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MIGRANTES
Opressões sem fronteiras para as mulheres migrantes
Azul Picón
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Atualmente, cerca de 232 milhões de pessoas vivem fora do país em que nasceram[1] e quase a metade (49%) são mulheres. A Argentina é um país com uma marca migrante muito forte, em parte pela imigração estrangeira, cujo ponto mais representativo foi a massiva imigração europeia que recebeu em meados do século XIX, mas também as de países vizinhos e migrações internas. A migração de países vizinhos foi moderada, mas se manteve constante a partir do registro inicial com o primeiro censo de 1869: 2,4% da população eram imigrantes provenientes de países vizinhos. Em 1914 é registrada a maior taxa de imigração no país, com 2,6% provenientes de países vizinhos e 29% da Europa. Além disso, com a redução drástica dos fluxos da migração europeia, a migração de países vizinhos se tornou mais visível[2]. Segundo o último Censo de 2010, 1.805.957 pessoas que vivem na argentina nasceram em outro país. Desse total, 1.245.054 vieram de países vizinhos, 3,1% da população, mas representa 69% da migração total.

54% desses imigrantes são mulheres. Isto significa que, se falamos de migração na Argentina de hoje, as mulheres latino-americanas são a maioria.

Feminizações

Tradicionalmente estudos sobre migrações não tinham um enfoque de gênero. As mulheres eram invisíveis ou incluídas como meras companheiras das decisões dos homens migrantes, que encarnam a figura do migrante autônomo. Mas por algum tempo ouvimos falar de uma tendência à “feminização das migrações”, um processo qualitativo e quantitativo que se refere à crescente participação e protagonismo das mulheres que migram individualmente, sem estar “associadas” a um homem migrante anterior. Não significa apenas que a quantidade de mulheres que migra é maior (ainda que este número esteja aumentando lenta, mas constantemente), mas também que o fazem de forma autônoma ou como pioneiras do movimento familiar. A crescente feminização das migrações aparece vinculada, segundo alguns autores, com a feminização da força de trabalho e da pobreza[3].

Informalidade e precariedade como regra

A migração feminina de países vizinhos é principalmente ligada ao trabalho e à baixa qualificação. Se concentra especialmente no trabalho doméstico remunerado, na manufatura e nas atividades agrícolas. As mulheres migrantes correm mais risco de sofrer diferentes tipos de violência: estão mais expostas a abusos físicos, emocionais e sexuais, além dos abusos de autoridades por parte de agentes, de “coiotes” (pessoas que, por um pagamento, ajudam a cruzar ilegalmente as fronteiras), de governantes, traficantes, etc.[4], tanto durante o trânsito migratório como no país de acolhimento. A CEDAW[5] reconhece a vulnerabilidade específica das trabalhadoras migrantes, que, em geral, realizam trabalhos mal remunerados e estão mais expostas a sofrer abusos e discriminação, assim como a falta de proteção jurídica e menos acesso à justiça.

Desde a segunda metade do século XX, a presença das mulheres no mundo do trabalho não doméstico se ampliou e consolidou, alcançando na última década uma média de 41,5%. Isso não significou uma crescente igualdade de direitos, mas pelo contrário, a precarização do trabalho se impôs com mais força sobre as mulheres[6], que tem salários mais baixos, piores condições trabalhistas e mais possibilidades de trabalhar na informalidade. Na América Latina, 54% das mulheres trabalham em setores não estruturados, enquanto 48% dos homens se encontram nessa situação[7]. Se as mulheres estão mais expostas à precarização do trabalho, essa porcentagem aumenta consideravelmente se ao gênero e à classe se adiciona a origem étnica e a situação de migração.

O trabalho doméstico é uma das maiores fontes de emprego informal para as mulheres e representando 15% da mão de obra feminina na América Latina, é realizado por mulheres de baixa renda de maioria delas migrantes ou pertencentes a minorias étnicas[8]. Muitas vezes, a inclusão de alojamento e comida faz desse trabalho atrativo para as migrantes, no entanto, os salários são baixos, as jornadas de trabalho são longas e estão mais expostas aos abusos das patronais e ao isolamento social, os quais aumentam sua vulnerabilidade. Na verdade, a OIT (2004), reconhece que a categoria dos/as trabalhadores/as de serviço doméstico se encontram entre as mais vulneráveis do mundo.

A opressão de gênero reproduz a subordinação e a desigualdade das mulheres no mercado de trabalho, e isso resulta, pelas razões referidas acima, em condições ainda piores para as mulheres migrantes. O caso do serviço doméstico está intimamente ligado com a extensão das funções consideradas “naturalmente” femininas, as tarefas de casa e de cuidados, e certamente continuam também caindo sobre as mulheres as tarefas domésticas e familiares em suas próprias casas, sem remuneração[9].

