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Ideias de Esquerda
A revolta dos Tapuias e a Confederação dos Cariris: um símbolo da resistência Indígena no Nordeste
Renato Shakur
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

Este texto tem o objetivo de mostrar a brava resistência indígena que resultou numa guerra no sertão do Nordeste contra a colonização portuguesa. Esse evento, que ficou conhecido também como “Guerra dos Bárbaros” ou “Confederação dos Cariris”, foi uma revolta dos indígenas Tapuias na sua luta contra a escravização e na defesa de suas terras. O primeiro ciclo de revoltas dessa resistência indígena iniciou em 1651 e terminou 1720 com envio de bandeirantes paulistas para massacrar e reprimir a luta, contando com a presença inclusive de bandeirantes que reprimiram o quilombo de Palmares. Essa é uma das mais heroicas e bravas histórias da luta indígena contra a colonização portuguesa, um grande símbolo da resistência indígena no Brasil.

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Introdução

A dominação dos holandeses sobre alguns territórios na região nordeste da colônia portuguesa era o limite para a consolidação da dominação portuguesa sobre a região que já contava com a ocupação e aldeamento do litoral, tendo conquistado, inclusive, algumas cidades. A conquista do litoral foi chave para os colonos escoarem os produtos provenientes da produção de cana de açúcar entre outras coisas. O aldeamento dos Tupis no litoral foi um passo importante e garantiu que o trabalho escravo indígena enriquecesse o Império português e abastecesse os mercados europeu e das Índias Orientais. Isso só foi possível, é claro, porque os europeus já haviam dizimado milhões de nativos e milhares de povos indígenas em apenas um século de colonização.

Os negócios da coroa portuguesa só seriam garantidos até o final se dominasse por completo o vasto território nordestino, do litoral ao sertão. A expulsão dos holandeses se deu em meados do século XVII, não de forma simultânea, mas já a essa altura a dominação flamenga não era mais vista como um problema. Se voltavam os olhos para os indígenas do sertão, os tapuias, pela denominação tupi eram aqueles não falavam sua língua; que por muito tempo mantinham alianças com holandeses, num acordo onde os tapuias não invadiam seus territórios e os holandeses respeitavam também suas determinações. A vitória militar sobre os holandeses colocou na ordem do dia a possibilidade de conquistar o sertão nordestino.

O sertão nordestino era estratégico para manutenção dos lucros extraídos do suor e sangue do trabalho escravo. Dominar esses territórios vastamente ocupados por várias etnias indígenas era ao mesmo tempo assegurar o domínio e aldeamento dos litorais, os interesses econômicos dos colonos que enriqueciam com os ciclos da cana de açúcar e, sobretudo, não colocar em perigo a administração e o poder dos portugueses em cidades e capitanias que àquela época eram colocadas a prova por Zumbi dos Palmares logo ali bem perto, na serra da Barriga. O avanço sobre as terras do sertão também significou em outra medida uma resposta à altura dos indígenas que não cessaram de atacar fazendas e povoados, essa dinâmica que combinava resistência indígena e expedições punitivas moldaram o desenvolvimento da guerra dos Tapuias [1]

A Revolta dos Tapuias

A resistência também ameaçou a manutenção do poder da coroa portuguesa. Os tapuias eram tido como “índios passivos", quase que “inofensivos” antes do século XVII quando a colonização se concentrava no litoral. Quando se colocou a possibilidade da colonização portuguesa avançar sertão adentro, eles passaram a ser visto como “selvagens”, “bárbaros” pelos padres e as elites locais. Na verdade, a mudança na forma de retratá-los nos documentos oficiais correspondeu a algo bem mais profundo que uma simples mudança de nome. “Bárbaro” é a nomenclatura colonial utilizada para caracterizar os povos ameríndios cuja a integração à sociedade colonial seria difícil ou impossível; essa resistência legitimaria as guerras de conquista e a escravidão [2]. Ou seja, no fundo o que os portugueses queriam era justificar para os colonos, os proprietários de terra e escravos e também para outros capitães mor das capitanias nordestina de que eles precisariam financiar essa guerra contra os tapuias e mandar tropas auxiliares quando fosse necessário. Isto é, mudaram a maneira pela qual retratavam os tapuias à medida que se preparavam para a guerra.

