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"A participação de mulheres e dissidentes na rebelião chilena foi muito ativa"
Alejandra Decap

Trabalho apresentado na mesa "Estratégias para o debate em um mundo em crise" da IV Conferência Marxista Feminista Internacional.

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Olá companheiras e companheires. Assim como Andrea, queria começar minha intervenção agradecendo o espaço e esperando que suscite debates frutíferos.

Vou me referir particularmente à rebelião chilena, passando por alguns elementos para compreender sua origem, seu caráter disruptivo e a potência que teve. Vou abordar a reflexão colocando como ator social o movimento de mulheres, já que é muito difícil pensar a luta de classes no Chile como um fenômeno desligado deste movimento.

A revolta no Chile se dá no marco do incremento de lutas em todo o planeta, depois da crise capitalista de 2008, com grandes mobilizações em diversos lugares do globo; foi uma resposta frente à crescente pauperização da vida que se chocava com o discurso oficial de que o Chile era um país em via de desenvolvimento: “o oásis da América Latina”.

Durante os anos 1990, houve uma relativa estabilidade dos governos, mediante o aperfeiçoamento do sistema econômico herdado de Pinochet, e seu aprofundamento, por parte de um dos conglomerados políticos mais importantes da época, a ex-Concertación. Esse grupo unificava a Democracia Cristã, o Partido Socialista, o Partido pela Democracia e o Partido Radical Social-democrata.

Esses partidos, oposição à ditadura, se dedicaram a administrar a ordem que foi imposta na ponta do fuzil pelos militares e seus aliados civis de extrema direita: um sistema neoliberal com lógica de Estado subsidiário, onde os direitos mais básicos, como a saúde ou educação são considerados bens de consumo.

O movimento estudantil irrompeu em 2006 e 2011, permitindo uma abertura a novos questionamentos. Em 2011, com o primeiro governo de Sebastián Piñera, as e os estudantes questionam a Educação de Mercado, denunciando o desmantelamento da educação pública, exigindo que a educação seja gratuita em todos os seus níveis.

Essas manifestações da juventude incorporaram ao debate educacional a situação das mulheres e das lutadoras. Levantamos Secretarias de Gênero nos locais de estudo - e eu falo no plural, porque sou parte dessa geração estudantil - tirando a discussão feminista do acadêmico para coloca-la na discussão política. Impulsionamos espaços de auto-organização, e o Encontro por uma Educação Não Sexista em 2014. Desde 2012, existe uma maior força da comunidade LGBTQIA+ nos protestos contra a discriminação e os crimes de ódio.

O movimento estudantil habilita uma série de lutas posteriores: a entrada dos “movimentos sociais”. Ativas lutas operárias: desde 2011 até 2014 se desenvolvem mais greve no país do que em todo os anos 1990.

Depois de 2011, começa a se configurar uma nova força no contexto chileno, marcado desde o regresso à democracia pela política dos acordo entre os dois principais conglomerados: a direita, herdeiros do pinochetismo, e a ex-Concertación. Essa nova força que surge é a Frente Ampla, que se identificava então no campo antineoliberal.

Em 2015 e 2016 ocorre um movimento internacional que tirou a violência machista do privado e converteu em um problema social, insinuando seu caráter estrutural no capitalismo patriarcal e racista: NiunaMenos, movimento que impactou no Chile. Se intensificam então as mobilizações, e o surgimento de coordenações, encontros, mesas de discussão, etc.

Acontece o Maio feminista em 2018, paralelamente à maré verde argentina. Esse movimento denunciava a violência machista e a discriminação nos locais de estudos; se instalou a níveis de massas a crítica ao machismo, abrindo as portas a muitas companheiras à vida política, o que significou também um incremento de participação feminina nos sindicatos e espaços de organização estudantis.

O Maio feminista obrigou os partidos a tomarem as demandas das mulheres. A Frente Ampla abarcou essas bandeiras pra pressionar as instituições e conseguir alguns direitos, na medida do possível. Se abre então a primeira brecha no movimento de mulheres no pós-ditadura:

Primeiro, por como abordar o problema da violência machista. Algumas de nós declaramos que a violência machista é a regra e não a exceção; que funciona como mais uma parte da engrenagem do sistema, e que, paralelamente a desenvolver políticas preventivas e com centro nas vítimas, é necessário lutar contra o conjunto de condições que habilitam, validam e reproduzem a opressão. Outras declaram a necessidade de recrudescer as medidas judiciais contra os agressores, e muitas adotaram pelo o que é conhecido mundialmente como a política do escracho e cancelamento.