Mas o trabalho doméstico não é o único a que as mulheres migrantes têm acesso. O trabalho agrícola e na indústria têxtil, também são âmbitos de inserção de trabalhadores migrantes e de mulheres em particular. Acompanhados do trabalho doméstico e da construção, são os ramos de maior informalidade: 80% do trabalho agrário e 60% do têxtil, é informal. A indústria têxtil foi, historicamente, o ramo industrial que mais empregou mulheres. Desde meados dos anos 70, com o esvaziamento da indústria nacional, o trabalho semiescravo ou escravo em fábricas clandestinas cresceu exponencialmente e se transformou em condição necessária para a sobrevivência da indústria têxtil na Argentina. Essas fábricas trabalham principalmente com mulheres imigrantes bolivianas e o recrutamento faz parte, muitas vezes, do tráfico de pessoas com fins de exploração trabalhista10]. Estima-se que nessas fábricas, os/as costureiros/as recebem 1,8% do valor da peça de vestuário que produzem.

A informalidade dos trabalhos aos quais as mulheres migrantes acessam também as coloca em pior situação para negociar as condições de trabalho, por não contar com apoio sindical e proteção jurídica e sendo muito difícil a organização. Isso também as expõe a uma maior vulnerabilidade à violência de gênero, ao abuso sexual no trabalho e em uma posição mais difícil para enfrentar essas violências[11].

Uma necessidade do sistema

A informalidade e precarização dos trabalhos acessados pelos/as imigrantes, cumprem um papel fundamental para o sistema, garantindo mão-de-obra barata para empresários que buscam maior produtividade com baixo investimento e baixos salários. Assim, os imigrantes têm maiores probabilidades de viver na pobreza, com trabalhos menos saudáveis, sem acesso a trabalhos sociais ou proteção contra acidentes de trabalho e piores condições de vida, perpetuando assim a exclusão social[12].

A discriminação e xenofobia que sofrem diariamente, não são inocentes. Os imigrantes aparecem como supostos culpados da pobreza e da insegurança, especialmente no contexto da crise. Os meios de comunicação estão, diariamente, reproduzindo mitos, preconceitos e estereótipos sobre os migrantes ligando-os à delinquência, ao narcotráfico, à insegurança trabalhista e como uma carga para os serviços sociais. Sobram exemplos de burocratas sindicais, políticos, meios de comunicação e inclusive empresários, espalhando o mito de que “os trabalhadores imigrante roubam o trabalho dos argentinos”, enquanto, não só está provada a mentira dessa frase, mas, como já vimos, a mão de obra que os imigrantes representam é útil para o capitalismo (ver quadro Marcelina…).

O confronto entre nativos/as e imigrantes divide a classe trabalhadora e mina a solidariedade entre os trabalhadores/as. As campanhas discriminatórias incentivadas pelos meios de comunicação divulgam um falso antagonismo que Marx observava como “o segredo pelo qual a classe capitalista mantém seu poder” sendo, com certeza, “plenamente consciente disso”[13].

O sistema capitalista tem uma necessidade vital de trabalhadores imigrantes para sustentar a produção e competitividade a baixo custo, mão-de-obra barata “disposta” a ser superexplorada. O movimento de pessoas também ocupa um lugar privilegiado na reprodução do capitalismo global. Além da crise econômica, os imigrantes funcionam como variável de ajuste, são as primeira vitimas de demissões, já que podem ser demitidos sem indenização por causa da falta de proteção legal e sindical.

No entanto, mais e mais os/as trabalhadores/as imigrantes começam a se organizar, apesar dos obstáculos e dificuldades impostas pelo sistema, muitas vezes junto a seus companheiros nativos/as, mostrando que a classe trabalhadora não tem fronteiras e a luta por uma sociedade sem opressão nem exploração deve ser feita em conjunto e junto a todos os setores oprimidos.

REINA: JUSTIÇA PATRIARCAL E DE CLASSE

Reina Maraz é migrante e mulher. Está condenada a prisão perpétua pelo suposto crime de seu marido, Limber Santos. Não fala castelhano e ficou detido por 3 anos em prisão preventiva na Unidade 33 de Los Homos sem ninguém lhe explicar, no seu idioma, o quechua, de que era acusada. No momento de sua prisão, Reina estava grávida de sua 3ª filha, que nasceu na prisão.

As mulheres migrantes tem fortes barreiras de acesso à justiça, tal como foi reconhecido pela OIM e pela ONU Mulheres. As dificuldades econômicas, linguísticas e a descriminação dentro do judiciário são barreiras concretas que impedem que essas mulheres tenham acesso à justiça. Quando, depois de 3 anos, a justiça a disponibilizou uma intérprete, Reina pôde relatar no tribunal os maus tratos e a violência física extrema que sofreu por anos por parte de seu marido Limber Santos (agressões até deixá-la inconsciente, ameaças de morte e todo tipo de humilhações), e como ele a deu a um vizinho, Tito Vilcar Ortiz, para que fossem pagadas, sexualmente, as dívidas que havia feito. Contou como Santos desapareceu logo após uma briga com o vizinho Vilcar, que foi preso pela morte de Santos, mas faleceu antes do julgamento. Reina foi presa porque o promotor Fernando Celesia considerou que ela havia sido cúmplice de Vilcar para roubar o dinheiro de seu marido, pelo qual pediu a pena de prisão perpétua com a qual, no fim, foi condenada. O advogado de defesa José María Mastronardi pediu sua absolvição por falta de provas que permitissem colocá-la como autora do crime e exigiu a única prova de peso contra Reina: o testemunho filmado por uma câmera Gesell de seu filho de 6 anos ao ser questionado por especialistas, já que se interrogou uma criança como se fosse um adulto por 20 minutos, sem que estivessem presentes especialistas em psicologia infantil para fazer a entrevista e sem linguagem simbólica.