As doações de terras no sertão (sesmarias) e a expansão da criação de gado por parte dos portugueses sobre as terras indígenas foram fatores para que a resistência indígena contra dominação tivesse início [3]. A criação de gado bovino era chave para as fazendas de açúcar, era a força motriz do engenho e servia também para escoamento da produção. À medida que sesmeiros recebiam terras da administração real portuguesa e as alocavam e na medida em que essas fazendas e criação de gado se expandiam sob território indígena, os tapuias aumentavam sua hostilidade contra os portugueses.

Estavam em jogo também elementos culturais próprios das distintas etnias que desde o início da colonização se viam ameaçadas. O avanço sob território indígena significou na prática também colocar em cheque a dinâmica de migração sazonal, as práticas religiosas e culturais que seriam atacadas caso os tapuias perdessem a guerra e fossem escravizados.

Não foi por acaso que os portugueses encontraram uma forte resistência. A guerra dos Tapuias se desenvolveu no médio São Francisco, recôncavo baiano, nos sertões de Piranhas e Piancó, Paraíba; no Açu, Rio Grande do Norte, e na ribeira do Jaguaribe, Ceará. As primeiras batalhas que aconteceram foram de 1651 até 1679, com uma guerra no recôncavo baiano; a segunda maior batalha foi a guerra do Açu nos sertões das capitanias do Rio Grande, Ceará e durou de 1687 até 1720, e se espalham por Maranhão, Pernambuco e Piauí [4].

Os portugueses se surpreenderam com o nível de conhecimento bélico e de estratégia dos tapuias que haviam participado em guerras luso e flamengas e apreendido a forma de guerrear dos europeus, além de ter um profundo conhecimento do território. Muitos tapuias faziam migrações sazonais por conta da alimentação, eles migravam periodicamente do interior até o litoral, o que permitia que tivessem uma completa noção territorial, algo muito importante frente a inimigos que nunca sequer tinham pisado no sertão. Nessas migrações, os tapuias ajudavam indígenas aldeados a fugir, roubavam o gado, ameaçavam donos de terra que ousavam avançar sobre seus territórios, os que se aventuravam a desrespeitar os limites impostos pelos tapuias, acabavam pagando com a própria vida.

Fugas, alianças, deslocamentos e resistência armada, eram essas as formas de luta que os tapuias encontraram para defender sua terra. Na defesa de suas terras e sua cultura, eles lutaram contra os portugueses numa verdadeira guerra, porque o que estava em jogo além de seu território era também sua liberdade, sabiam que uma derrota custaria também a vida no cativeiro. As revoltas indígenas no Nordeste durante o século XVII e XVIII foram a prova de que a consolidação do domínio europeu custou muito caro à coroa portuguesa porque a resistência indígena nessa região foi muito forte, um grande símbolo de resistência. Durante boa parte da guerra dos Tapuias, inclusive, ficou em aberto se conseguiriam ou não conquistar o sertão nordestino.

A Confederação dos Cariris, os “senhores de todo o sertão”

Vendo o nível de organização dos tapuias, o representante da Companhia das Índias Ocidentais chegou a prometer presentes caso os tapuias não fossem mais a Natal para roubar gado e outros alimentos dos proprietários [5]. Acordos como este foram estabelecidos durante a guerra, mas o que primava sem sombra de dúvidas era uma intensa resistência e luta contra a dominação portuguesa. Na capitania de Pernambuco, o comportamento rebelde de Manuel Vieira da nação Cariri, foi relatado por um padre missionário à Junta das Missões da seguinte forma:

Propozerão-se as queixas que faz do índio Manuel Vieira do Ararobá o seu Padre Missionário sobre andar fugido pelo mato e não obedece ao missionário fazendo roubos, mortes, e assaltos, em prejuízo da dita Aldeia…

Certamente esse padre quis retratá-lo da pior forma possível, para que fosse o mais verossímil com a imagem do “bárbaro” que falávamos a pouco. Ainda que esse objetivo estivesse em jogo, sem querer o padre também deixou escapar um pouco do espírito dos indígenas da nação Cariri. Um espírito guerreiro, valente, de quem não iria abaixar a cabeça para nenhum europeu que quisesse roubar suas terras e escravizá-los, ou melhor, que não obedece a nenhum missionário!

