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“É preciso apresentar ao público brasileiro a Rosa Luxemburgo da Revolução Alemã”, diz Diana Assunção
Diana Assunção
São Paulo | @dianaassuncaoED

A historiadora considera que há uma operação ideológica na apropriação de Rosa Luxemburgo no Brasil que dá mais importância a um folheto de Rosa que ela nunca quis publicar, com críticas táticas aos bolcheviques na Revolução Russa de 1917, do que às fortes conclusões que a dirigente revolucionária chegou ao calor da Revolução Alemã de 1918-1919 que apontavam claramente para uma compreensão “leninista” da relação entre classe, partido e direção.

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Ilustração: Juan Chirioca.

Ideias de Esquerda: Diana, aos 150 anos de Rosa Luxemburgo o Campus Virtual do Esquerda Diário relançou seu curso sobre vida e obra da maior dirigente mulher da história do socialismo internacional, que ficou muito conhecida pela obra Reforma Social ou Revolução. Qual é a abordagem desse tema neste curso?

Diana Assunção: Sim, 150 anos de Rosa Luxemburgo e vivemos em meio a uma pandemia que reatualiza a frase que Rosa fez tão famosa: “Socialismo ou Barbárie”. Por isso achamos que parte das homenagens deve ser o resgate do seu pensamento para tirarmos lições que contribuam para a luta socialista hoje. E é sintomático que 100 anos depois da grande polêmica com Eduard Bernstein o debate sobre reforma ou revolução continue sendo tão atual.

Na primeira aula do curso, em que fizemos um resumo biográfico para introduzir os alunos no universo de Rosa Luxemburgo, analisamos o conjunto desta obra de forma relativamente pormenorizada demonstrando que era fundamental definir qual o “objetivo final” que os revolucionários teriam naquele momento se de fato era a revolução socialista ou se como dizia Bernstein “o objetivo final não é nada, o movimento é tudo”. E, como fica claro, também Rosa não se opunha às reformas, senão que buscava conectá-las a serviço de uma estratégia revolucionária. Mas pra responder a abordagem deste tema no curso queria destacar um dos elementos de conclusão que tiramos nessa primeira aula. Ao mesmo tempo em que Reforma Social ou Revolução mostra o quão grandiosa era a jovem Rosa enfrentando um dos principais dirigentes da social-democracia alemã, com uma precisão teórica brilhante, é preciso ver os limites do debate que estavam colocados pela situação política de anos sem revoluções. Ou seja, essa ideia de ligar as reformas com o objetivo final da revolução só começou a ser resolvida nas batalhas concretas do porvir, como em 1905 com a Revolução Russa, que traz mil novos problemas e soluções para os revolucionários. Mas, mais fortemente, essa questão só vem a começar a se resolver em 1917, mas de forma generalizada teoricamente pela III Internacional nos seus Congressos, especialmente em 1920, 21 e 22, quando começam a discutir um programa transicional em base às experiências concretas como a Revolução Russa e também a derrota da Revolução Alemã, e é o importante revolucionário russo Leon Trótski quem termina de desenvolver isso somente em 1938, com o Programa de Transição.

Ou seja, Rosa apontou muito profundamente no seu livro Reforma Social ou Revolução que as reformas sociais não podem virar um fim em si mesmo, que elas devem ser medidas parciais que devem ser utilizadas como ponto de apoio para o objetivo final da revolução. Entretanto nesta obra Rosa não aborda qual é a “ponte” que relaciona essas medidas parciais (reforma) com o objetivo final, e nem mesmo a posterior discussão com Kautsky dá conta disso ao debater a relação entre as batalhas táticas e o objetivo final, são duas coisas diferentes. Uma é o programa (do mais mínimo até a tomada do poder) e outro é a estratégia (como conduzir as batalhas táticas). A questão é que este problema ainda não estava resolvido na época em que Rosa elaborou essa brilhante obra. E porque não estava resolvido? Porque do ponto de vista concreto toda a batalha pelo “objetivo final” ainda era, digamos assim, “abstrata”, porque a revolução não estava colocada “na ordem do dia”. Imaginem que a Rosa fez essa polêmica antes da Revolução Russa de 1905 e antes da I Guerra Mundial, antes de que a discussão se desse em termos de uma nova época, a imperialista, de crises guerras e revoluções como colocava Lênin.