Segundo, o debate dos direitos sexuais e reprodutivos: aqueles que lutamos pelo direito ao aborto legal, livre, seguro e gratuito, em base a nossa mobilização, tomando o exemplo da Argentina, e aqueles, como o Partido Comunista e a Frente Ampla, que defendiam mobilizações de pressão para a descriminalização do aborto, uma modificação no código penal que não garante o acesso ao procedimento, e sim exclusivamente a não perseguição policial. Não levando em conta as limitações que o congresso chileno tem atualmente para modificar o orçamento nacional.

Se começam então a diferenciar mais claramente duas formas de entender a luta.

No fim de 2018, o Estado Chileno assassinou o líder mapuche Camilo Catrillanca, ocasionando protestos nacionais e debilitando o segundo governo de Piñera. O movimento de mulheres e dissidentes, sob a direção da Coordenação Feminista 8 de março, incorpora em suas reivindicações, demandas das mulheres trabalhadoras, do povo mapuche, das imigrantes.

A Greve Feminista do 8M em 2019 foi massiva em todo o país. Até meados de 2019, saem novamente a lutar as e os professores e trabalhadores da educação. Nessa luta, a questão de gênero não só esteve presente pela composição majoritariamente feminina do setor educacional: uma das principais demandas da mobilização foi a igualdade salarial entre homens e mulheres. Se mobilizaram também as e os estudantes secundaristas contra a Lei Aula Segura, que buscava criminalizar a juventude.

Então em outubro, o governo anunciou um novo aumento - de 30 pesos - na passagem do metrô. As e os estudantes secundaristas organizaram evasões massivas nas estações, escapando da escola e saltando as catracas contra o aumento. No dia 18 de outubro, todo o metrô de Santiago é interditado; milhares de trabalhadores que voltavam a suas casas ficam sem transporte, e ocorre uma manifestação popular massiva, com ações diretas, de caráter espontâneo. Se impõe a consigna de que “Não são 30 pesos, são 30 anos”, fazendo referência aos 30 anos de administração, por parte da direita e da Concertación, da herança de Pinochet: um regime neoliberal e autoritário, machista e racista.

O governo responde instaurando a Lei de Segurança Interna do Estado. Isso não diminui a raiva, pelo contrário, aumenta ainda mais. A chama da revolta se estendeu durante o dia 19 de outubro por todo o país. A combatividade nas ruas, queimas de edifícios e instituições públicas, saques e barricadas e o enfrentamento com a política e os militares é o que predominava. O Estado responde com mais repressão: há mortos, desaparecidos, pessoas torturadas, violência político sexual, mutilações, milhares de feridos e presos. Piñera nos declarou guerra, implementou toque de recolher e reprimiu brutalmente. Mas não nos detiveram. Articularam-se brigadas auto-organizadas de saúde e auto-defesa - a chamada linha de frente - para enfrentar a repressão. Na semana seguinte ao “estouro”, 90% dos portos no Chile são paralisados, ocorrem gigantescas mobilizações, paralisação de trabalhadoras e trabalhadores da saúde, os mineiros de Escondida paralisam a maior mina do mundo, ocasionando perdas milionárias aos grandes magnatas do país.

A luta continuou incansável. No dia 25 de outubro se realiza a “maior marcha”, convocando mais de um milhão de pessoas em Santiago. O caráter foi festivo, a ponto do próprio Piñera sair e saudar a manifestação, tentando dividir o povo entre os “democráticos pacifistas” e os “violentos”: debilitar de outra maneira a rebelião, isolando os setores mais combativos do resto da população, pois a repressão não era suficiente.

A participação das mulheres na rebelião foi ativa. Nos envolvemos nas manifestações, participamos nas assembleias territoriais, organizamos atividades políticas e culturais que chamavam à unidade da rebelião contra Piñera e seu governo assassino. Nossos panos verdes e roxos estavam presentes em cada mobilização. Nas principais cidades do país, enquanto Pão e Rosas, junto com nossos companheiros do Partido de Trabalhadores Revolucionários, impulsionamos coordenações e assembleias.

