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ANÁLISE EUA-CHINA
Farpas no Alaska: triunfo da China na relação com Biden?
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Muito antes de ser encenado, estava claro que o primeiro encontro oficial na era Biden entre os representantes diplomáticos dos Estados Unidos e da China só seria considerado um sucesso se aparentasse terminar mal. O espetáculo de recriminações mútuas entre Washington e Pequim no Alaska atendeu às necessidades de ambos os governos diante do seus públicos domésticos.

Antony Blinken, sceretário de estado de Biden, e o assessor de segurança nacional Jake Sullivan, de um lado; de outro, Yang Jiechi, membro do Politburo e máximo oficial de política externa da China, e o ministro de Relações Exteriores Wang Yi, protagonizaram o show. Blinken introduziu à imprensa os motivos do encontro acusando a China de violações dos direitos humanos em Hong Kong e Xinjiang, exigindo que Pequim cesse suas investidas militares no Estreito de Taiwan. Yang descompôs Washington por sua trajetória de intervenções militares desestabilizadoras no mundo todo, e a crise nos direitos humanos dentro do próprio país, com a violência racista estatal contra a população negra.

A confrontação direta em público não é comum nas relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a China, desde o reatamento das relações em 1972, entre Nixon-Kissinger e Mao Tsé-Tung-Zhou Enlai. A áspera litania de acusações sinalizou ao mundo o status politicum que ambas as nações, e especialmente EUA, desejam transmitir sobre suas relações no início da era Biden.

A Casa Branca preparou o encontro com movimentos de provocação clara à burocracia chinesa. Antony Blinken chegou ao Alaska depois de visitar a Coreia do Sul e o Japão, lugares em que criticou duramente a China e anunciou novas sanções a 24 funcionários chineses. Biden havia acabado de reunir o chamado “Quad” (Quadrilateral Security Dialogue), uma parceria com a Índia, a Austrália e o Japão para frear a assertividade da China na região do Indo-Pacífico. Para os Estados Unidos, a retórica agressiva contra a China tinha um objetivo primordial: mostrar que o imperialismo estadunidense, sob a égide de Biden, não será menos dura que o governo Donald Trump no tratamento do tema chinês, e que o atual presidente não possui a mesma visão da China que entretinha enquanto era vice-presidente de Barack Obama.

Sob a aparência de ataque, buscava-se uma espécie de efeito defensivo em Washington. O problema é que o exibicionismo de agressividade como um fim em si pode dar a entender que o elemento mais importante da política externa de Biden esteja sendo digitado pelo receio de Trump e dos Republicanos.

Para a China, o encontro do Alaska talvez tenha sido ainda melhor. Yang Jiechi e Wang Yi trouxeram a Pequim o troféu que Xi Jinping desejava: a China apareceu como um igual diante da chancelaria de Washington. Obviamente, essa igualdade é apenas aparente, já que frustra as enormes diferenças materiais que ainda subsistem entre a principal potência imperialista, ainda em decadência hegemônica, e a superpotência capitalista ascendente na Ásia. Por isso mesmo, tanto maior o êxito. A burocracia chinesa sabe bem dos defeitos que apontava Maquiavel, “todos vêem o que pareces, poucos percebem o que és”. Era difícil vencer um concurso de insultos contra Trump; por mais que o dueto Blinken-Sullivan siga em algum grau a beligerância trumpista, não se trata do mesmo desafio. Quem diria que um mandarim diplomático chinês teria 16 minutos diantes das câmeras do mundo para fazer uma descomposição ininterrupta da demagogia estadunidense, numa reunião convocada por Washington?

Mais que isso, a China conseguiu emplacar a ideia de que o mundo não pode ser regido por regras estipuladas por uma “democracia decadente e corrupta” como os Estados Unidos. As atrocidades do imperialismo norte-americano serviram para “equilibrar o jogo” das críticas contra a ditadura burocrática de Pequim em Xinjiang e Hong Kong; a burocracia pós-maoísta não teve problemas em esconder seu autoritarismo brutal dentro e fora de suas fronteiras. A exigência de Xi Jinping para que a junta militar golpista de Mianmar reprima duramente os trabalhadores e jovens que se manifestam contra o golpe, militarizando os bairros operários de Yangon e atacando os sindicatos birmanes, passou incólume. Afinal, o que aqueles que acabaram de bombardear a Síria podem arguir?

Veja também: China impõe mais mão dura à junta assassina de Mianmar contra os manifestantes

A delegação chinesa também estabeleceu, na mesma lógica de aparente equivalência entre potências, suas próprias “linhas vermelhas”, ou seja, temas que os Estados Unidos não tem autorização para tratar por serem considerados assuntos internos. Naturalmente Xinjiang e Hong Long entram na lista, mas o principal é Taiwan, país que Xi quer reincorporar ao território chinês depois de mais de sete décadas de separação, fruto da guerra civil de 1946-49. Taiwan reúne em seu território a capacidade tecnológica para a construção de semicondutores de última geração, estratégicos para o desenvolvimento da tecnologia de 5G da China, além de fornecer acesso às águas profundas do Pacífico, ambicionadas pelo Exército de Libertação Popular.

De tudo isso, a China saiu impune. Nada mal para o primeiro encontro, que não deve ser seguido por outro tão cedo. Entretanto, nem tudo são flores para Pequim. A administração Biden confirmou que não dará trégua à política de contenção da ascensão chinesa, que se tornou uma política de Estado do imperialismo norte-americano. Ficou claro que os Democratas substituíram o tema dos déficits comerciais, hierarquizado por Trump, pela questão dos direitos humanos, como forma de pressão permanente sobre a China, e com os motivos de propaganda contra o “modelo político” chinês. Algo que corre paralelo com aberrações no próprio território dos EUA, como o horrendo crime perpetrado em Atlanta contra a comunidade asiática, com oito pessoas assassinadas, sendo 6 mulheres. A campanha ideológica anti-China não tem um papel menor em atrocidades semelhantes.

A política de desacoplamento seletivo, especialmente no terreno da tecnologia, em que a China busca disputar primazia com os Estados Unidos – por meio de projetos como o Made in China, que colocariam a China no topo do mundo em robótica, semicondutores, veículos elétricos, etc., até 2030 – poderia golpear fortemente a dependente estrutura produtiva chinesa. Ademais, a reorganização de uma rede de aliados asiáticos, não apenas do Quad mas também de membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), como a Malásia, as Filipnas e o Vietnã, busca emparedar diplomática e militarmente os avanços de Pequim no Mar do Sul da China. Em seu documento interino de segurança nacional, a Casa Branca menciona a China 15 vezes como ameaça a ser contida por uma nova coalizão aliada de Washington, como tratei em minha coluna anterior.

Como afirma Matthew Goodman, do Center for Strategic and International Studies, Biden deixou claro que compartilha com Trump a caracterização da China como “competidora estratégica” dos Estados Unidos. Biden não desfará o que foi realizado por Trump nesse terreno, porque a contradição entre o declínio imperial dos Estados Unidos e a ascensão da China é um processo estrutural de longa data, e veio para ficar. Por isso, embora existam diferenças táticas de como fazê-lo, o Partido Democrata não tem nenhum interesse em diminuir a necessidade de conter e atrasar a ascensão da China, uma política de primeira ordem para a classe dominante dos Estados Unidos.

Xi Jinping poderia agradecer a Biden o primeiro encontro oficial. Mas Biden já tornou a relação bilateral mais importante do mundo na mais confrontativa também.

 
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