Mas quando ela escreveu Reforma Social ou Revolução não tinha revoluções, a última experiência tinha sido a Comuna de Paris, que foi derrotada, e da qual os revolucionários do começo do século XX tiraram uma série de lições. Então tinha este problema por um lado, mas por outro tinha o problema de que não havia uma alternativa ao Programa de Erfurt que foi o programa adotado pelo Partido Social-Democrata Alemão durante o Congresso do SPD em Erfurt no ano de 1891, um programa que foi elaborado não somente por Bernstein, mas também August Bebel e Kautsky, e que substituiu o anterior Programa de Gotha – com o qual Marx já havia empreendido uma importante batalha. E o Programa de Erfurt expressava este problema de época: eram as demandas imediatas por um lado e o objetivo final por outro. Não havia uma ponte entre eles, não havia um “programa transitório”, por isso digo que quem começou a resolver esse problema que Rosa apontou ainda em termos abstratos (pela falta de experiência revolucionária concreta da época) foi a III Internacional e depois Trótski.

Porque considero isso importante? Porque é importante reverenciar as obras de Rosa Luxemburgo mas entender não somente os limites de cada situação política mas principalmente as mudanças que operaram no pensamento de Rosa Luxemburgo a cada nova experiência de luta de classes, como foi por exemplo a Revolução Russa de 1905. Rosa escreveu “Greve de Massas, partido e sindicatos” que foi considerada por Lênin o melhor livro em língua alemã sobre o 1905 russo. Cada experiência prática de Rosa foi fundamental pra ir moldando o seu pensamento, tirando lições e aperfeiçoando sua teoria.

Como se deu o desenvolvimento do pensamento de Rosa Luxemburgo sobre esta relação entre “espontaneidade” e “consciência”?

Eu gosto de abordar o desenvolvimento do pensamento da Rosa em base a estes temas, que são foco de bastante polêmica entre quem estuda Rosa Luxemburgo, mas também na esquerda de um modo geral. Acho que a primeira coisa aqui é pensar a questão da espontaneidade. Por que a Rosa insistia tanto nisso? Porque fala-se muito sobre isso, mas as explicações não são muito convincentes e recaem em caricaturas, que por um lado desvalorizam a importância que tinha essa insistência e ao mesmo tempo não dão conta dos problemas que isso levava. Mas então, repito, porque ela insistia? Porque ela vinha de uma experiência anterior onde viu greves serem enterradas pela burocracia sindical. Rosa teve muitas discussões em relação a vários processos do movimento operário na Europa que estavam acontecendo na Bélgica, na Holanda, na Hungria. E a Rosa estava vendo como o movimento operário ao mesmo tempo que se levantava estava se convertendo em reformista. E os dirigentes sindicais e do partido que estavam empurrando essa orientação nessas greves em outros países eram todos “camaradas” revisionistas digamos assim, todos eram parte da II Internacional, também junto com Lênin.

Isso remete ao mesmo problema que eu comentei anteriormente: não havia revoluções neste momento e nem havia “contrarrevoluções”, então nenhum desses revisionistas estava passando a prova da experiência prática, se tornando contrarrevolucionários, então ainda eram camaradas e para Rosa, Lênin e Trótski, as diferenças eram mais teóricas e ideológicas – isso vai ficar claro quando estudamos 1919 e ver que foi o governo dessa social-democracia que matou a Rosa. Mas, enfim, em 1902 a greve geral na Bélgica foi dirigida pelos revisionistas e essa greve foi derrotada e isso vai se repetindo. Ela vai vendo essa situação toda e insiste na espontaneidade, mas por quê? Ela era anarquista? Não! É que ela vê o paradoxo de um movimento socialista com elementos contraditórios que convivem entre si porque a prática ainda não tinha separado, digamos assim, “o joio do trigo”, reformistas de revolucionários. Tudo ainda eram discussões teóricas como Reforma Social ou Revolução.

Então todos os revisionistas que atuavam de forma burocrática nos sindicatos estavam dentro da social-democracia, ou seja, a burocracia sindical estava na socialdemocracia. Por isso a Rosa insistia tanto na espontaneidade. Porque ela considerava que poderia ser um antídoto, um corretivo para um movimento socialista que tinha elementos contraditórios com tendências reformistas que atuavam de forma burocrática e que estavam já enterrando greve. Ou seja, a Rosa vê a burocracia, mas considera que a espontaneidade revolucionária das massas seria um antídoto e ao mesmo tempo justamente por conta disso subestima o próprio poder da burocracia.

