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ARGENTINA
Cristina: um novo discurso com várias omissões
Eduardo Castilla
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Fotografia: Mario Casado

Tradução: Cassius V. Jesus

“Liguem o ar condicionado. Vocês ganham muito bem” gritou a mulher para o alto-falante de onde se escutava ao condutor da manifestação. Dez segundos depois começou a cantar “voltar, voltar, vamos voltar...”

Era uma das formações da linha A do metrô de Buenos Aires. Milhares de pessoas, entre elas a mulher dos gritos, voltavam das imediações do Tribunal de Comodoro Py (província de Buenos Aires), depois de ficar em pé por várias horas, sob uma chuva que mudava de intensidade. Estavam “apoiando” Cristina Fernández em seu caminho para depor perante o juiz Bonadio.

A sensação era de euforia. A “Chefa”, como é chamada em seu próprio jargão, voltava ao ringue depois de cinco meses. Falou muitas coisas e deixou outras várias sem falar.

A importante concentração embaixo de chuva e em horário de trabalho mostrou a capacidade de chamado da ex-presidente. Ao mesmo tempo desvelou os limites e contradições do intitulado “projeto nacional e popular” na oposição.

Nesse contexto, onde Cristina entregou sua defesa escrita pedindo a impugnação do juiz, a intimação de Bonadio ficou parecendo piada.

Nem pela comida nem pelo plano, viemos pelo projeto*

Às 09h35min da manhã, quando Cristina Kirchner chegou às portas dos Tribunais, já era possível contar algumas dezenas de milhares de pessoas presentes no local. *Entre as pessoas foram colocados tachos que serviam “chorizo a La pomarola”, receita argentina de linguiça e molho de tomate, por isso o subtítulo “Ni por el chori ni por el plan, vinimos por el proyecto” [N.T.].

“Não viemos pela comida, não viemos pelo plano, viemos pelo projeto nacional e popular”. Esse foi um dos “cânticos” mais escutados na manha chuvosa. Uma espécie de radiografia dos setores predominantes.

Caminhar entre a multidão se tornava mais difícil perto do palanque. Era mais fácil transitar pela rotatória que leva a estação Retiro. A caminhada permitia dar conta de uma importante composição de classe media progressista ou “classe média trabalhadora” entre os presentes. Havia muitos jovens, mas também muitas pessoas com 50 anos ou mais. Aqui ou ali, era possível encontrar jovens de origem mais humilde.

Presenças e Ausências

A concentração contou com milhares de pessoas que não se achavam enquadradas em nenhuma organização. Embora fosse impossível chegar a um número exato, era evidente a quantidade de pessoas, se observasse o movimento por fora das colunas. Dentre elas, as que mais se destacavam eram La Cámpora, Unidos e Organizados e, em menor escala, o Movimento Evita.

As organizações sindicais praticamente brilharam por sua ausência. Era possível distinguir as bandeiras da Associação dos Trabalhadores do Estado (ATE capital), o Sindicato do Comércio (também da capital), a Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA) liderada por Hugo Yasky, o Suterh e o Satsaid (televisão). Esses grupos levaram tambores e houve alguma batucada, mas sem contingentes significativos.

Os prefeitos dos municípios da província de Buenos Aires simpatizantes de Cristina também deram uma modesta contribuição. Era possível ver bandeiras de agrupações e organizações kirchnerista de Merlo, Barazategui, Avellaneda, Moreno e La Matanza, entre outros partidos. Também estavam os próprios prefeitos, mas as colunas não eram numerosas. A razão do escasso número de pessoas devia-se ao horário, a impossibilidade de se entusiasmar e a simples especulação política.

“Aqui estamos todos juntos, canalhas e leprosos” disse um argentino de Santa Fé para o outro. O homem usava uma jaqueta de toca com as cores do Newell’s. O interior do país mostrou-se “presente” com delegações variadas. Bandeiras de Córdoba, Mar Del Plata, Rosário ou Mendoza podiam ser vistas na mobilização.

Vista como um conjunto, a concentração evidenciou duas questões. A primeira: o importante poder de chamado que Cristina Kirchner ainda tem. Na guerra de números que seguiu a manifestação, o kirchnerismo falou de 300 mil pessoas e a Polícia Federal em 12 mil. A estimativa feita por La Izquierda Diario, que esteve presente no local, foi de aproximadamente 40 mil pessoas.

Em segundo lugar, apesar desse importante chamado, parte fundamental do que foi o “projeto” quando o kirchnerismo estava no governo estava ausente. A burocracia sindical e uma parte importante da cúpula peronista optaram por não comparecer. Entre os ausentes, não foi um detalhe menor o chamado “faltaço” de Daniel Scioli que, até ontem era nada mais nada menos que o candidato do “projeto”.

