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Shostakóvich e a Sinfonia que desafiou o cerco nazista
Thiago Flamé
São Paulo

A história da Sinfonia n. 7 em dó maior, de Shostakóvich, concluída em dezembro de 1941, e da sua apresentação em Leningrado (atual São Petersburgo) durante o cerco nazista, é sem dúvida uma história que merece ser lembrada.

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Ilustração: Julia Santana.

Shostakóvich está entre os principais compositores russos do século XX, ao lado de nomes como Prokófiev e Stravínski. Ao contrário destes, no entanto, Shostakóvich pode ser considerado um artista formado integralmente no período soviético. Nascido em 1906 e não tendo emigrado, toda a sua produção se localiza no período imediatamente posterior ao da Revolução de Outubro e está profundamente marcada por ela.

Impossível separar Shostakóvich das contradições políticas do seu tempo. Suas obras trazem a tensão da época em que viveu, a tensão de uma revolução que ia se desfigurando com a ascensão de uma casta burocrática que, purga atrás de purga, eliminou fisicamente a geração revolucionária de 1917 e as seguintes, que recusaram a se submeter. Sua filha diz que “quando eu escuto o trabalho do meu pai, evoco uma espécie de nervosismo, não posso dizer que imagino meu pai, mas posso sentir seu nervosismo. E quem alguma vez viu meu pai escutar a própria música, o fazia com nervosismo, tampando a boca com as mãos. Muito tenso, escutando, repetindo. Esse nervosismo é transmitido” [1].

Na URSS de Stálin, ninguém se arriscava a expressar sua opinião e sentimentos abertamente. Desde a mais singela conversa nas rodas de amigos, até as expressões da arte e da cultura em geral estavam marcadas por esta tensão entre o que se diz, porque se é obrigado dizer – as reverências ao grande líder Stálin, por exemplo –, e o significado real e profundo daquilo que se quer dizer. Um artista tão popular como Shostakóvich, cujas composições impactavam profundamente no imaginário coletivo da URSS e esteve o tempo todo sob os olhares vigilantes da censura e do governo, tem suas obras marcadas também por essa sobreposição de camadas significativas. Sem nunca ter abandonado a revolução, homenageando-a em várias de suas obras, Shostakóvich manteve o senso crítico, a ironia e a autonomia, tendo sido censurado em várias ocasiões.

Dedicada pelo compositor à cidade de Leningrado, coração e epicentro da Revolução de Outubro 14 anos antes, a Sinfonia n. 7 teve ampla difusão nos EUA e na Europa, mas depois, durante a Guerra Fria, caiu em um certo esquecimento. Talvez o que se queira apagar, junto com ela, seja a lembrança do heroísmo do povo russo e seu papel decisivo na luta contra Hitler, apesar do papel catastrófico da liderança de Stálin.

Como relatou Pierre Broué na sua excelente História do Partido Bolchevique, o ataque das tropas do eixo à URSS teve início em junho de 1941 e não encontrou praticamente nenhuma resistência por parte do Exército Vermelho. Stálin e o aparato do Partido Comunista se esforçaram até o último instante para evitar a guerra com a Alemanha e não se preparam para a invasão, ignorando os inúmeros alertas de que ela iria se iniciar. Em poucos meses, as tropas nazis avançaram centenas de quilômetros em território russo. O aparato do partido se desorganizou e se dissolveu nas regiões ocupadas e na retaguarda, enquanto o Exército Vermelho, que tinha passado por um enorme expurgo durante os processos de Moscou, que liquidou Tukhatchévski, seu principal comandante, bem como a maioria do quadro de oficiais superiores, mostrou-se incapaz de oferecer resistência.

A primeira resistência séria encontrada pelas tropas de Hitler se deu nas cidades operárias de Rostov e Sebastopol. Nessas cidades, a luta ocorreu casa por casa, rua por rua, como seria depois em Stalingrado, a batalha que marcou o início da virada na guerra e a primeira grande derrota nazista. Se formaram milícias operárias em Leningrado, Moscou e em outras cidades, foi posto em prática o alistamento geral da população mesmo antes da determinação do partido. Os relatos da época contam que “verdadeiras massas humanas participaram da construção de fortificações improvisadas” nessas cidades.

Para Hitler e o comando nazista se tratava de uma guerra de extermínio e escravização. Antes mesmo do início da ofensiva militar, Göring já havia emitido uma ordem em nome do estado-maior, determinando a destruição de todo o aparato industrial da URSS e determinando a “proibição absoluta de tentar salvar a população da morte por inanição”. Vendo a dificuldade que seria ocupar militarmente as cidades operárias como Leningrado, adota outra tática. Decide cercar a capital da Revolução de Outubro e matá-la pela fome. Para Leningrado, na sua tentativa quase desesperada de ocupar a cidade antes do inverno, Hitler determinou arrasar “com a artilharia sem ter em conta a população, nem sequer uma parte dela”. Os sobreviventes ao cerco contam como a situação era desesperadora. Os corpos se acumulavam nas ruas.

