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Karl Marx em Guernica: o Estado contra o direito consuetudinário dos pobres
RESGATES: Karl Marx
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Apresentamos trechos de uma série de artigos que Karl Marx escreveu entre outubro e novembro de 1842 no jornal Rheinische Zeitung (Rhine Gazette), publicado na cidade de Colônia, no oeste da Alemanha, na então província prussiana da Renânia. Esses artigos são conhecidos como "Os debates da sexta Dieta Renana sobre o roubo de lenha". A Dieta (Landtag, em alemão) era a legislatura local da província renana. O debate em questão girava em torno de uma proposta de criminalizar como atentado à propriedade um antigo costume dos camponeses pobres que consistia em tirar lenha das florestas. Na época da reação desses textos, seguiam se desenvolvendo na Europa os métodos de acumulação original do capital que o próprio Marx posteriormente descreveu cientificamente no Volume 1 de O Capital, avançando na expropriação dos setores populares e na apropriação privada das terras e os espaços públicos, criminalizando como roubo o que Marx chama de “direito costumeiro dos pobres”, práticas comunitárias de uso de recursos naturais e terras estabelecidas nas classes populares como costume há séculos. Na atualidade, quando essa expropriação e mercantilização do espaço como lógica do capitalismo se expressa já há séculos, reaparecem os debates sobre o direito elementar à terra e à moradia e o direito à vida sobre a lógica da acumulação e lucros dos capitalistas, como se vê na luta das famílias sem-teto nas ocupações de terras em Guernica, nos subúrbios de Buenos Aires (Argentina) e em outras aglomerações urbanas de todo o país e daqueles que não se deixam derrotar em seu "direito consuetudinário" à moradia. Isso mostra novamente hoje como o Estado não é “um terreno em disputa” que se situa para além das classes sociais, mas sim que estabelece a defesa da propriedade privada, atuando como garantidor da negação dessa mesma propriedade à nove décimos da população, novamente parafraseando o Manifesto Comunista.

Marx, então com 24 anos e ainda não era comunista, mas sim um “jovem hegeliano”, isto é, um democrata radical, intervém escrevendo esta série de artigos críticos onde amargamente nota como o Estado, longe do conceito de realização da Ideia Absoluta que se situa acima dos interesses particulares dos estamentos e das classes sociais (como defendiam os democratas), começa a se mostrar como um servidor dos interesses particulares dos proprietários contra as classes despossuídas. Esta série de artigos é um primeiro passo na direção de suas primeiras conclusões revolucionárias no Manifesto Comunista de 1847-48 sobre o estado como um "balcão de negócios comum da classe dominante".

Uma versão completa desses escritos com uma interpretação pode ser lida no livro de Daniel Bensaïd, Os Despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto da madeira. Aqui fazemos nossa própria tradução de alguns trechos.

Gazeta Renana N.° 298, 25 de outubro de 1842, suplemento

Recolha de lenha solta e roubo de lenha. Ambos têm uma determinação comum. A apropriação de madeira alheia. Portanto, ambos são roubos. Esta é a lógica clara que acaba de ditar. [...]

A lei não está isenta da obrigação geral de dizer a verdade. Pelo contrário, a tem em dupla medida, visto que é ela quem deve exprimir de modo geral e autêntico a natureza jurídica das coisas. A natureza jurídica das coisas não pode, portanto, ser guiada pela lei, mas sim a lei que deve ser guiada pela natureza jurídica das coisas. Se a lei chama de roubo de lenha uma ação que não é crime florestal, a lei mente e os pobres são sacrificados por uma mentira legal. [...]

Se todo dano à propriedade, sem diferença, sem uma determinação mais precisa, é roubo, toda propriedade privada não seria roubo? Com ​​minha propriedade privada, eu não excluo todo terreno dessa propriedade, então eu não leso seu direito de propriedade? Se eles negam a diferença entre espécies essencialmente diferentes do mesmo delito, eles negam o delito como uma diferença do direito e, assim, eliminam o próprio direito, assim todo delito tem um lado em comum com o direito. Por isso, é um fato tanto histórico como racional, que a dureza indiferenciada elimina todo efeito da pena, pois a eliminou como efeito do direito. [...]

Na lei, eles encontraram não apenas o reconhecimento de seu direito racional, mas também frequentemente o reconhecimento de suas reivindicações irracionais. Eles não têm o direito de antecipar-se à lei, porque a lei já antecipou todas as possíveis consequências de seu direito. Portanto, apenas reclama como um domínio reservado aos menus plaisirs (pequenos prazeres), de forma que o mesmo conteúdo que é tratado na lei de acordo com seus limites racionais encontra no costume uma margem para arbitrariedade e afirma que eles vão além dos limites racionais.

