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METRÔ
No meio da multidão: crônica de uma metroviária
Helena Galvão
Economista

Crônica escrita por metroviária sobre o dia a dia dos trabalhadores do metrô de São Paulo.

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Mais um dia no metrô de São Paulo. A gente pensa que sim, na realidade de precarização do trabalho do país, existem muitos trabalhos bem piores do que esse, mas o metrô realmente te cansa. A empresa está a cada dia diminuindo seus funcionários, aumentando a carga de trabalho, por isso trabalhos que poderiam ser levados de boa, são capazes de te deixar no limiar da loucura. Milhões de pessoas que passam diariamente pra trabalhar, estudar, ir ao médico, raras vezes para passear. E parece que todas escolheram te parar para perguntar alguma informação.

Na catraca, está a contradição dos 3,50 necessários para ir a qualquer lugar da cidade. Se não tiver, você está condenado a ficar aonde quer que esteja, está condenado a ir a pé, condenado à humilhação de mendigar por uma passagem no transporte público. E esses 3,50 vão para quem? Financiam a corrupção, o lucro dos acionistas e os cargos de confiança da empresa - que diga-se de passagem, chegam a ganhar mais do que um político.

Na catraca, uma hora em pé, sozinha: olha o rg. passa o bilhete. abre a cancela. "ô moça, ô moça, como vou pro Tietê?", "como vou pra Barra Funda?", "pra onde é Itaquera?". olha o rg. passa o bilhete. abre a cancela. um cotucão. uma, duas, três, quatro, cinco vozes. todos ao mesmo tempo. outro cotucão. um deficiente visual. um cadeirante. atende o telefone. uma, duas, três, quatro, cinco vozes. todas ao mesmo tempo. sua cabeça parece que vai explodir. respira, respira. Sabe, minha amiga me disse "pensa numa ideia de inferno... esse é o inferno. Todos falando ao mesmo tempo, te cotucando, te exigindo, te xingando".

- Posso te contar minha história? Estava indo trabalhar moça, mas meu patrão não depositou o dinheiro do vale transporte. Por favor, deixa eu passar?

- Estou desempregada moça, não tenho dinheiro pra ir, estou indo pra entrevista de emprego. Diz a estranha já com o olho cheio de lágrima, a voz embargada e começa a chorar.

Como o procedimento da empresa diz que não, somos obrigados a aceitar as coisas como elas são. Quem poderia fazer diferente? Fica a moça desempregada, fica o trabalhador do outro lado da catraca. Dos muitos que vão pela catraca, em alguns momentos não podemos deixá-la girar...

- Não vai me passar? Sua vaca, sua vadia. E por ai seguem...

- Não vai me passar? Vou aí socar sua cara.

E acredite, realmente socam. Principalmente se for mulher, sozinha na catraca. Das mulheres que trabalham comigo, todas tem uma história para contar de violência, de xingamentos, de empurrões, de socos. Mas a raiva mesmo é menos com a pessoa que está lá, porque ela também tem uma história por trás, não tem absolutamente nenhum dinheiro, está desempregada, passa pela humilhação de ter que pedir. A raiva, o ódio mesmo é com a empresa que sempre arranja um jeito de dizer que, na verdade, você quem errou, você quem entrou em conflito com a pessoa que queria passar. Faz o discurso de que não deveria barrar ninguém de entrar no transporte se isso coloca em risco a sua segurança. A culpa nunca é da empresa que está reduzindo mais e mais o quadro de funcionários, muito menos do chefe que te deixou ali, sozinha. E você sabe que aquilo é o resultado da contradição da catraca.

Na plataforma, o alto-falante soa alto "funcionária da OPE..." e você vai buscar mais um cadeirante. Depois de duas horas em pé, talvez tenha conseguido sentar uns minutinhos. No percurso: uma, duas, três, quatro, cinco vozes te perguntando. Todas ao mesmo tempo. É a moça que está passando mal. Caiu a pressão porque o metrô é superlotado, vai todo mundo espremido, ela desmaia. Você pensa, e agora? Tenta dar algum conforto naquele mar de gente estranha.