Cristina no palanque I: a “frente cidadã”

Depois do processo Express no quarto andar do Tribunal, a ex-presidenta discursou ao público. Foram 60 minutos, onde desfez conceitos, relembrou as ações da Justiça contra Yrigoyen e Perón, criticou as medidas de ajuste de Macri e explicou porque guardou um “silêncio respeitoso” por quase cinco meses.

Até agora, nada de surpreendente. Mas a verdadeira novidade foi o chamado para a formação de uma “grande frente cidadã” que se proponha a “reivindicar seus direitos arrebatados”. O Congresso Nacional seria o lugar onde essa “frente” poderia ter influência.

A proposta contém certo tipo de ruptura com o “dogma” kirchnerista que nunca considerou o “cidadão” um sujeito que poderia questionar. Mas sim, um interlocutor privilegiado do macrismo, do massismo e outras forças autodenominadas “republicanas”. A pergunta óbvia é: então, para quem Cristina estava falando?

Tudo parecia indicar que ela se propõe a dialogar com amplas camadas das classes medias que começam a sentir em seus próprios bolsos o ajuste macrista. Também poderia estar se dirigindo aos que votaram em Sergio Massa. O chamado tem uma enorme amplitude.

Ph: Mario Frias Casado

Porém a proposta gera mais perguntas que respostas. Mas permite perceber a necessidade do kirchnerismo em conquistar uma base mais ampla que aquela “minoria intensa” que foi parte essencial de sua configuração no último período de governo. Não é por acaso, então, que tópicos comuns desse período, como as “Corporações”, tenham desaparecido de seu discurso ontem.

Cristina no palanque II: “A palavra traição é muito forte”

Como não podia ser diferente, houve a menção dos “traidores” do ato. Mas não foi a oradora quem mencionou, mas sim os que estavam assistindo debaixo.

Precisamente para essas pessoas, mas também para todo o país, Cristina Kirchner respondeu que “a palavra traição é muito forte”.

Esse fato parece legitimar o fato de que o kirchnerismo, por suas próprias limitações políticas, continuará jogando o peronismo dentro de um mar enfurecido. Essa confirmação viria de outra passagem de sua intervenção, onde disse que as únicas duas organizações que “haviam integrado” – em alusão a acusação de associação ilícita – foram “o Poder Executivo nacional e o Partido Justicialista”.

Silêncios

Foram muitas as omissões de Cristina. Por exemplo, a palavra “buitre” (oportunista) esteve ausente de seu discurso e não foi por acaso. Seu uso implicaria condenar abertamente os deputados e senadores que, da banca da Frente pela Vitória (FpV), permitiram a aprovação do acordo celebrado para pagar os “fundos oportunistas” (fondos buitres).

As críticas da ex-presidenta aos ajustes foram mais que parciais. “Esqueceu” os ajustes que estão sendo implantados nas províncias governadas por aqueles que triunfaram liderando as listas da Frente pela Vitória. Uma dessas províncias é Santa Cruz, onde sua cunhada, Alicia Kirchner, propõe acordos salariais miseráveis para professores e servidores públicos.

Outra é a província de Terra do Fogo [,Antártida e Ilhas do Atlântico Sul]. Ainda ontem, enquanto Cristina falava nas portas de Comodoro Py, a governadora kirchnerista, Rosana Bertone anunciava que iria dispersar o protesto dos funcionários públicos no centro de Ushuaia.

Retorno e futuro

Quando a concentração começava a dissipar, escutou-se uma senhora dizer “obrigada Bonadio”. Não era para menos. Cristina voltou à cena política através de uma intimação judicial. A fragilidade dela faz com que cresça sua possibilidade de “vitimização”.

Ao fazer um chamado pela configuração de uma “frente cidadã”, Cristina estabelece os parâmetros a partir dos quais fará oposição ao macrismo daqui em diante.

Porém, esse novo tópico discursivo tampouco implica em um chamado serio para enfrentar o ajuste com lutas. Esse “novo relato” pode ser útil para o kirchnerismo no que diz respeito a negociar um lugar dentro do universo peronista, mas está longe de conseguir confluir a resistência que, efetivamente, envolva milhares de trabalhadores em todo país frente ao ajuste.

Nessas lutas, as agrupações referenciadas no Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) e na Frente de Esquerda procuram desenvolver um papel para avançar na coordenação de lutas e propor medidas contundentes para derrotar o plano de ajuste. Nessa perspectiva a esquerda também exige, constantemente, que as direções sindicais rompam a trégua com o governo nacional.

Nesta quinta-feira, mostrando concretamente essa prática, Nicolás Del Caño e Patricio del Corro – figuras importantes do PTS-FIT – participarão da manifestação dos funcionários públicos de Santa Cruz contra o ajuste de Alicia Kirchner.

 
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