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REFORMA SANITÁRIA E PSIQUIÁTRICA
Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica - Lições de uma luta em defesa do SUS 100% Estatal
Samuel Rosa

A luta por uma sociedade sem manicômios, em meio a uma pandemia que já retirou mais de 400 mil vidas, está intrinsecamente ligada com a luta por uma Saúde Pública gratuita e de qualidade. Por isso, neste 18 de Maio, dia nacional da luta antimanicomial, retomamos a história de formação destas reformas que está vinculada a luta contra a ditadura militar e contra o lucro dos capitalistas. Desta forma, tentamos retirar lições para as lutas que virão, para a defesa do SUS e por uma sociedade sem manicômios.

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Foto: Rede Humaniza SUS

Reforma Sanitária

Para retomar o histórico de luta na formação no modelo de saúde hoje existente no Brasil, se faz necessário um resgate da luta de diversos movimentos sociais, partidos políticos e organizações da sociedade civil na construção de um modelo de saúde que atendesse a totalidade da população, entendendo a saúde como um direito público e imprescindível para um Estado democratico.

Após o golpe militar de 64, onde foi instaurada uma ditadura militar, autoritária e assassina no país, diversos movimentos sociais se colocaram em luta contra os crimes cometidos pelo Estado. A ditadura militar assumiu como estratégia o privilégio de entidades de fim privado, se aliando principalmente com o capital estrangeiro e capital nacional, implementando uma política de desenvolvimento econômico que excluiu a maior parcela da população. O “milagre econômico brasileiro, veio junto com reduções de salários, medidas higienistas para com a população negra, que auxiliou no crescimentos das favelas brasileiras, um aumento cada vez maior da desigualdade e, em contrapartida, um crescimento da concentração de renda e ainda, um aprofundamento da dívida externa do país que se perpetua até hoje.

Nesta época, a saúde era dividida entre uma saúde pública e uma individual, ficando a cargo do ministério da saúde as estratégias de prevenção de doenças, enfrentamento a endemias e atendimentos a camadas populacionais que não teriam acesso a nenhuma forma de saúde individual. Já o ministério da previdência, através do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), era responsável pela saúde individual dos portadores de carteira de trabalho, ou seja, quem tivesse carteira assinada teria acesso a alguma forma de plano de saúde vinculado a seu local de trabalho. Nessa época foi quando a saúde se tornou uma “mercadoria”, no sentido dela estar vinculada à lógica do Capital. Os locais de trabalho ofereciam planos de saúde que eram ofertados pelos grandes centros de iniciativa privada em saúde. As empresas contratantes recebiam isenção fiscal pelo pagamento da vinculação dos trabalhadores a estes serviços, portanto o governo dos militares incentivou a constituição de um mercado privado da saúde tanto na oferta de serviços quanto em incentivo fiscal para a construção de unidades hospitalares de fim privado. Assim, advém deste momento a explosão de planos de saúde oriundos de planos privados de saúde no país, que se torna uma forte figura na lógica do capital e influencia diretamente na elaboração da constituição de 88, que deixa brechas para esse tipo de serviço. Ainda, além de ser um setor muito lucrativo, se torna a forma central de saúde, deixando a saúde pública com um caráter de assistência aos não cobertos pela iniciativa privada.

Esta medida, com caráter meritocrático e individualista, deixava sem acesso à saúde grandes parcelas da população que não tinham inserção formal no mercado de trabalho ou condições financeiras para arcar com os custos da saúde privada. Neste sentido, na década de 1970, setores de trabalhadores da saúde, técnicos, em um primeiro momento e outros movimentos sociais, começam a se organizar em um movimento que lute para que a saúde fosse entendida como um direito para o conjunto da população e para que fossem ofertada de maneira descentralizada, como maior qualidade e que pensasse a saúde de forma integral. Essa lógica que embatia diretamente com os “tubarões da saúde” e com os interesses dos militares, tomou mais força no período de abertura política e foi institucionalizada como Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira (MRSB).

O embate empreendido pelo movimento vem de um caráter internacional. A saúde, após a segunda guerra mundial, passou a ser entendida não apenas como um saber biomédico, passou também a ser encarada como um conjunto de fatores que passam tanto por fatores sanitários quanto sociais e psicológicos. Assim, a relação de saúde e doença, não poderia ser entendida longe de fatores sociais e históricos de diferentes setores.