Ou seja, para ir mais até o final nesse argumento: a Rosa vê e combate à burocracia teórica e politicamente, mas considera que as massas em seu levante espontâneo poderiam corrigir os rumos do partido (e de suas organizações de massas); mais que isso, num ascenso operário (como seria, por exemplo, um processo revolucionário na Alemanha semelhante ao 1905 russo), Rosa apostava firmemente que, se a burocracia partidária do Partido Social-Democrata Alemão e dos sindicatos tentasse frear a mobilização independente das massas, essa fúria espontânea teria forças suficientes para varrer essa mesma burocracia e “depurar” a direção partidária e sindical dos elementos retardantes. O grande problema desse pensamento, que se verificou na realidade alemã, é que Rosa subestima o próprio papel das burocracias em enterrar os levantamentos espontâneos das massas e que justamente somente de forma organizada é que as massas desenvolvendo seu impulso espontâneo poderiam passar por cima das burocracias.

Com tudo isso fica claríssimo: a ideia de que a espontaneidade na Rosa, a auto atividade das massas seria uma coisa contra os partidos, não tem o menor cabimento. Rosa está atuando por dentro dos partidos, desde sempre. O combate que ela está dando não é contra os partidos, é contra suas direções burocráticas em especial nos sindicatos. Mas a resolução disso para ela está na espontaneidade, porque ela dá um valor em si mesmo revolucionário para essa espontaneidade e aposta que é isso que vai corrigir o partido e os dirigentes sindicais. Por isso podemos dizer que a Rosa vendo todo esse reformismo e revisionismo destruindo as lutas espontâneas, ela era a ala esquerda, extrema-esquerda, extremamente revolucionária em querer sempre combater as burocracias e se ligar aos elementos espontâneos da classe.

Mas o que estava fazendo o Lênin nesse momento todo? Além da luta política em relação à forma do partido, ele também estava dando uma batalha contra os sindicalistas e economicistas que separavam a luta econômica da luta política, asfixiando a luta pela derrubada da autocracia tzarista em nome da exclusiva “luta por reformas” econômicas (ou seja, renunciando à revolução). Lembremos da batalha que a Rosa deu contra o Bernstein, que subordinava a luta pela revolução à conquista de reformas. Não à toa, Lênin considerava o economicismo como a tradução russa do bernsteinismo. Incrível a coincidência dessa luta comum entre Rosa na Alemanha e Lênin na Rússia! Então em última instância Rosa e Lênin estavam dando a batalha contra o mesmo “inimigo” digamos assim: a burocracia sindical que estava na II Internacional (no caso russo, em que não havia burocracia no sentido que víamos já na Alemanha, às tendências bernsteinistas na social-democracia).

E além disso eles concordavam que a espontaneidade era a substância sobre a qual poderia se erguer a organização e a consciência, ideia que o Lênin sintetizou com a frase “a espontaneidade é o gérmen do consciente”; ou seja, Lênin nunca achou ruim a espontaneidade. Mas se eles concordavam que a espontaneidade era a substância sobre a qual poderia se erguer a organização e a consciência Rosa e Lênin atribuíam valores diferentes a essa espontaneidade e materializavam de formas distintas o combate à burocracia sindical. A Rosa apontava mais no sentido de que a espontaneidade era algo revolucionário em si mesmo, porque serviria como esse antídoto que falei antes. Mas Lênin já desde 1904 apontava que a espontaneidade não era, em si mesma, revolucionária, mas sim que o desenvolvimento apenas espontâneo da classe operária caminha no sentido de sua subordinação à ideologia burguesa, pois o movimento operário somente espontâneo é sindicalismo e sindicalismo implica na submissão ideológica dos operários à burguesia. Isso porque com o sindicalismo você luta sempre por dentro do regime existente, pedindo melhorias mas dentro deste regime, e não para subverter a ordem.

Bom, mas a espontaneidade por si só não tem como varrer a burocracia sindical (ou, no caso russo, a burocracia tzarista nas associações operárias), e Lênin é o primeiro a ver isso, nem mesmo Trótski tinha visto. Mesmo quando Lênin sofistica mais esse pensamento, entendendo que a espontaneidade, em momentos de ascenso revolucionário, pode sim superar os limites prescritos pelo regime existente – algo que ele assimilou compreendendo a importância dos soviets em 1905 – Lenin sabia que em todo o momento prévio a chave era preparar a influência da estratégia revolucionária consciente em setores das massas, para as próximas explosões espontâneas de sua atividade criadora. E é interessante isso, porque a Rosa ela viu muito antes do Lênin o problema da burocratização mais geral da social-democracia alemã, que Lênin demorou muito pra ver. Mas ao mesmo tempo era ele quem entendia que a consciência da vanguarda da classe era decisiva pra colocar de pé um forte partido baseado não em esperar o “levante espontâneo das massas” mas através de frações revolucionárias em todos os lugares no movimento operário, especialmente nos seus bastiões mais estratégicos. Essa diferença vai se desdobrar nas concepções de partido.