Mas se esses nobres direitos consuetudinários são costumes contrários ao conceito de lei racional, os direitos consuetudinários dos pobres são direitos contra o costume do direito positivo. Seu conteúdo não se opõe à forma jurídica, mas à sua própria falta de forma. Não se opõe à forma da lei, mas ainda não a atingiu. Não é preciso muita reflexão para perceber quão unilateralmente trataram e tinham que tratar as leis do Iluminismo com os direitos consuetudinários dos pobres, cuja fonte mais fértil pode ser considerada como tendo sido os diferentes direitos germânicos.

No que se refere ao direito privado, as leis mais liberais se limitaram a formular e generalizar os direitos que encontravam. Quando não encontravam nenhum direito, também não concediam. Eliminaram os costumes particulares, mas esqueceram que, embora a injustiça das propriedades aparecesse na forma de reivindicações arbitrárias, os direitos dos despossuídos o faziam na forma de concessões contingentes. Seu procedimento era correto contra quem tinha costumes fora da lei, mas era incorreto contra quem tinha costumes sem possuir o direito. Assim como, na medida em que se podia encontrar nelas um conteúdo racional, transformaram reivindicações arbitrárias em requisitos legais, da mesma forma deveriam ter transformado em necessárias as concessões contingentes. [...]

A unilateralidade dessas leis era necessária, uma vez que todos os direitos consuetudinários dos pobres se baseavam no fato de que uma determinada propriedade tinha um caráter flutuante, o que não a tornava claramente propriedade privada, mas tampouco claramente propriedade pública, uma mistura de direito privado e público que nos é apresentado em todas as instituições da Idade Média. [...]

Embora toda figura medieval do direito e, portanto, também a propriedade, tivesse em todos os seus aspectos uma natureza híbrida, dualista e ambígua, e o entendimento afirma acertadamente o seu princípio de unidade em face dessa determinação contraditória, por outro lado se esquecia de que existem objetos de propriedade que, por sua natureza, nunca podem atingir o caráter de propriedade privada previamente determinado, e que por sua essência elementar e existência contingente recaem sobre o direito de ocupação, ou seja, sobre o direito de ocupação da classe que, precisamente pelo direito de ocupação, está excluída de qualquer outra propriedade e que ocupa a mesma posição na sociedade civil que esses objetos na natureza.

Pode ser visto que os costumes que são os costumes de toda a classe pobre sabem apegar-se com seguro instinto a parte mais indecisa da propriedade, e se verá que esta classe sente não apenas o desejo de satisfazer uma necessidade natural, mas também a necessidade de satisfazer um impulso de justiça. [...]

Também na sua atividade os pobres encontram o seu direito. Na coleta, a classe elementar da sociedade humana confronta, ordenando os produtos do poder natural elementar. Algo semelhante acontece com os produtos que crescem selvagens, formando um acidente puramente casual da propriedade e que pela sua menor importância não constituem o objeto da atividade do verdadeiro proprietário; algo semelhante acontece com a caça, colheita e direitos costumeiros desse tipo. Nestes costumes da classe pobre vive então um sentido jurídico instintivo, sua raiz é positiva e legítima e a forma do direito consuetudinário é tanto mais adequada porque a própria existência da classe pobre é agora um mero costume da sociedade civil que não ainda encontrou um lugar adequado na estruturação consciente do estado. [...]

Chegou-se a um ponto de transformar uma lei consuetudinária dos pobres em monopólio dos ricos. Foi dada a prova conclusiva de que um bem comum pode ser monopolizado; obviamente segue-se disso que deve ser monopolizado. [...]

Gazeta Renana N.° 303, 30 de outubro de 1842, suplemento

[...] Como a propriedade privada não tem os meios para se elevar à perspectiva do Estado, o Estado tem o dever de se rebaixar aos meios da propriedade privada, contrariando a razão e a lei. Esta arrogância do interesse privado, cuja alma mesquinha nunca foi iluminada e sacudida por um pensamento a respeito do Estado, é para o Estado uma lição séria e profunda. Se o Estado condescende em um ponto em agir no modo de propriedade privada ao invés de em seu próprio, segue imediatamente que ele tem que se acomodar na forma de seus meios até os limites da propriedade privada. O interesse privado é suficientemente astuto para levar esta consequência ao extremo e convertê-la na sua forma mais reduzida e pobre o limite e regra da ação estatal, da qual, e independentemente da aviltamento total do Estado, decorre, inversamente, que acionará contra o acusado os meios mais contrários à razão e à lei, visto que a maior consideração quanto ao interesse da propriedade privada limitada se transforma necessariamente em excessiva falta de consideração pelo interesse do acusado. Mas se aqui fica claro que o interesse privado quer e deve degradar o Estado por meio do interesse privado, como não poderia resultar que uma representação dos interesses privados, das propriedades, quer e deve degradar o Estado ao pensamentos de interesse privado? Todo estado moderno, por pouco que corresponda ao seu conceito, será forçado a exclamar à primeira tentativa prática de um poder legislativo deste tipo: seus caminhos não são meus caminhos, seus pensamentos não são meus pensamentos. [...]

A vontade do dono da floresta exige a liberdade de poder tratar o infrator de acordo com seu conforto e da maneira mais conveniente e econômica. Sua vontade quer que o estado deixe o malvado a seu critério. Reivindica plein pouvoir (plenos poderes). [...]

