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IDEIAS E DEBATES
Preconceito linguístico e a escola como instrumento de poder
Flávia Toledo
São Paulo

Recentemente o caso de um médico que debochou da maneira como um paciente falou em seu consultório repercutiu nas redes sociais e levantou um importante debate para tempos em que se discute atrocidades como o “Escola Sem Partido”: existe, afinal, certo e errado na língua?

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Há alguns anos começou a aparecer no currículo escolar a ideia de variantes linguísticas, ou seja, da língua, e a discussão a respeito do chamado “preconceito linguístico”. A discussão é bastante simples: a língua é um organismo vivo que sofre constantes alterações. Essas alterações podem se dar ao longo do tempo – um exemplo conhecido é o da palavra “você”, que no Brasil já foi “vossa mercê”, “vosmecê” e se transformou no termo que usamos hoje. É um dentre inúmeros casos de mudanças, que se dão tanto no léxico, ou seja, nas palavras que usamos, quanto no modo de construir as frases.

Usando o mesmo termo como exemplo, posso citar outras diferentes formas de dizê-lo. “Ocê”, “ce” e o famoso “vc” que tanto utilizamos na internet são três possibilidades de se dizer “você”. Mas se elencarmos as quatro formas e perguntarmos quais estão corretas, será quase unânime a resposta de que só é correta a forma “você”, mesmo que todas as outras permitam que se entenda o que foi dito e qual a ideia a ser transmitida. É o que a gramática ensinada na escola nos diz.

A minha resposta e a de teóricos importantes como Marcos Bagno a essa pergunta é a de que todas estão corretas, pois todas estabelecem comunicação. É aí que entra a discussão das variantes linguísticas. Além das alterações que se dão ao longo do tempo, existem diversas formas de se dizer e escrever ocorrendo atualmente. São variações que se dão devido a diferenças de idade, geográficas (um exemplo é a eterna discussão do biscoito e da bolacha entre Rio de Janeiro e São Paulo), de modo de vida, de classe, ou seja, de contexto. O “você” foi utilizado por muito tempo junto com o “vosmecê”, até que essa última forma deixou de existir e foi substituída.

Existem diversas maneiras de utilizar a língua. E existem, também, diversas gramáticas. A que aprendemos na escola é chamada de “gramática normativa”, que ensina uma norma específica, a norma padrão ou culta. Essa norma nos é ensinada como a maneira correta de usar a língua, o que fere um direito básico que é o de poder se expressar. E essa lógica leva ao que chamamos de “preconceito linguístico”, que é, basicamente, a exclusão e marginalização de pessoas que não dominam essa variante da língua.

Mas o que é a norma padrão e de onde ela vem?

Uma discussão básica do marxismo é a de que as ideias dominantes em um determinado tempo são as ideias da classe dominante. A grande mídia, dominada pela burguesia, expressa os valores e as ideias dessa classe. Assim como a religião (antes da ascensão da burguesia, por exemplo, cobrar juros era considerado pecado pelo catolicismo, já que é uma cobrança feita em cima do tempo, que pertenceria unicamente a deus. Uma vez que a burguesia, que depende do lucro, domina as relações de produção, essa ideia some da religião), os valores morais, por exemplo a respeito da sexualidade, e muitas outras questões. E a língua, como código, é também um instrumento de poder.

Não é à toa que falamos português no Brasil, enquanto o resto da América Latina fala espanhol: nosso país foi colonizado por portugueses, os demais países pelos espanhóis. A exploração levada à frente pelas metrópoles nas colônias só poderia se dar efetivamente se elas também impusessem sua cultura e sua língua. Também não é à toa, nem tampouco “natural”, que a língua estudada em todo o mundo seja o inglês. A maior potência imperialista do mundo, que tem o maior poder bélico, econômico, político e cultural, são os Estados Unidos. Se a moeda que circula mundialmente, que quantifica a exploração em todo o mundo, é o dólar, não é uma coincidência que seja o inglês, a língua desse país, a “língua internacional” por excelência, língua que molda nossos gostos musicais, culturais e que nos ensina, por exemplo, como devemos nos relacionar através de suas comédias românticas enlatadas. É a língua do mercado, e se somos todos mercadorias no capitalismo, essa é a língua que devemos usar.

A língua é mais um instrumento de poder utilizado pela burguesia para garantir a sua dominação, e da mesma maneira que essa classe se utiliza do machismo e do racismo, por exemplo, para poder gerar postos cada vez mais precários de trabalho, superexplorando mulheres e negros, ela também se utiliza do preconceito linguístico para marginalizar e calar grande parte da classe trabalhadora.

A norma dita culta, a norma padrão, é a variante da classe dominante, a burguesia, e só é ensinada na escola, diferente das demais variantes que todos aprendemos em casa, com nossos amigos, vizinhos, na rua. A educação, sabemos bem, é mais uma mercadoria no capitalismo. Para ter uma educação de qualidade, você tem que poder pagar por ela. Não é difícil perceber que essa variante, tida como “correta”, é um privilégio de poucos. E aos muitos que não a dominam, sobram os piores postos de trabalho, a marginalização e a completa exclusão social.