Como se desenvolve esse debate, sobre as diferentes concepções de partido?

Essas diferenças em como esses revolucionários viam a questão da espontaneidade e da consciência se desdobram na questão do partido porque são de fato uma continuidade desse debate, já que vemos que isso leva a que a Rosa dê menos peso para os elementos de “organização”. Tem que existir a organização, na visão dela, mas os problemas não vão se resolver pelo caráter dessa organização desse partido e sim pela espontaneidade das massas.

Mas a questão é que, como dizia também o historiador Pierre Broué, a ala esquerda do Partido Social-Democrata Alemão era uma coleção de indivíduos soltos muito talentosos e respeitados mas isso não era suficiente para agrupar um setor real da vanguarda. Por isso que o Lênin é tão brutal com os problemas de organização revolucionária desde 1902 construindo sua própria fração e inclusive desde 1912 um partido separado. Mas a Rosa opina que tudo isso não é necessário, e por isso a sua batalha sempre era dentro do partido, porque o contrário seria sectário, seria uma atitude de seita.

Aqui dá para gente resgatar aquela ideia de que o Lênin distinguia partido de classe e a Rosa misturava um pouco dizendo que o partido era o próprio movimento da classe. Isso também expressa nessas questões: para o Lênin era preciso construir frações revolucionárias para organizar a vanguarda, pra Rosa o partido era o movimento de toda a classe, sem organizar especificamente sua vanguarda. Tudo isso se expressa em diferentes concepções de partido e não é à toa que em 1904 Rosa tenha polemizado com Lênin justamente em torno da concepção de partido por considerar muito centralizadora sua visão que levaria a “tolher” o espontâneo, quando na realidade como eu falei Lênin não era contra a espontaneidade, mas não tratava ela como em si mesma revolucionária.

Paul Frölich vai dizer que a Rosa subestimava o poder da organização, principalmente quando a direção estava em poder de seus oponentes. Ela se baseava de maneira muito crédula na correção da política advinda pela pressão das massas. Tudo isso levava a uma visão da Rosa que podemos chamar de “partido-processo” que naquele momento era mais parecida com a de Trótski – que em 1917 muda completamente e dá razão a Lênin. Ou seja, uma visão de que o partido de fato se forma principalmente “no calor dos acontecimentos”, onde a conformação do partido é um “processo” do momento da luta e não tem ênfase o prévio, planificado, como foi o Partido Bolchevique de Lênin. Isso não significa que o Partido Bolchevique de Lênin não considerasse que o partido poderia se transformar e avançar nos processos de luta, a diferença estava mais na etapa preparatória, ou seja, na ênfase e na importância que Lênin dava pra um partido preparado, que estudasse inclusive a arte da insurreição pra se preparar o máximo possível. Rosa achava que isso tolhia a espontaneidade das massas que era o que poderia resolver os problemas do partido porque as massas iriam “cometer seus próprios erros”, a gente viu isso lá no começo. Já Lênin considerava que sem isso era impossível tomar o poder.

O grande mérito da Rosa neste debate foi que ela viu, muito antes do Lênin, como eu falei acima, a burocratização na social-democracia alemã mais de conjunto, não só nos sindicatos, coisa que o Lênin demorou anos pra ver – só em 1914 quando votaram os créditos de guerra, mesmo aí ele não acreditou, achava que era propaganda da burguesia alemã pra dividir a II Internacional.

Ao mesmo tempo é importante frisar que Daniel Bensaid, que foi um dirigente trotskista francês, apontava que a Rosa sempre teve uma lógica de não ser uma seita, ou seja, não ter um partido ultra minoritário de vanguarda distanciado das massas. Ela atribuía essa posição de seita ao Lênin, mas não era isso que ele defendia, ele defendia um partido de vanguarda pra dirigir as massas, e não distanciado das massas.