Em outubro passado, o TOC 1 de Quilmes, composto pelas juízas Silvia Etchemendi, Marcela Vissio e Florencia Butierrez, condenou Reina Maraz por homicídio qualificado de duas ou mais pessoas, roubo qualificado sozinho e em bando, em disputa real. Desconhecendo as múltiplas violências das quais ela era vítima, ignorando que seu suposto cúmplice era quem a violada como forma de pagamento de dívidas, omitindo provas fundamentais e validando provas questionadas por especialistas.

Foi condenada quase sem provas, sem ter meios de defesa, em um país estranho ao qual foi obrigada a ir, sem conhecer o idioma nem saber de que era acusada. Foi condenada por ser boliviana, pobre e mulher. Por estar em um lugar de máximo desamparo e sem nenhum acesso à justiça. É vítima não só da violência machista, mas também da violência institucional do próprio Estado e da Justiça, que a sujeitou a uma revitimização sistemática e a condenou a prisão perpétua. Sim, a mesma sentença imposta a alguns repressores da ditadura, enquanto muitos outros genocidas e policiais assassinos seguem impunes.

MARCELINA: DISCRIMINAÇÃO E XENOFOBIA

Marcelina Meneses era boliviana. Em 10 de Janeiro viajava na Línea Roca de Trenes Metropolitanos (TMR) para levar seu filho Josua, de 10 meses, ao Hospital Finocchietto. Após um ataque xenofóbico por partes de alguns passageiros, foram empurrados do trem, caíram e morreram os dois.

Houve apenas uma testemunha que falou sobre o caso: Julio Cesar Giménez. Em seu relato, Marcelina estava parada em direção à porta com seu bebê nas costas e carregando sacolas (ninguém lhe deu um assento no trajeto). Acomodando-se para se preparar para sair, esbarrou uma das sacolas em um que passageiro que gritou “Boliviana de merda! Não olha pra onde vai?!”. Giménez interferiu dizendo que tenham mais cuidado porque era uma senhora com um bebê. E um segundo passageiro completou “O que você está defendendo? Se esses bolivianos vêm roubar nossos empregos. Igual os paraguaios e os peruanos”, outros passageiros se juntaram aos insultos xenófobos. Segundo o relato, apareceu um guarda que se aproximou até escutar a discussão e os insultos xenófobos e culpou “os bolivianos” de “fazer um quilombo sempre”. Sobre o assassinato de Marcelina e Josua disse: “Foi uma coisa de segundos. Se havia somado outras pessoas. Houveram mais insultos e escutou-se: - Ui, Daniel, puta que pariu, você a empurrou” (Página/12, 2/6/2001).

Giménez declarou também que duas pessoas da empresa lhe ofereceram dinheiro, doações para sua colaboração e trabalho para que mudasse sua declaração, usando o mesmo argumento que os passageiros: “Você sabe que TMR emprega muita gente. A migração dos bolivianos tiram o trabalho dos argentinos, o seu trabalho, o do seus pais, de todos”. Justificando o ataque xenofóbico e tentando romper, já que a TMR desde o começo sustentou que Meneses havia sido atingida de raspão pelo trem enquanto caminhada nos trilhos. O legislativo portenho sancionou a lei Nº 4409 de 10 de janeiro como o Dia das Mulheres Migrantes, em memória de Marcelina Meneses, mas seus assassinatos continuam impunes.

***
NOTAS

[1] Informe sobre las migraciones en el mundo 2015. Organización Internacional para las Migraciones (OIM).
[2] Ver Picón, A. y Ajuacho, M. “Pocos derechos, muchas fronteras”, IdZ 6 diciembre 2013.
[3] Las mujeres migrantes y la violencia de género Aportes para la reflexión y la intervención. Organización Internacional para las Migraciones (OIM)/ Ministerio de Desarrollo Social del Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2014.
[4] Ídem.
[5] Recomendación General Nº 26 Sobre las trabajadoras migratórias de la Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer (CEDAW según sus siglas en ingles).
[6] Ortega, L., “Entre la feminización del trabajo y la precarización”, IdZ 20, junio 2015.
[7] El progreso de las mujeres en el mundo 2015-2016: Transformar las economías para realizar los derechos, ONU Mujeres, 2015.
[8] Ídem.
[9] Para ampliar ver Murillo, C. “Trabajo doméstico, femenino y no remunerado” IdZ 20, junio 2015.
[10] Fernández, M. I. y Legnazzi, L., Mujeres en la industria textil. De la fábrica al taller clandestino, Buenos Aires, Biblos, 2012.
[11] El progreso de las mujeres en el mundo 2015- 2016, ob. cit.
[12] Para ampliar ver Picón y Ajuacho, ob.cit.
[13] Carta del 9 de abril de 1870 a Meyer y Vogt.

 
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