A resistência indígena e sua rebeldia causavam medo nos proprietários de terra e missionários. Os tapuias ao longo da guerra ajudaram outros indígenas a fugir e se juntar à resistência. Utilizavam a tática de entrar sertão adentro, território que só eles conheciam, para dificultar serem pegos e sempre estarem um passo à frente dos portugueses. De 1651, da onde data as primeiras batalhas da revolta dos Tapuias, até 1673 com a guerra do Aporá, os portugueses não haviam alcançado nenhuma vitória. A resistência dos indígenas do sertão se conformou em unidade, as nações cariris que habitavam o sertão de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará constituíram uma forte aliança que era vista por seus inimigos como uma confederação.

A Confederação dos Cariris, composta pelas etnias janduís, paiacus, caripus, icós, caratiús e cariris, foi uma organização de resistência dos indígenas do sertão nordestino, configurando numa luta em unidade da nação Cariri na revolta dos Tapuias contra o mesmo inimigo. Ainda que não tenha alcançado uma forma mais acaba própria de uma confederação, os cariris mostraram que a luta em unidade pela liberdade foi uma marca importante dessa revolta indígena no Nordeste. No sertão de Rodelas, Pernambuco, por exemplo, onde houve um grande foco de resistência Cariri, após três anos de guerra o chefe português Manuel de Araújo propôs um acordo de paz [6].

Mapa 1: Localiza as etnias Cariris (amarelo) e Icós (vermelho) na primeira metade do século XVIII. As “Casas Forte” (verde) eram casas que tinham uma dupla função de fornecer abrigo e proteção aos fazendeiros, revestida de um material mais denso e consistente; tinham um objetivo militar e estratégico de garantir a ocupação do sertão durante a guerra contra os tapuias.

Em Natal, uma cidade que havia sido fundada no final do século XIV, a revolta dos tapuias, mais precisamente as etnias da nação Cariri, chegaram perto de tomar a cidade. Na medida que a guerra avançava e a coroa portuguesa não obtinha as vitórias necessárias, a elite local ia abandonando suas casas, atrás de refúgio em outras capitanias “mais seguras”, com medo de que os tapuias chegassem perto demais de seus lares, a Câmara de Natal chegou a votar leis que proibiam que a elite local deixasse suas terras [7].

Em um ofício da própria Câmara de Natal enviado ao governador geral da colônia, Mathias da Cunha, em janeiro de 1688, os camaristas relataram que os tapuias eram “os senhores de todo o sertão” e estavam a aproximadamente cinco quilômetros da cidade de Natal, na ribeira do rio Ceará-Mirim [8]. Ali ameaçavam os colonos, roubavam seus bois e os pressionavam a deixar suas terras, ficaram bem próximos de tomar a cidade que era na verdade bastante estratégica para a colonização portuguesa. A capitania do Rio Grande (atual RN) era central para os objetivos dos portugueses avançarem não apenas no sertão nordestino, mas, sobretudo, na região norte abundante em guaraná, salsa, anil, urucum, gergelim, cacau, castanha entre outros produtos conhecidos à época com as “drogas do sertão”, comercializados por um alto preço na Europa.

Mapa 2: Territórios no litoral que estiveram sob ameaça de invasão Tapuia nos anos 1688 até 1694.

Em resumo, o que estava em jogo na revolta dos Tapuias era a possibilidade de uma derrota categórica dos portugueses numa cidade estratégica como Natal, e numa capitania tão importante para os interesses comerciais como o Rio Grande. O desenvolvimento da luta dos indígenas em defesa de seu território e de sua liberdade poderia levar a que o domínio colonial enfraquecesse, colocando em questionamento inclusive a colonização no litoral, golpeando em cheio a produção canavieira do nordeste. A Confederação dos Cariris foi a expressão de que no desenvolver da própria luta de resistência indígena, aqueles povos foram encontrando suas formas de lutar, encamparam uma luta em unidade entre as etnias da nação Cariri.