Mas sobre a posição dela, podíamos definir assim a grosso modo: um valor grande para a espontaneidade (ainda que isso não fosse anti-organização política, como expliquei), um partido que não tolha essa espontaneidade e que portanto não prepare tudo de antemão (e inclusive os erros das massas devem ocorrer, como citei antes também), que essa espontaneidade iria corrigir os problemas do partido e que a social-democracia era o próprio movimento da classe. E isso leva a uma conclusão pra ela: a Rosa não poderia estar em nenhum outro partido que não fosse a social-democracia, senão seria uma seita distante das massas “do movimento da classe”. Então vejam que essa concepção da Rosa leva ela a um erro, importante na minha visão, que foi o de não romper com a social-democracia alemã em 1914 quando eles votaram pelos créditos de guerra na I Guerra Mundial, ou seja, uma grande traição à classe operária mundial apoiando a burguesia.

E porque esse pensamento levou ela a esse erro? Porque se a social-democracia era o próprio movimento da classe operária e se a espontaneidade das massas iria corrigir o partido, então romper com a social-democracia seria romper com o movimento da classe, e ao mesmo tempo não era necessário que um setor do partido rompesse pois era preciso esperar que se corrigisse a política do partido pela ação das massas. E vejam só. Até 1914 foi a Rosa quem viu de forma mais clara o fenômeno da burocratização da social-democracia, Lênin demorou bastante pra ver como eu falei. Mas quando Lênin viu isso em 1914 tirou conclusões mais radicais que a de Rosa e propôs pra Rosa romper e fundar um partido independente na Alemanha, e ela foi contra. Rosa também foi a primeira a dizer que era necessário superar a II Internacional, disse isso antes de Lênin, mas foi Lênin quem deu o passo pra de fato romper a II Internacional a partir da traição em 1914 e começar a construir a III Internacional.

Quais foram as consequências disso que você considera um erro de Rosa Luxemburgo?

Bom, na prática a Rosa se manteve na social-democracia alemã depois da traição, mas dentro de uma tendência que era meio uma seita (no sentido que ela mesma criticava), que era a Liga Spartakus, que ficou inclusive no Partido Social-Democrata Alemão Independente (USPD) até o final de 1918, esse partido já era uma ruptura com o Partido Social-Democrata Alemão. E é aí no final de 1918 que finalmente é fundado um partido de fato independente, como propunha Lênin, que foi o Partido Comunista Alemão, o KPD. Mas foi fundado de forma totalmente improvisada e nas piores condições, sem nenhuma preparação. E na prática era um partido de “vanguarda”. O KPD tinha 10 mil militantes em todo o país enquanto o USPD tinha 2 milhões. Em Berlim, que era o bastião dos sparquistas, tinham 600 militantes quando o USPD tinha 200 mil. Então na prática, ao final de sua vida, Rosa percebeu que era necessário ter um partido independente, de vanguarda inclusive, mas a questão é que ao fazer isso de forma totalmente improvisada e sem preparação, a Revolução Alemã chegou num momento em que não havia um partido revolucionário como havia na Rússia de 1917, havia apenas um partido reformista que não somente traiu a revolução como assassinou Rosa, e um partido centrista que era o USPD.

Inclusive, Paul Levi que era advogado da Rosa, foi também seu companheiro e assumiu a direção do KPD depois da sua morte em 1920, apontou que o principal erro dos alemães foi não ter se organizado de forma independente inclusive antes de 1914 “mesmo que tivessem que ser uma seita”. Neste caso ele estava dando razão pro Lênin; não que o Lênin quisesse ser uma seita, mas pra concepção que tem como ponto de partida impulsionar uma vanguarda organizada que vai se fundir com a classe operária e dirigir o processo da revolução ganhando a maioria da classe operária pra insurreição. Lênin considerava que o partido era um destacamento da vanguarda pra dirigir a maioria da classe pra tomada do poder, e isso foi feito na prática em 1917. Ele nunca defendeu um partido de intelectuais em separado da classe, ele defendia um partido de vanguarda pra dirigir as massas. Trótski, que antes tinha a mesma posição da Rosa, se fundiu com a posição de Lênin em 1917. A Rosa não tira a mesma lição em 1917, e vai ter a oportunidade de testar na prática na Alemanha sua concepção. E o problema é que quando explodiu a Revolução Alemã no fim de 1918 a massa operária foi à luta, levantou ferramentas de auto-organização como os sovietes, mas essa auto atividade e espontaneidade das massas não corrigiu o partido nem resolveu os problemas da revolução. O partido girou à direita e traiu a revolução de forma sangrenta, inclusive. Ou seja, surgiram soviets fortíssimos na Alemanha – sim, os soviets não são fenômenos exclusivos de países de capitalismo atrasado como na Rússia – que haviam de fato tomado o poder das mãos da burguesia alemã; mas esses soviets estavam dirigidos majoritariamente pela burocracia do SPD, que os foi enfraquecendo, inclusive desarmando as guardas operárias em benefício das forças repressivas burguesas, e no curso da anulação do poder político dos soviets, entregou o poder de volta para a burguesia, que operou massacres contra os trabalhadores.