O MRSB, que era organizado através do CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) em 1979, também foi quem formulou um primeiro modelo para o que foi constituído como Sistema Único de Saúde, com seus princípios de uma saúde descentralizada, em todos os âmbitos da saúde. É marcante a oitava conferência nacional de saúde, realizada em Brasília, no qual teve a participação de mais de cinco mil pessoas de diferentes movimentos sociais e partidos, tendo saído deste congresso resoluções que influenciaram diretamente o capítulo sobre saúde na constituição de 1988, que tem em sua letra:

As ações e serviços públicos de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III- participação da comunidade (BRASIL, Constituição Federal, Art. 198).

Que eram ideias defendidas pelo MRSB. Com a constituição de 1988, em 1990, este capítulo desenvolve-se na lei Orgânica de Saúde (Lei 8.080) de 1990, que implementou o SUS no país. A constituição de 1988 foi um grande avanço para a fraca democracia brasileira. Em um momento em que o mundo fazia suas primeiras experiências com o projeto neoliberal na década de 70, com o Governo Reagan nos EUA e Thatcher na inglaterra, um país de terceiro mundo abriu espaço para uma constituição que colocava no papel que o Estado deveria oferecer os serviços de Saúde e educação de maneira qualificada em sua universalidade.

Entretanto, apesar dos avanços, a constituição de 88 foi totalmente tutelada pelos militares que estavam no poder, realizando uma constituinte por dentro dos mecanismo do Estado, sem participação populares, e institucionalizando movimentos para dentro do Estado, para limitar suas ações e inspirações e, ainda, conciliando com os interesses dos setores do capital, como por exemplo do mercado dos planos de saúde, que tiveram seus interesse mantidos de maneira intacta dentro desta constituinte, mas voltaremos nesse pontos posteriormente.

Reforma Psiquiátrica

A atuação do movimento reformista foi de extrema importância para um outro avanço em termos de políticas de saúde, a inserção da saúde mental no pensamento da saúde de conjunto. Foi através dele que o movimento por uma reforma psiquiátrica tomou forma no país. Com isso, foi introduzido no contexto brasileiro a estratégia de induzir a desinstitucionalização nas políticas públicas. Sua forma foi formalizada nos anos 80 com participação tanto de trabalhadores da saúde quanto dos usuários destes serviços. Com isso, o movimento deu voz aos familiares e aos próprios usuários que passaram a serem sujeitos do movimento por construção a uma sociedade sem manicômios.

A crítica central deste movimento, era para a estratégia hospitalocêntrica que guiava os atendimentos em saúde mental até então. Os hospitais psiquiátricos eram um dos principais agentes de desrespeitos de de medidas de direitos humanos, onde milhares d e internações e mortes ocorreram. Um exemplo é o Hospital Psiquiátrico Colônia, que era localizado em Barbacena, que chegou a ter registro de 60.000 mortes internas.

Baseados nos princípios da Reforma psiquiátrica Italiana, liderada por nomes como Franco Basaglia e Giuli Maccacaro, que tinham como lema “ por uma sociedade sem manicômios”, começou a ser pensando no Brasil um modelo que pudesse levar a desinstitucionalização desses indivíduos, que chegaram a propor como formato:

a) não criação de novos leitos em hospitais psiquiátricos especializados, e redução onde possível e/ou necessário;
b) regionalização das ações em saúde mental integrando setores internos dos hospitais psiquiátricos ou hospitais especiais com serviços ambulatoriais em áreas geográficas de referências;
c) controle de internações na rede conveniada de hospitais psiquiátricos privados;
d) expansão da rede ambulatorial em saúde, com equipes multiprofissionais de saúde mental, compostas basicamente por psiquiatras, psicólogas e assistentes sociais e, às vezes, também por enfermeiros, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos;
e) humanização e processos de reinserção social dentro dos asilos estatais, também com equipes multiprofissionais

Assim, o que era proposto por esse movimento era que existisse uma forma de cuidado dos ditos “loucos”, por fora de um estratégia de encarceramento e de isolamentos desse da sociedade, e seu fim só seria colocado até o final quando a sociedade pudesse conviver com os “loucos” e suportar a diferença. Portanto, tendo em vista esses princípios foi constituído o projeto de lei 3.657/89, que ficou conhecido como Lei Paulo Delgado, que foi sancionado apenas em 2001 ( Lei 10.216), uma lei que garantisse o arrefecimento dos leitos manicomiais financiados pelo governo, e que , em sua partida, deveria ser redirecionados para outros serviços não-manicomiais. Essa lei deu abertura para uma série de portarias que constituíram os serviços substitutivos da lógica manicomial , como é o caso dos Caps, E em 2011 foi sancionado a portaria 3.088 de 2011, que regulamentou a Rede de atenção psicossocial como estratégia de cuidado majoritário neste âmbito.