Atende um mal súbito: é a menina grávida com aquele barrigão, que mora no prédio ocupado do centro de São Paulo, está chorando de dor junto com um amigo, pede por favor pra poder levar ela de taxi. Atende mais um mal súbito: é o senhor que veio do trabalho, tava doente há uma semana, com febre, com dor, com tosse, mas não podia deixar de ir trabalhar porque sabe que depois iria vir retaliação do chefe. Como não aguentou mais, disse que deixou o trabalho, ligou pra mulher, mas não pode esperar chegar no médico, a febre tava muito alta, não conseguia sair do trem.

Mais uma vez o alto-falante soa: "funcionária do OPE..." Você entra pra usar o banheiro e lá está a mãe e a menina, menor de idade, violentada dentro do transporte público. Abuso sexual, mas o registro oficial é de crise nervosa. A única coisa que ela quer é jogar a calça fora, se sente suja, imunda, a dignidade jogada no lixo. Como o metro não oferece absolutamente nada, você busca alguma coisa que sirva pra ela poder sair. Pega um saco de lixo com a terceirizada da limpeza pra jogar fora a mochila gozada, e ela poder sair do metro para comprar outra roupa.

Vivemos entre as regras da empresa e as nossas regras. O procedimento operacional, o mecânico, o trabalho que é absolutamente estranho a nós, porque somos obrigados a fazer coisas que sabemos que servem apenas para aumentar o dinheiro que as empresas e esses cargos políticos arrancam da população, ou que se tratando de metro, servem para agradar o ego implementando a ideia de algum desses homens de gabinete. E do outro lado, as regras dos trabalhadores, que são também as regras daqueles que vivem de fato o cotidiano do transporte público, são as regras daqueles que entendem o humano daquelas pessoas, é uma solidariedade que se cria, um vínculo que se estabelece cotidianamente. No trabalho do metrô é como se fossemos obrigados a lidar com uma parte das contradições do mundo que em 8h30 de turno caem nas nossas mãos.

Não bastasse tudo isso, é tomada a decisão de que alguém deve ser mandado pra outra estação. Mas o quadro não está ruim? Como vamos aguentar com menos gente? É... mas veja bem... vocês precisam entender que o Metro está com um problema geral de quadro, que na outra estação o colega também está sofrendo. Certa vez um amigo me disse que no seu país diziam que temos que aprender a dividir o bolo entre todos...

Ah, não. Essa eu não engulo. Qual é o bolo que temos que dividir entre nós? Não tem dinheiro para contratar mais funcionário pro transporte público, mas hoje mesmo saiu no jornal que a linha 4 amarela custou um bilhão, um bi-lhão a mais do que o previsto. Dinheiro dos trabalhadores, roubado para financiar essas empresas. O que querem mesmo é precarizar mais e mais, piorar mais e mais o ritmo de trabalho, as condições do transporte da população e depois privatizar, como já estão fazendo com a linha 5. Decidem isso nos seus gabinetes, e nos colocam na linha de frente como bucha de canhão. Mas não, meus amigos, não somos a bucha, somos quem controla o canhão e ele vai virar pra vocês.

Com o tempo ficamos sabendo de cada uma das histórias das colegas que surtaram, surtaram pelo assédio moral, surtaram pelo estresse, surtaram pela violência cotidiana que lidam por serem mulheres. Piraram. Quão desumano pode ser uma sociedade que nos tira a sanidade? Assédio moral, estresse, depressão, licença médica para ir ao psicólogo e ainda depois aguentar o chefe revirando o seu papel pra ver onde está a brecha para comprovar que seu atestado é falso.

Olho para os meus companheiros de trabalho e sei que ali estão os que mais entendem do metrô de São Paulo. Olho para os "usuários" e sei que ali, na população, estão os que mais entendem sobre transporte público, porque vivem cotidianamente. Não vão precarizar, não vão privatizar, não vão nos deprimir, não vão nos surtar, não vão nos enlouquecer. Declaro aqui o meu combate. E como diria o poeta vamos de "mãos dadas".

 
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