Então creio que a conclusão dessa discussão deve ser de ver o desenvolvimento do processo histórico e das posições da Rosa, e ver inclusive que no final de sua vida ela decidiu por formar um partido de vanguarda sem maioria da classe operária.

Karl Kautsky foi o principal teórico da social-democracia durante décadas. Qual a importância das polêmicas com Kautsky no desenvolvimento da obra de Rosa Luxemburgo?

Tiveram um lugar decisivo, sem dúvida nenhuma. Eu já comentei que era uma certa continuidade do debate com Bernstein, mas foi bastante mais visceral. Todo debate com Kautsky começa sobre a discussão entre “estratégia de desgaste” ou “de aniquilamento”, na qual Kautsky defenderia a primeira no sentido de acumular forças para atacar o inimigo quando tivesse força. Esse debate desemboca em uma discussão sobre o “centro de gravidade” do partido, ou seja, o “eixo” do partido. Na concepção da Rosa, e também do Lênin, o partido deve ter como centro de gravidade a luta de classes. Nos momentos em que não há luta de classes a chave é se preparar para quando ela chegar, ou seja, não desviar os objetivos “últimos” e sempre atuar na luta de classes buscando desenvolvê-la em sentido revolucionário. A questão é que estava em curso um movimento de massas, e Kautsky não queria atuar aí e sim nas eleições que faltavam ainda 2 anos para acontecerem. A condução das batalhas táticas isoladas (eleições, sindicatos) então não estava a serviço de usar essas posições pra atuar na luta de classes. A condução das batalhas táticas era para as eleições. Então houve um deslocamento do centro de gravidade do partido: da luta de classes para as eleições. Esse era o sentido da frase “nada mais do que parlamentarismo” que a Rosa acusou o Kautsky. Toda essa discussão mostrou que Rosa Luxemburgo tinha razão. Em 1912 ocorreram as eleições. E que que aconteceu lá? A social-democracia teve uma votação estrondosa, foi o partido mais votado ganhando 110 vagas no parlamento. Kautsky estava certo? Não, não muito pouco tempo depois estourou a I Guerra Mundial e toda esta enorme força que a social-democracia estava comemorando que conquistou no parlamento não serviu para nada porque como a Rosa apontava o partido já tinha perdido o eixo da luta de classes.

E então o que fez a social-democracia para proteger todas essas posições que conquistaram no parlamento? Acabaram fazendo um acordo votando os créditos de guerra e apoiando a entrada do Estado Alemão na guerra imperialista trazendo consequências catastróficas para o proletariado alemão. Ou seja, toda a força, todo o enorme peso do partido, se converteu em um obstáculo. A burocracia do SPD foi capaz de conter toda e qualquer oposição à guerra imperialista. Como colocou Nathaniel Flakin: a questão é que na prática Kautsky até sua morte em 1938 nunca sentiu que tinha chegado esse momento de sair da estratégia de desgaste: nem em 1933, quando os capitalistas alemãs deram o poder aos nazistas pra massacrar o movimento operário, e nem em 1918, quando se produziu de fato uma Revolução na Alemanha e o Kautsky se dedicou a negociar com os capitalistas e seu Estado.

A votação da social-democracia alemã a favor dos créditos de guerra vai marcar todo o período posterior até a Revolução Alemã de 1918-1919. Como se desenvolve esse processo e qual a posição de Rosa Luxemburgo?