É importante salientar que esse projeto de atenção em saúde mental, apenas foi possível com a luta pela existência de um sistema único de Saúde que pensa a saúde em sua totalidade se baseando também em noções de saúde coletiva, e de uma parte da medicina social para ampará-las.

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Os ataques históricos ao sistema

Contudo, apesar dos grandes avanços nestes âmbitos, tais projetos embatem diretamente com a lógica de mercado que se manteve firme no decorrer destes anos. A constituição de 88 abriu diversas brechas para que os avanços conquistados pelos diversos movimentos neste processo fossem todos parciais. O processo foi totalmente tutelado pelos militares que se mantinham no poder há mais de 20 anos. Assim, centrando o nosso debate na saúde, na própria escrita da seção de Saúde foi dada a abertura para os gigantes da saúde, que, novamente, tiveram seus lucros garantidos pela ditadura militar em seu modelo anterior, sendo este setor responsável pela saúde "suplementar", ou seja, seria um modelo de apoio ao modelo “estatal” defendido pelo movimento reformista.

Assim, não demorou para que este sistema, que apenas acabou de ser implementado, fosse alvo de ataques. Em 1995, o governo FHC estipulou uma lei sobre os “deveres do Estado” no qual o governo do estado deveria ser aquele quem financia os serviços de políticas públicas, porém não aquele que o executa. Dizia coisas como “devemos socializar com a iniciativa privada a responsabilidade de diminuir as mazelas provocadas pelo mercado”. O que, digasse de passagem, é uma formulação que deixa clara a questão, que as mazelas produzidas pela lógica do capital que impera e produz desigualdade em um país de dependência com traços semicoloniais como no caso do Brasil, fosse dever ser sanado pelas próprias iniciativas privadas. Assim, começa-se no Brasil o que é chamado de guinada neoliberal nesses primeiros anos da década de 90. Por consequência em 1999 foi regularizado na constituição as Organizações Sociais. Desta forma foi afirmado o que já era proposto desde 95, onde a gestão de saúde que era organizada de maneira descentralizada como o colocado na constituição, poderia realizar parcerias público-privadas para implementação de determinados serviços.

As Organizações Sociais seriam entidades “sem fim lucrativo” que exerceriam funções de serviços que deveriam ser ofertados pelo Estado, ou seja, saúde, educação, pesquisa científica, cultura, preservação do meio ambiente, etc. Podendo essas contratarem funcionários sem concurso público , poderiam adquirir bens e serviços sem licitação e também não prestar contas a órgão de controle interno e externos da administração pública. Desta forma, foi se consagrando as bases para que uma política de “Estado mínimo" fosse implementada no país, com a desculpa de manter saudável a gestão do dinheiro público.

Mesma desculpa que é utilizada até hoje pelos governos neoliberais, onde a maior parte do dinheiro público vai para amortizar a dívida pública, dívida produzida pelos militares na época da ditadura militar e que apenas cresce principalmente no contexto de países de dependência. Lógica que serve tanto para enriquecer setores que detêm títulos das dívidas do Estado, quanto para a lógica do capital para manter a sua dominação sobre os Estados.

Assim, a partir da regulação das OSs, diversos estados e municípios passaram a administração da saúde pública para estas organizações. Passados 26 anos desta brecha aberta, observamos hoje, isto na rede de atenção primária de Porto Alegre. Um grande número de US passaram para a administração de OSs. Diferentemente da retórica de que a entrada da iniciativa privada apenas levaria a uma melhora no serviço e no atendimento, estes processo na verdade levam a precarização do trabalho dos profissionais que exercem estes serviços, a utilização de equipamentos de baixa qualidade para aliviar os gastos e, ainda, o financiamento público para trabalho no âmbito privado.