Foi aí, numa Leningrado cercada, que Shostakóvich terminou de conceber sua Sinfonia n. 7, escreveu o primeiro ato e parte do segundo, e fez sua primeira execução em piano, para amigos, enquanto explodiam as bombas lançadas pela Luftwaff, o que o obrigou a suspender a apresentação. Enquanto a compunha, Shostakóvich também desempenhava suas funções na resistência, servindo como bombeiro, ajudando a apagar os incêndios provocados pelas bombas incendiárias, até ser evacuado com sua família da cidade em outubro. Em Samara, concluiu sua composição; e em 27 de dezembro de 1941 a dedica à sua cidade natal, Leningrado, que resiste heroicamente ao cerco e por cujo nome a obra também é até hoje conhecida. A primeira execução aconteceu na própria Samara, a segunda nos EUA, mas, finalmente, em agosto de 1942, seria executada nas mais difíceis condições em Leningrado.

Apresentar a sinfonia na Leningrado cercada se tornara, então, uma tarefa – e das mais complexas – que se colocava para a resistência. A primeira dificuldade que encontra o maestro Eliasberg é reunir os restos da única orquestra que permanece na cidade. A maioria dos músicos estava morta e os que sobreviveram muitas vezes não tinham força sequer para segurar os instrumentos. Os próprios instrumentos estavam em estado terrível. Ao longo dos ensaios, pelo menos três músicos morreram de fome. Como está numa nota dos registros do conjunto: “O ensaio não aconteceu. Srabian está morto. Petrov está doente. Borischev está morto. A orquestra não está funcionando.” Conta a oboísta Ksiénia Matus: “Quando começamos os ensaios para a apresentação, tive que levar meu oboé para ser consertado. Voltei para buscá-lo e perguntei quanto eu devia. O reparador disse ‘traga-me um gatinho’. Ele disse que preferia a carne deles a frango.” O primeiro ensaio teria durado apenas 15 minutos, os músicos não aguentavam mais tempo. O trompetista ofereceu desculpas a Eliasberg por não conseguir produzir uma única nota [2].

Ainda assim, a apresentação finalmente pode ter lugar, apesar de a orquestra ter conseguido executá-la inteira somente uma vez durante os ensaios, em função dos ataques aéreos e da fome. Os músicos vestiram uma série de camadas de roupa para disfarçar sua condição trêmula. No dia, as posições da artilharia alemã sofreram fogo intenso para que não pudessem disparar e acertar o teatro durante a apresentação, que transcorreu sem interrupções. Além da massiva presença no local, foi escutada pelos microfones instalados em toda a cidade, foi escutada no front, pelos soldados russos e alemães. Evidentemente, a qualidade da execução era precária, mas isso não impediu o seu impacto profundo.

Segundo relatos de soldados alemães que se encontraram com Eliasberg na Alemanha Oriental na década de 1950, quando escutaram a sinfonia sendo tocada, compreenderam que “uma cidade em que pessoas demonstravam tal espírito não capitularia” [3]. Não podiam ganhar a guerra, aquela cidade, o berço e o epicentro da Revolução de Outubro, não poderia ser tomada, nem exterminada. Um deles conta que muitos soldados alemães começaram a chorar. Eles não queriam estar ali, também tinham fome, também tinham medo da morte.

Dimitri Shostákovich vestido com seu uniforme da brigada de bomberos de Leningrado (1941)

A interpretação da sinfonia é fruto de debates e polêmicas até hoje. Para alguns, ela retrata a invasão alemã e a resistência do povo russo contra o fascismo, como o próprio Shostakóvich explicou mais de uma vez em declarações públicas. No contexto da URSS, no entanto, essas declarações públicas não têm nenhum valor. Num controverso livro de memórias, “Testemunho”, escrito por SolomonVolkov, supostamente em nome de Shostakóvich, o compositor teria dado outra explicação para a composição. A homenagem a Leningrado foi feita não somente pela resistência ao nazismo, mas também uma homenagem à cidade que já havia sido devastada a partir de dentro, durante os Processos de Moscou e os expurgos. O ato final, que alguns criticam como fraco e não muito bem logrado na sua tentativa de apoteose, foi intencionalmente construído dessa forma. O objetivo era expressar as contradições da vitória, do retorno à vida de antes da guerra, o medo de novos expurgos.

A controvérsia sobre esse testemunho vai seguir. Mas não precisamos nos valer dele para localizar o significado da obra de Shostakóvich e da Sinfonia n. 7, da sua postura crítica ao regime stalinista, adentrar nas suas diversas camadas sobrepostas, sentir a tensão que suas obras transmitem.