Sim, marca profundamente. Rosa depois disso entra em uma crise profunda, é presa, funda a Liga Spartakus; depois ela escreve sobre a Revolução Russa de 1917 direto da prisão e depois volta à luta política na Alemanha. É um processo todo muito importante. Para falarmos diretamente da Revolução Alemã de 1919, chegou um momento em que Rosa, já no KPD, viu que as ações que estavam sendo tomadas eram totalmente despreparadas. Mas já haviam sido tomadas. E apesar de estarem mal concebidas e levarem a uma derrota certa, para Rosa então já não havia espaço pra retroceder nem negociar com o governo, ao contrário, teria que lutar até o final, já que a vacilação levaria a uma derrota pior. Este problema dos dirigentes que não estão à altura da ação que eles mesmos traçaram ela aborda num texto de 7 de janeiro “O que estão fazendo os dirigentes?”, onde diz claramente que não estão à altura. Dias depois, quando o levantamento já estava esgotado e em retrocesso, Rosa faz um balanço final dos acontecimentos: “Nos últimos dias declaramos, de forma franca e manifesta em várias ocasiões, que a direção do movimento de massas de Berlim carecia de suficiente determinação, energia e vigor revolucionário. Dissemos com clareza que a direção está muito por trás da maturidade e do espírito de luta das massas. Fizemos todo o possível, tanto no seio desses organismos dirigentes, mediante a iniciativa e a discussão, assim como mediante a crítica desde fora para impulsionar o movimento, para estimular os Delegados Revolucionários das grandes empresas a levar adiante uma ação enérgica. Mas todos os esforços e tentativas fracassaram por conta do comportamento vacilante e dúbio desses organismos. Depois de dissipar ao largo de 4 dias o ânimo e a energia mais esplendida da luta de classes por meio de uma completa falta de direção, depois de ter acabado com as perspectivas da luta revolucionária até o extremo de entrar em negociações duas vezes com o governo de Ebert e Sheidman, e depois de ter fortalecido a posição do governo até o extremo, os Delegados Revolucionários decidiram finalmente – na noite da quarta pra quinta – interromper as negociações e retornar a luta em toda linha. Se lançou a consigna de greve geral e o chamado “às armas” mas esse foi o único aporte dos Delegados Revolucionários. Não é necessário dizer que se se lançam as consignas de greve geral e de armamento das massas, é preciso fazer todo possível pra garantir a execução mais enérgica dessas consignas. Mas os delegados não fizeram nada disso! Se conformaram em simplesmente lançar a consigna e...na quinta à noite decidiram entrar em negociação com Ebert e Sheidman pela terceira vez! (...) A crise dos últimos dias está chamando as massas a tirar lições que têm a maior importância e urgência. O Estado atual de falta de direção, a falta de um centro organizativo da classe operária de Berlim, se tornou insustentável. Se a causa da revolução tem que avançar, se a vitória do proletariado, se o socialismo tem que seguir sendo mais que um sonho, então a classe operária revolucionária tem que criar pra si mesma organismos que estejam à altura de poder dirigir e utilizar a energia combativa das massas. Mas, sobretudo, no próximo período deve se dedicar a liquidação do USPD, esse cadáver em decomposição cuja podridão envenena a revolução. O enfrentamento com a classe capitalista na Alemanha é antes de tudo a confrontação com os Scheidman Ebert que são o muro de proteção da burguesia. E o ajuste de contas com o pessoal do Schetiman pressupõe a liquidação do USPD, que funciona como o muro de proteção de Ebert-Scheidman”. Essa longa citação é fortíssima e muito pouco conhecida no Brasil. É possível ver a diferença com aquela Rosa de vários anos atrás falando da espontaneidade. Depois, para uma Rosa que não quis romper com o SPD na hora em que este traiu na I Guerra Mundial. E ela chega a dizer que a tarefa atual do proletariado alemão seria liquidar o USPD, um partido centrista de massas.

Não tem nada mais leninista do que isso. Era a conclusão de que pra levar adiante a revolução os aparatos de massas reformistas e centristas no momento da tomada do poder podem se converter em enormes obstáculos. Isso é leninismo puro. Dois dias depois em suas últimas palavras publicadas Rosa diz: “Todo o caminho do socialismo está cheio de derrotas. E entretanto essa mesma história leva passo a passo e sem parar até a vitória final. Onde estaríamos hoje sem essas derrotas das quais temos tirado a experiência história, o conhecimento, o poder, o idealismo?”. Rosa encerra esse último artigo, assim como sua própria vida arrancada junto com Liebknecht, os dois nomes próprios da Revolução Alemã que se adiantaram a seu tempo, pelas bandas protofascistas ao mando de Waldemar Pabst (futuro oficial nazista) com a famosa frase “a ordem reina em Berlim”.