Desta forma vemos as consequências nefastas de um projeto neoliberal sendo empurrados sobre um projeto que preza a seguridade social acima de tudo. A lógica de privatizações e terceirizações chega também em outros âmbitos da saúde pública, como é o caso dos serviços de saúde mental. Em várias cidades, diversos CAPS e outros serviços da saúde mental são terceirizados e colocados nas mãos de OS’s. Outros, são sucateados, com subfinanciamento dos serviços por parte do Estado, para que seja mais fácil privatizar estes serviços, girando a opinião pública contra estas entidades. As pessoas, nesse jogo de interesses, ficam muitas vezes desassistidas de serviços que são essenciais para uma vida com qualidade.

Ainda no tocante da saúde mental, além das terceirizações, a iniciativa privada avança sobre os serviços de outras formas. As comunidades terapêuticas, normalmente relacionadas a instituições de cunho religioso, retornam no cenário nacional de cuidado em saúde mental. Essas comunidades retomam a lógica manicomial, no momento que pautam as suas estratégias no isolamento do indivíduo da sociedade. Estas entidades retomam as horríveis imagens de violência deixadas pelos manicômios, e ainda recebem incentivo do governo para internar indivíduos assistidos pela rede de atenção psicossocial. Essas comunidades tomaram força principalmente durante o governo PT, que iniciaram o financiamento destas comunidades com dinheiro estatal, fortalecendo a força das igrejas na política brasileira de conjunto.

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Ataques do Regime do Golpe

Após o golpe institucional de 2016, o Governo Temer passou ataques profundos à classe trabalhadora que impactam diretamente nos serviços de atenção à saúde. A reforma trabalhista, que aprovou a terceirização irrestrita, flexibilizou ainda mais os vínculos trabalhistas nesses setores que já sofrem com terceirizações, abaixando os salários de conjunto desses trabalhadores, além das condições das práticas de trabalho. Com a PEC do teto de gastos, Temer enxugou ainda mais os gastos com saúde e educação, servindo novamente de uma forma de minar os gastos do Estado que vai em sua maior parte para o pagamento da dívida pública e não para o bem-estar do conjunto da classe trabalhadora.

Por fim, o saber psiquiátrico aparece como mais um agente da precarização deste trabalho. No último ano, o governo Bolsonaro tentou acabar com as portarias da RAPS, o que levaria ao desmonte de toda rede de saúde mental. O governo Bolsonaro recebeu o respaldo tanto da Associação Brasileira de Psiquiatria, quanto do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira, que, segundo consta na nota divulgada da ABP, defendem o retorno do modelo de internações em relação a casos de saúde mental e ainda afirmam que “em nenhum lugar do mundo existe CAPS”( https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/12/governo-bolsonaro-quer-revogar-portarias-que-sustentam-politica-de-saude-mental.shtml) em uma tentativa de deslegitimar uma estratégia única e progressista no mundo. Nesse sentido, esse ataque viria para o benefício de entidades que receberiam financiamento público por leito de internação psiquiátrica disponibilizada, assim, seria retomado o modelo anterior à luta dos movimentos pela reforma psiquiátrica

É necessário ter clareza de que, apesar de representar um grande avanço o estabelecimento do SUS e da RAPS no país, é necessária uma mobilização constante para que esse sistema seja defendido. E ele só pode ser defendido da mesma forma pelo qual ele foi implementado, pela luta dos trabalhadores e usuários destes serviços. Apesar de não ter sido levado até o final, novos ataques ao atual modelo de atenção em saúde mental podem acontecer.

Os serviços já são sucateados pelo Governo Bolsonaro e pelos prefeitos das grandes cidades, que de conjunto têm como seu interesse atacar a classe trabalhadora em detrimento do lucro dos capitalistas. A luta por uma sociedade sem manicômios e por uma atenção à saúde digna, está atrelado à luta contra as terceirizações dos serviços. Devemos lutar para que todos os serviços do SUS sejam controlados pelos trabalhadores e usuários, por um SUS 100% Estatal e que não dê brechas para que ataques como esse aconteçam. Para isso, tanto os trabalhadores concursados, quanto os terceirizados devem se unir para exigir que o conjunto dos trabalhadores da saúde sejam contratados por regime estatutários, sem concurso público, contra as Organizações Sociais que só visam seus lucros, precarizam a vida dos trabalhadores da saúde e o atendimento a população.

 
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