Em Antofagasta o Comitê de Emergência e Resguardo adquiriu muita força, um espaço de luta e articulação política que chegou a ter um peso importante na cidade mineira, desafiando a autoridade do município.

As demandas da rua eram claras: Assembleia Constituinte, para colocar abaixo a constituição de Pinochet, e Fora Piñera. Além dos gritos contra a repressão, o programa de outubro era uma crítica radical às instituições do Chile pós-ditadura, ao trabalho precário, aos salários de fome.

Os organismos do movimento de mulheres, como a Coordenação Feminista 8 de Março, participaram na Mesa de Unidade Social, uma coordenação de organismos de trabalhadores e organizações sociais, com a burocracia sindical do PC a frente. A Mesa de Unidade Social foi um dos principais convocantes das mobilizações. Entretanto, convocaram sem considerar a centralidade que tem os setores estratégicos da economia para colocar em cheque os poderosos, ainda tendo como antecedente o incremento da atividade de greve em nosso país: mais de um terço das greves extra-legais do setor público e privado ocorreram entre outubro e novembro deste ano, coincidindo com o momento mais agudo da revolta social.

Depois de semanas de mobilização, as direções do movimento convocam uma Greve Geral para o dia 12 de novembro, que surpreende completamente: se realizou uma ampla aliança de classes nas ruas, constituindo um ponto de inflexão. As ações de protesto se quadruplicaram por um dia e uma noite, no que foi a “paralisação com maior massividade e repercussão econômica que se realizou no país desde o retorno à democracia em 1990, e possivelmente desde o golpe de Estado de 1973”, segundo Centro de Investigação Político Social do Trabalho.

Neste 12 de novembro, paralisaram 25 dos 27 principais portos, 90% do setor público, 80% das e dos professores, paralisação da saúde, paralisação de importantes obras de construção, entre outros setores produtivos. Houve massividade nas manifestações, extensos cortes de rua nas principais rodovias do país, e violentos enfrentamentos com as forças repressivas nas periferias e praças centrais. A magnitude da greve e das ações diretas forçou a paralisação de grande parte do transporte e do comércio nacionalmente. Houve dezenas de ataques a delegacias, inclusive quartéis militares. Mostrou que era possível conquistar, mediante esse caminho, a Assembleia Constituinte Livre e Soberana e tirar Piñera.

Importantes representantes da direita chilena declararam a possibilidade de queda do governo, ao contrário do que coloca a Frente Ampla - que a queda revolucionária de Piñera mediante à greve geral era só um sonho da ultraesquerda - , isso porque para a classe dominante era de fato um medo real que não estavam dispostos a se arriscar, mesmo que as burocracias dos movimentos não estivessem apostando em uma mobilização que crescesse e a manter a dinâmica de Greve Geral.

É por isso que no dia 15 de novembro se conforma o Acordo pela Paz e a Nova Constituição, que foi assinado tanto pelos partidos da direita, como a Concertación e a Frente Ampla.

Para a Frente Ampla, assinar o “Acordo pela Paz” era a única opção para “evitar uma matança”, já que o governo queria colocar de novo os militares nas ruas para reprimir. Entretanto, as forças armadas não estavam de acordo, já que não estava garantido impunidade por eventuais violações aos Direitos Humanos. O governo decidiu se apoiar na ex-Concertación e na Frente Ampla para dar uma saída política. Nesse dia começaram as negociações para um desvio institucional da luta de classes, para evitar a todo custo que a revolta desse um salto e se tornasse uma revolução.
O propósito fundamental do Acordo foi dividir a aliança de classes entre as camadas médias e os setores populares e entre os setores de “vanguarda” como a Linha de frente, e setores de massas. Colocaram armadilhas no processo constituinte, e proclamaram como uma conquista, por exemplo, a paridade de gênero no órgão redator da Nova Constituição no caso de que ganhasse o plebiscito. O “Acordo pela Paz” e a trégua que as burocracias sindicais e sociais asseguraram, terminaram por salvar Piñera.