Mas porque eles foram assassinados? Porque eram os dois políticos mais populares do país que inclusive especialmente no caso da Rosa estava se aproximando cada vez mais das posições bolcheviques. Em algum sentido, na visão do governo alemão, matá-los seria se antecipar a possibilidade de que existisse um “Lênin e Trótski” na Alemanha e que surgisse um grande partido revolucionário para tomar o poder. O que isso significa? Que a burguesia alemã também tirou conclusões da Revolução Russa, que sabia que quando Rosa Luxemburgo dizia que “em toda a parte o bolchevismo se fará presente” ela também estava tirando lições pra levar pra Alemanha uma política que realmente pudesse levar a revolução socialista. Por isso foram assassinados. Não foi assassinada por acaso, por ser uma lutadora, foi assassinada por nela residia o futuro comunista da Alemanha e em partes também da humanidade.

Quais são suas principais conclusões sobre o pensamento de Rosa Luxemburgo?

De forma sintética, em primeiro lugar acho importante reafirmar que Rosa formava parte de um mesmo marxismo revolucionário ao lado de Lênin e Trótski. A ideia de que a Rosa seria rival dos bolcheviques e do Lênin é uma ideia falsa. Tem como objetivo transmitir uma leitura da Rosa de que ela seria uma figura que defendeu um socialismo “democrático” em oposição ao que defenderam os bolcheviques em 1917. Esta visão busca suavizar as posições da Rosa e transformá-la em um produto mais aceitável para todo tipo de reformistas. Por isso Rosa é reivindicada por muitos reformistas hoje em dia, mas eles nunca falam da luta política que ela deu contra o revisionismo, contra o reformismo, contra o oportunismo. Pegam essa deturpação de que ela seria “humana e democrática” para opor a figura dela ao bolchevismo. Mas Rosa Luxemburgo era parte de um mesmo marxismo revolucionário junto com Lênin e Trótski, mantendo entre eles muitas divergências, mas sempre defendendo a revolução operária e socialista, ou seja, a ditadura do proletariado para abrir espaço ao comunismo.

Por outro lado, o stalinismo tentou deturpar por completo a história da Rosa. Rosa não viu a burocratização stalinista da Rússia acontecer, morreu pelo menos 5 anos antes disso. Não temos como dizer qual seria sua posição, mas minha aposta é que estaria junto com Trótski construindo a Oposição de Esquerda após a morte do Lênin. Isso é, no entanto, uma aposta. Mas é sintomático que em 1931 o stalinismo “acusou” Rosa Luxemburgo de ter criado a Teoria da Revolução Permanente, que como sabemos é de autoria de Trótski.

Mas o principal que eu queria transmitir é que a leitura feita por grande parte da intelectualidade no Brasil sobre Rosa Luxemburgo dá muito mais destaque para seu folheto sobre a Revolução Russa, que ela nunca publicou, inclusive (foi publicado postumamente) do que para todos seus textos fantásticos sobre a Revolução Alemã que vão mostrando o desenvolvimento do seu pensamento e uma confluência com Lênin. Minha visão é que se trata de uma certa operação ideológica com o intuito de justamente colocar Rosa com um tipo de marxismo separado de Lênin e Trótski e como alguém que defenderia um tipo de socialismo supostamente “mais democrático”. Para fazer isso, é conveniente explorar suas críticas aos bolcheviques de forma unilateral e não publicizar ou abordar o desenvolvimento do seu pensamento na Revolução Alemã de 1918-1919. Isso porque Rosa foi brilhante em toda sua vida, mas estudar sua experiência trágica na Revolução Alemã e as conclusões que foi tirando, mostram que ela era uma revolucionária por inteiro, capaz de tirar lições dos seus próprios erros e defender a revolução proletária e socialista até o final, sem tréguas. Nesses textos ela deixa claro não somente as lições em relação ao debate sobre espontaneidade e consciência, mas também sobre partido de massas ou partido de vanguarda. Seus últimos textos apontam uma forte confluência com o leninismo, que não sabemos aonde poderia chegar, uma vez que sua vida foi interrompida. Por isso, o público brasileiro merece conhecer mais a fundo o pensamento de Rosa Luxemburgo em relação à Revolução Alemã de 1918-1919 como uma “síntese máxima” de seu pensamento e ação. Sobre isso, as Edições ISKRA estão preparando uma próxima publicação em homenagem aos 150 anos do nascimento de Rosa Luxemburgo.

 
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