O primeiro conflito de Stálin com Shostakóvich se dá em função da ópera Lady Macbeth do distrito Mtsenk. Além das inovações estéticas, era uma peça de combate, que concluía com a morte do tirano por envenenamento. Evidentemente, Stálin se sentiu interpelado, talvez até de uma forma bem pessoal, já que é conhecido o desenvolvimento por parte de Iagoda, seu fiel comandante da GPU, do método do envenenamento para assassinar opositores de forma mais sutil, quando ainda não podia fazer isso abertamente. A extrema popularidade de Shostakóvich e, especialmente, o sucesso que a sua ópera tiranicida fazia soaram o sinal de alerta na burocracia: um artigo no Pravda condenava a peça como contrária aos interesses do povo e terminava com uma ameaça “se o compositor segue por esse caminho, não sabemos como isso pode terminar” [4]. É digna de nota a campanha irracional do regime contra o chamado “formalismo” na música. A defesa do realismo socialista como única forma de expressão artística que interessa ao povo: isso expressa, entre outras coisas, o temor da burocracia stalinista a livre criação/experimentação artística ou a qualquer experimentação nas artes, a todo pensamento livre, ao realismo trágico e tão popular de Shostakóvich. Contra essa campanha Shostakóvich compôs uma ópera satírica que ficou guardada no fundo de um baú por muito tempo, junto com outras obras suas.

Sua Sinfonia n. 4, densa, trágica e pesada só foi apresentada pelo compositor depois da morte de Stálin. Talvez, se fosse diferente, não teria escapado dos processos de Moscou. Com a sua Sinfonia n. 5, recuperou a popularidade que, na verdade nunca perdeu, e voltaria a cair nas graças do regime. A burocracia não entendeu, ou preferiu fingir que não viu, o humor sarcástico com que Shostakóvich a critica nessa composição. Aparentemente alegre, profundamente trágica e melancólica. Depois da aceitação pelo regime, Shostakóvich lhe acrescentou o seguinte subtítulo “a resposta do compositor a uma crítica justa”, tão sarcástico e mordaz quanto a própria sinfonia.

Se a Sinfonia n. 7, que também foi abraçada pelo regime e se tornou parte do esforço de guerra de Stálin e dos Aliados, é fruto de polêmicas até hoje, a nona sinfonia não deixa dúvidas quanto à visão crítica de Shostakóvich sobre o fim da guerra e o regime stalinista. Não à toa, depois dela, ele foi novamente perseguido e teve várias obras censuradas. Já na Sinfonia n. 8, de 1943, a obra de Shostakóvich foi criticada pelo regime e pelo tom pessimista apesar das vitórias na guerra, e rapidamente retirada das salas de concerto. Com a nona o desafio se torna aberto. Ao fim da guerra, Stálin esperava uma grande sinfonia que exaltasse a vitória e os novos tempos vindouros. Além do mais isso se cruzava com uma certa “mística” em torno da nona sinfonia. Todo grande compositor ao chegar na sua sinfonia de número 9 sentia o peso da responsabilidade em fazer algo à altura da nona de Beethoven.

Shostakóvich soube genialmente fugir dessa armadilha da nona e enfrentar o discurso ufanista do regime stalinista. Compôs uma obra curta, pouco grandiosa, aparentemente alegre e abertamente irônica. Mais uma vez, como em 1936, enfureceu Stálin com essa ofensa.

Como vários compositores soviéticos, ao fim da guerra, em 1948, Shostakovich foi obrigado a fazer a autocrítica do seu “formalismo” na música, que seria contrário aos interesses populares. Na sua autocrítica, no meio da leitura do discurso redigido pelo aparato, Shotakóvich não se conteve “quando chegou ao ponto em que dizia que sua musica era contraria ao povo, se afastou dos papéis, olhou para algum ponto no extremo oposto da sala e disse, algo perplexo, como se fosse criança, ‘pensava que se expresso sinceramente meus sentimentos na música, não poderia ir contra o povo. Eu mesmo, quem sou, pensava que também sou parte do povo’ daí recobrou a postura e seguiu lendo o que estava escrito” [5].

O relato proporcionado pelo encontro entre Eliasberg e soldados alemães que escutaram chorando a sinfonia do outro lado das trincheiras nos recorda do aspecto mais importante da política revolucionária frente a uma guerra imperialista, a confraternização das tropas, a aliança entre os povos para parar a máquina de guerra imperialista. Política negada sistematicamente pela URSS, que junto aos Aliados tinha a consigna de “mate um alemão”.

Resgatar a obra de Shostakóvich também é relembrar as enormes potencialidades humanas liberadas pela revolução, que foram esmagadas pelos horrores das perseguições do regime stalinista e sufocadas sob o peso da censura oficial, mas que permanecem como fonte de lição e inspiração para as novas gerações.

 
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