A mobilização começa a decair. Não obstante, no dia 25 de novembro, dia contra a violência às mulheres, a rebelião ganha novo alento com a intervenção política de As Teses, que se fez reconhecida internacionalmente como uma denúncia à violência estatal, à repressão policial, e à justiça patriarcal. A denúncia de “O estado opressor é um macho violador” se propagou pelo mundo. O estado capitalista e patriarcal chileno estava sob um escrutínio mundial: saímos a seguir lutando, mas sem uma estratégia contraposta ao desvio institucional que já estava em curso.

Nenhum dos organismos do movimento de mulheres opôs uma alternativa para superar o Acordo e se subordinaram à ideia de uma Convenção constitucional histórica. A paridade foi uma tática de cooptação política do regime ao movimento de mulheres. Aqueles que iniciaram a rebelião, nossas companheiras estudantes secundaristas, sequer podiam votar e ser eleitas constituintes. O quórum de 2/3 permitia a direita e conservadores vetar qualquer medida que fosse contra sua moral reacionária. A luta do povo trabalhador, a luta das mulheres, dava para muito mais do que para um processo feito aos moldes da classe dominante: a rebelião é demonstração da enorme potencialidade que temos. Ainda que as direções tenham buscado desviar o que tinha de mais avançado nas massas, conseguimos ferir o modelo pinochetista, algo que ninguém acreditava que poderia acontecer.

O caminho aberto com a greve do dia 12 de novembro declarava as possibilidade tremendas que tinha a potencialidade hegemônica das mulheres trabalhadoras: em nós conflui a firme denúncia contra a precarização trabalhista, os salários de fome, a educação e saúde de mercado, a luta pelo direito à moradia; fortalecendo assim o ingresso da classe operária em cena, em particular os setores estratégicos como as minas, portos e o transporte; para desenvolver a ampla auto-organização de massas e coordenar a auto-defesa de massas contra a violência monopólica do Estado e assim, colocar abaixo os pilares da herança da ditadura.

Em 2020 tivemos outro massivo 8 de março, com milhões nas ruas. Mas os efeitos econômicos e sociais da pandemia, desmobilizaram, pelas demissões e pela crise sanitária que estávamos e estamos vivendo ainda. Nesse momento, o movimento de mulheres podia ter sido um fator para combater a passividade da burocracia sindical, de fato saímos às ruas no momento mais duro do confinamento contra a violência machista, mas as forças reformistas do PC e da Frente Ampla preferiram que isso não acontecesse. Nos restringiram votar no plebiscito e manter nosso protesto dentro da ordem.

Estamos a dois anos do “Chile Despertou”, nos encontramos em um processo constitucional já em curso, e também em meio a um cenário eleitoral parlamentario em que estamos participando com candidaturas em todo o país: o que acontecer em Chile estará influenciado em boa medida por quem ganhe as próximas eleições presidenciais, mas também se emerge ou não a classe trabalhadora como sujeito político.

A sensação de centenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras de ter sustentado o funcionamento do país durante a pandemia (o que é uma verdade), reviveu o surgimento de greves econômicas, e em alguns setores como em professores ou nas trabalhadoras da saúde, como a luta do Sindicato Século XXI que contava Cynthia, as lutas denunciam a política do governo.

Assim como a rebelião ativou mulheres, trabalhadores e setores populares na luta, também ativou uma direita mais dura, vociferante. A crise migratória, a crise em Wallmapu, território mapuche em resistência, faz com que esses setores se expressem: preocupante é o avanço nas pesquisas do ultradireitista José Antonio Kast, uma espécie de Bolsonaro e Trump chileno.

Em tempos em que as contradições se agudizam, companheiras e companheires, nossa potência, enquanto Pão e Rosas, é a política do necessário, não a miséria do possível. Desde o Pão e Rosas nos colocamos o desafio de impulsionar em todos os lugares em que estamos a força social que é a classe trabalhadora e seus setores estratégicos, porque queremos confrontar os pilares do Estado capitalista, patriarcal e racista. Não nos detemos aí. Temos o direito de traçar um horizonte de vitória, de terminar com esse sistema que oprime e explora, em busca de um mundo novo. Muito obrigada, companheiras e companheires.

 
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