Conclusão - A repressão de Palmares aos Tapuias

A repressão contra a revolta dos Tapuias foi extremamente violenta, sob o pretexto da guerra justa, ou seja, contra os indígenas que não aceitavam a catequização, aquela altura toda resistência tapuia, o governador geral Mathias da Cunha autorizou as maiores barbaridades possíveis e um verdadeiro genocídio contra os indígenas. Em 1687 o mesmo governador geral pediu auxílio ao bandeirante paulista Domingos Jorge Velho que se encontrava em Palmares reprimindo os quilombos. As sucessivas derrotas das tropas das das capitanias envolvidas na revolta dos tapuias obrigou ao governador geral confiar o desfecho da guerra nas mãos deste homem que era conhecido pela suas atrocidades e barbaridades cometidas contra negros e indígenas. À medida em que avançavam as tropas dos bandeirantes comandadas por Jorge Velho, Mathias Cardoso de Almeida e André Pinto, alguns povos assinavam o acordo de paz, outros se desgastavam ainda mais com guerra que já durava quase 50 anos ou então eram literalmente chacinados pelos bandeirantes paulistas [9]. Os bandeirantes e seus métodos nefastos foram chave para que a revolta chegasse ao final com a vitória dos portugueses. O último registro da resistência indígena nos sertões nordestino nessa guerra que durou aproximadamente 70 anos foi em 1720. A confederação dos Cariris só foi derrotada em 1713, pouco antes de acabar a guerra.

Certamente os indígenas, ainda que derrotados, seguiram lutando por sua liberdade, e essa é uma ideia que vem sendo desenvolvida por historiadores, pesquisadores e ativistas da questão indígena. O espírito de luta da Confederação dos Cariris e da resistência indígena nos sertões nunca acabou, eles continuaram lutando por suas terras, cultura e liberdade mesmo sofrendo genocídio e etnocídio. Mas o fato é que até os dias de hoje os povos indígenas seguem em sua luta pela demarcação de suas terras e por direitos, frente ao governo Bolsonaro e Mourão junto aos militares e ao agronegócio travam uma luta de vida contra o PL 490 e o marco temporal. Como foi no passado, as revoltas indígenas eram reais entraves para a colonização avançar, hoje diversos povos indígenas seguem travando a mesma batalha contra os interesses de uma burguesia racista e xenófoba que está de mãos dadas, sobretudo no que toca os interesses sobre as terras indígenas, com a extrema direita e os militares.

A escolha de Jorge Velho para reprimir e massacrar os povos indígenas que resistiam contra a invasão de terras no sertão do Nordeste, responsável por reprimir a maior luta de resistência negra no Brasil, mostra a força da resistência indígena e o que estava em jogo para autoridades e elites coloniais. A coroa portuguesa precisava dar um basta e uma lição para aqueles que se aventurassem contra as ordens de dominação. Mas não foi isso que aconteceu. Onde havia escravidão, havia resistência, onde havia invasão de territórios indígenas, havia revolta. Por mais que tivessem saído vitoriosos, a revolta dos Tapuias mostrou que as elites brasileiras se conformaram espremidas entre as revoltas negras e indígenas e a submissão ao imperialismo. Entende-se também nos dias de hoje a profunda devoção que a burguesia brasileira tem aos bandeirantes que têm suas mãos sujas de sangue negro e indígena e são sem sombra dúvida a continuidade de sua tradição. A Confederação dos Cariris e a revolta dos Tapuias são um símbolo de luta e resistência contra as elites locais e a coroa portuguesa, na defesa de suas terras, de sua liberdade e cultura, lutaram como bravos guerreiros por mais de meio século.

Mapas

1. Antonio José de Oliveira. “Os kariris-resistência à ocupação dos sertões dos cariris novos no século XVIII. p.28
2. Julio Cesar de Alencar. “Para que enfim se colonizem estes sertões: A câmara de Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722)”, p.110.

 
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