Essa lógica, que transforma os servidores do proprietário florestal em autoridades do Estado, transforma as autoridades do Estado em servidores do proprietário florestal. A divisão do Estado, a função de cada um dos funcionários administrativos, tudo tem que sair do controle para que tudo seja rebaixado a um meio do dono da floresta e seu interesse apareça como a alma que determina todo o mecanismo. Todos os órgãos do Estado se transformam em ouvidos, olhos, braços e pernas com os quais o interesse do dono da floresta ouve, espia, calcula, protege, pega e foge. [...]

Gazeta Renana N.° 305, 1 de novembro de 1842, suplemento

O bom prefeito tem que assumir o ônus e realizar uma bela ação para que o dono da floresta cumpra suas obrigações com o município sem nenhum custo. Com o mesmo direito, o proprietário florestal poderia contratar o prefeito como chefe de cozinha ou enólogo. Não seria uma bela ação do prefeito mantenha em boas condições a cozinha e a adega de seus administrados? O criminoso condenado não é administrado do prefeito, é administrado do carcereiro. O prefeito não perde a dignidade do cargo se for retirado da direção do município como executor a alguns membros da comunidade, se passar de prefeito a carcereiro? Os outros membros livres do município não são prejudicados se seu trabalho honesto a serviço da comunidade for reduzido a trabalho forçado a serviço de certas pessoas? [...]

O interesse não pensa, ele calcula. As razões são seus números. O motivo é um meio para eliminar as razões jurídicas, e quem duvida que o interesse privado tenha tantos motivos a esse respeito? [...]

O dono da floresta pode garantir sua lenha melhor do que aconteceu nesse caso, onde o crime se transformou em sua renda? Como um general hábil, ele transforma o ataque de que é objeto em ocasião infalível de lucro triunfante, pois até a mais-valia da lenha, essa extravagância econômica, se transforma em substância graças ao furto. Não se deve apenas garantir ao dono da floresta a lenha mas também o negócio da lenha, enquanto a confortável homenagem que lhe oferece seu administrador, o Estado, consiste em não lhe pagar, é uma ideia exemplar transformar a pena, de crime de triunfo da direita contra o ataque à direita, em um triunfo do egoísmo contra o ataque ao egoísmo. [...]

Gazeta Renana N.° 307, 3 de novembro de 1842

Em quê baseiam vossa pretensão de servidão do ladrão de lenha? Sobre as multas. Mostramos que não têm direito a multas. Prescindamos disso. Qual é o princípio fundamental que argumentam? Que o interesse do dono da floresta seja assegurado, mesmo que com isso o mundo da lei e da liberdade seja suprimido. Para vocês é indiscutível que suas perdas em lenha devem ser compensadas de alguma forma pelo ladrão. [...]

Não é um juiz imparcial uma ilusão tola e pouco prática se o legislador é tendencioso? Como sentença seria desinteressada se a lei não é? O juiz só pode formular de forma puritana o egoísmo da lei, só pode aplicá-la sem piedade. A imparcialidade é então apenas na forma, mas não no conteúdo da sentença. O conteúdo foi antecipado pela lei. Se o processo nada mais é do que uma forma desprovida de conteúdo, essa insignificância formal não tem valor em si mesma. [...]

A Dieta votou para decidir se os princípios legais devem ser sacrificados em prol da proteção da floresta ou do interesse da proteção da floresta aos princípios legais, e o interesse venceu a lei. Inclusive foi reconhecido que a lei como um todo é uma exceção à lei e disso se concluiu que qualquer disposição excepcional é lícita. [...]

A dieta, portanto, cumpriu perfeitamente sua função. Defendeu um determinado interesse especial - para o qual foi convocada - e o tratou como seu objetivo final. Que ao fazer isso tenha pisoteado a lei é uma simples consequência de sua tarefa, já que o interesse é por sua própria natureza cega, excessivo, unilateral, em uma palavra, sem lei, e como haveria de ditar lei o que é sem lei? Por se sentir no trono do legislador, o interesse privado não se torna capaz de legislar, da mesma forma que um mudo não se torna capaz de falar porque lhe é dado um megafone de enorme alcance. [...]

A lenha é lenha na Sibéria e na França; o proprietário florestal é proprietário florestal tanto em Kamchatka como na província do Reno, portanto, se as leis são feitas pela lenha e o proprietário da lenha como tal, só serão diferenciadas pelo ponto geográfico em que são aplicadas e o idioma em que foi feito. Este materialismo abjeto, este pecado contra o espírito sagrado dos povos e da humanidade é uma consequência imediata da doutrina que a Gazeta do Estado Prussiano prega ao legislador, segundo a qual, ao fazer uma lei sobre a lenha, deve-se pensar apenas na lenha e na floresta e não resolver os problemas materiais concretos de um modo político, isto é em relação à totalidade da razão e da moralidade do Estado. [...]

 
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