Dizer que existe uma forma “correta” de se utilizar a língua é dizer que todas as outras são erradas. E se todas as outras são erradas, os falantes de todas as inúmeras variantes caem no desprestígio. Essa lógica vai se expressar em situações absurdas e elitistas como a do médico, um homem branco e claramente de classe média ou média alta, que se sente no direito de humilhar um trabalhador braçal, negro, com pouca escolaridade (como o é a maioria da população brasileira) porque ele “ousou” dizer ao “importante” doutor que podia estar com peleumonia. Agora, me responde: o problema respiratório muda devido à forma como o paciente chama a doença? Me incomoda mais pensar que provavelmente a pneumonia se deu por conta das péssimas condições de trabalho ou da moradia provavelmente precária desse homem em meio ao inverno do que na forma como se diz.

Mas não. Para o capitalismo toda e qualquer forma de opressão vale a pena. Diga aí que existe apenas um jeito certo de usar a língua que você já tem um “motivo concreto” pra fechar a porta na cara de milhões de trabalhadores e jogá-los na fila do trabalho precário. Diga isso e a situação absolutamente precária de inúmeros jovens que são superexplorados nos postos de telemarketing vira motivo de piada nacional. Jovens esses que têm que se podar na forma como falam pra poder passar numa entrevista de emprego.

Se você tiver a oportunidade de ir pra um país que fale outra língua ou de conversar com um estrangeiro sem que nenhum dos dois seja fluente na língua do outro, verá que a comunicação é difícil. Você vai dizer as frases mais simples possíveis, vai evitar entrar em qualquer assunto que demande alguma complexidade. O mesmo acontece quando você obriga alguém a usar uma variante que não é sua e que, pior do que isso, é considerada melhor que a dele. O preconceito linguístico envolve questões objetivas, como a falta de educação pública de qualidade e a exigência de não apenas dominar a norma padrão como também falar inglês para conseguir empregos minimamente decentes, e questões subjetivas. Se o seu modo de falar não tem prestígio, nada que você disser será digno de ser ouvido e levado em consideração. É mais uma das formas de calar a classe trabalhadora e a juventude periférica.

A escola como instrumento de dominação

Um dos instrumentos de dominação da burguesia é a escola. É ali que você aprende a se portar como a burguesia quer que se porte, a defender os interesses que a burguesia quer que você defenda e a falar como a burguesia quer que fale. O projeto da “Escola Sem Partido” é uma radicalização disso. É impedir que a escola acompanhe os avanços subjetivos da classe trabalhadora, que a cada processo de luta tem condições muito boas de rever as opressões que reproduz e repensar o mundo e sua vida.

Esse projeto não visa apenas impedir discussões de gênero, sexualidade e política. O setor que apoia essa aberração odeia a discussão de variação linguística, abomina a ideia de desconstruir a noção de certo e errado na língua, porque faz o que for possível para que aqueles que podem derrubá-lo não consigam dizer o que sentem, não expressem o seu repúdio a esse sistema de exploração e miséria em que vivemos.

Não quero aqui fomentar a ilusão de que a educação, sozinha, pode revolucionar o mundo. Não pode. E não pode porque é apenas uma engrenagem de uma máquina gigante. Mas é fundamental que exista na escola uma contrapressão a essa ordem de coisas. Porque se ela não faz cair o sistema, pode muito bem ajudar a formar os lutadores que o farão. Mas essa é uma luta duríssima.

Do mesmo jeito que a escola burguesa não vai mudar nada, não será uma revolução linguística que nos emancipará. Mas fazer o debate de forma a fazer avançar a consciência de que é preciso lutar com todas as forças contra a burguesia que até o direito à fala nos tira é de suma importância. Se nos atacam por todos os lados, temos que ter barricadas em todos eles.

O combate ao preconceito linguístico deve se dar de duas maneiras. Em primeiro lugar abolindo a ideia de que existe uma forma “correta” de se dizer. Explicando que devemos e podemos ser “poliglotas da própria língua”, ou seja, que é importante que falemos de acordo com o contexto em que estamos inseridos para poder dialogar com quem quer que estejamos falando.

Mas também deve se dar de outra maneira. Trotsky reivindicava a importância de garantir que a classe trabalhadora tivesse acesso ao conjunto da cultura produzida sob domínio da burguesia, entendendo que mudanças culturais não se dão de supetão e que nós devemos nos apropriar de tudo o que nos foi negado. Por isso é importante que cada professora e professor que entre numa sala de aula faça questão de armar os seus estudantes, fazendo com que dominem a norma padrão de maneira crítica, sabendo qual o seu papel e como ela é, também, um instrumento de dominação. Saber falar com a forma da burguesia um conteúdo carregado de ódio dessa classe que nos oprime e explora é, também, uma arma importante.

Língua é poder. Entendendo isso é que se faz tão importante ter espaços como essa rede de diários, em que o Esquerda Diário é a seção brasileira: para que os trabalhadores, a juventude, mulheres, lgbts, negros tenhamos voz num mundo que quer nos calar a todo custo. Um portal que chegue a todos e onde todos possam ser sujeitos de se expressar, em qualquer que seja a forma. Seremos milhões de vozes anticapitalistas, nas suas mais variadas formas – e quando a burguesia perceber que também falamos a língua dela, meu queriiiido, vai estar batendo um desespero LOCO do lado de lá.

 
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