso ter claro que é de uma luta que se trata e não de uma simples questão técnica. Trata-se de uma luta entre duas perspectivas radicalmente diferentes para a humanidade, como já explicitamos em dois artigos intitulados A educação numa encruzilhada e Educação e concepções de sociedade. Também é preciso ter claro que, nessa luta, como em toda sociedade de classes, as idéias dominantes são as idéias das classes dominantes. De modo que a luta pela construção de uma sociedade plenamente emancipada se desenvolve em condições extremamente adversas. Contudo, as alternativas existem já que o capital não pode exercer um domínio absoluto, sob pena de se auto-destruir.

Isto considerado, desenvolver atividades educativas que pretendam contribuir para a construção de uma sociedade em que a formação integral dos indivíduos seja possível implica, em primeiro lugar, o conhecimento claro, sólido e racionalmente sustentado dos fins que se quer atingir. Fins esses que devem brotar da análise do processo histórico-social real e não da mera subjetividade. Com isto queremos dizer que é preciso ter clareza do que significa uma sociedade plenamente emancipada. Considerando o descrédito em que caíram, nos dias de hoje, as idéias de socialismo, comunismo, emancipação humana, superação do capitalismo, pode-se imaginar a imensidade da tarefa que se apresenta já nesse simples momento.

Em segundo lugar, é preciso conhecer a realidade social concreta, aí estando implicadas a história da humanidade, a forma capitalista da sociabilidade e a natureza da crise por que ela passa hoje bem como seus rebatimentos sobre a realidade mais próxima na qual se atua.

Todo esse conhecimento supõe, por sua vez, um conjunto de fundamentos que dificilmente poderão ser encontrados no ideário dominante das ciências humanas e da filosofia hoje. Estas áreas são, hoje, dominadas por idéias que muito mais contribuem para obscurecer do que para iluminar a realidade. Onde, então, poderão ser encontrados esses fundamentos e as teorias que mais contribuam para a compreensão da realidade? Na perspectiva radicalmente nova e radicalmente crítica instaurada por Marx e naqueles que, após ele, resgataram esse caráter radicalmente novo e crítico de sua teoria4 . Tal afirmação pode parecer excessiva, para dizer o mínimo. Mas, se considerarmos a enormidade e a gravidade dos problemas que a humanidade enfrenta hoje, veremos facilmente como é necessária uma teoria que permita ir à raiz dos problemas. Todas as teorias que pretenderam ou pretendem apenas contribuir para aperfeiçoar esta forma de sociabilidade e não para transformá-la integralmente não apenas não conseguiram e não estão conseguindo o seu objetivo, mas, pelo contrário, estão contribuindo para agravar a situação da humanidade. E isso por um motivo muito simples. Por que, como demonstrou muito bem I. Mészáros (2005), o capital não pode ser controlado e sua lógica é cada vez mais destrutiva. Pode ser erradicado, na medida em que sua raiz – a compra-e-venda de força de trabalho for arrancada e substituída por outra, o trabalho associado. Mas, não pode ser controlado, porque, após ter-se instaurado, sua lógica adquire uma dinâmica superior a qualquer força social.

Pode-se argumentar que a teoria marxiana, que se pretendia radical, também não conseguiu contribuir para atingir os objetivos propostos. Isso é verdade. Porém, ela tem uma enorme vantagem em relação ás outras. E essa vantagem consiste no fato de que ela aponta para uma possibilidade real, a erradicação do capital, enquanto as outras pretendem o controle dele, o que é uma impossibilidade absoluta.

Por isso mesmo, uma atividade educativa que pretenda contribuir para formar indivíduos comprometidos com a construção de uma sociedade em que a formação integral seja possível requer o resgate da teoria marxiana, mais precisamente, naquelas interpretações –sabe-se que há muitas interpretações do pensamento de Marx – que reponham o seu caráter radicalmente crítico e revolucionário.

Em terceiro lugar, implica desenvolver atividades que incentivem as pessoas a participar ativamente das lutas sociais que estejam articuladas com a transformação radical da sociedade e não apenas com a cidadania. Isto porque, como dizia Marx, as idéias apenas transformam a mente, o que certamente é muito importante. Mas, para que transformem a realidade, é necessário que elas se tornem força material e isso se dá através da ação prática.

Notas

1- A respeito disso veja-se o livro de A. Leontiev, O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

2- Em um texto intitulado Ética e capitalismo discutimos a relação entre o capitalismo e a problemática dos valores. Ver: Em Defesa do Futuro. Maceió: Edufal, 2005.

3- Sobre questão da emancipação humana, ver, de nossa autoria, Educação, cidadania e emancipação humana, especialmente o terceiro capítulo.

4- Para uma sustentação mais ampla e aprofundada dessa afirmação, vejam-se as obras de G. Lukács, especialmente O que é o marxismo ortodoxo e Per uma ontologia dell´essere sociale: de J. Chasin. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica e nosso artigo: Marxismo para o século XXI.

Referências bibliográficas

CHASIN, J. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. In: TEIXEIRA, J.F.S.
Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio, 1996.

LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

LUKACS, G. O que é o marxismo ortodoxo. In: História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


, Per una ontologia dell´essere sociale. Roma: Riuniti, 1976-1981.

MARX, K. Trabajo asalariado y capital. Barcelona: Nova Terra, 1970.

MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

TONET, I. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Unijuí: 2005

 
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