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CHINA
Nuvens no céu azul da recuperação econômica chinesa
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Entre janeiro e fevereiro de 1992, Deng Xiaoping realizou sua famosa “Viagem ao Sul” da China, visitando as cidades de Cantão, Shenzhen, Zhuhai e Xangai. Depois de um breve interregno no avanço da política de abertura e reforma, devido à crise política resultado da repressão sangrenta em Tiananmen em 1989, a viagem de Deng foi o sinal verde de sua fração para que o ritmo das reformas pró-capitalistas fosse acelerado. O simbolismo das cidades não foi menor. Xangai e Cantão constituíam desde muito duas das maiores concentrações operárias da China, sendo esta última cidade o centro da indústria manufatureira orientada para a exportação. Entre 1978 e 1980, Zhuhai e Shenzhen se tornaram “Zonas Econômicas Especiais” para atrair investimento estrangeiro. O processo retrógrado de restauração capitalista na China, que se completou destruindo as condições de vida de milhões de trabalhadores, ganhou um salto nessa turnê sulista.

Sem esse significado histórico, mas num momento crucial do turbulento ano de 2020, Xi Jinping decidiu fazer sua “Viagem ao Sul”. A ocasião foi a comemoração do 40° aniversário da Zona Econômica Especial de Shenzhen. Segundo a imprensa oficial Xinhua, Xi visitou as cidades de Shantou e Chaozhou, na província de Guangdong, passando simbolicamente pela fábrica Chaozhou Three-Circle (Group) Co., responsável pela manufatura de componentes eletrônicos de comunicação, incentivando o desenvolvimento de inovação e produção tecnológica endógena. No Sul, o presidente chinês já havia visitado Hangzhou, em sua província natal de Zhejiang, em março, assim como a cidade de Wuhan, epicentro do coronavírus.

Na fábrica Chaozhou Three-Circle (Group) Co.

Xi, que é também presidente da Comissão Militar Central da China, fez uma conferência com os fulizeiros navais de Chaozhou, acentuando a preocupação dos chefes da Marinha em um competente preparação para defesa militar e estratégica dos interesses territoriais da China. O Mar do Sul da China é uma região de tensões exacerbadas, que envolvem as ambições de Pequim sobre os demais países do sudeste asiático para controlar essas águas que abrigam trânsito comercial estratégico. Xi não deixou de lembrar aos militares, na conferência, que o Partido Comunista é o "líder supremo das forças armadas, que devem ser leais ao governo". Uma afirmação sugestiva de desconforto.

É a terceira visita de Xi Jinping à província de Guangdong desde o 18º Congresso do Partido Comunista Chinês, em 2012, em todas as quais a palavra de ordem de Deng “reforma e abertura” foi repetida com insistência. “Estamos passando por mudanças inéditas em um século, e precisamos depender de nós mesmos em um novo nível”, foi a mensagem de Xi (China Today). Em Guangdong está situada a tech-city de Shenzhen, um dos Vales do Silício da China, casa de mega-empresas de tecnologia como a Huawei e a Tencent, fundamentais para o governo chinês levar adiante a disputa tecnológica aberta com o imperialismo norte-americano na era Trump. A mensagem de Xi põe a lupa nas dificuldades que a China ainda encontra no campo do desenvolvimento endógeno de inovação, como no ramo de semicondutores, essenciais para a tecnologia de 5G, para cuja fabricação as empresas chinesas ainda dependem dos EUA, Taiwan e Coreia do Sul.

A inspeção tem importância pelo momento em que se dá. Tendo contido o avanço da COVID-19 em seu território, com meios autoritários que geraram comoção e críticas em Wuhan, a China é o país que lidera em índices de recuperação econômica. De fato, a previsão de queda do PIB mundial vem melhorando quase que exclusivamente pelo desempenho econômico de países asiáticos, especialmente da China. O FMI apresentou seu novo World Economic Outlook, em que prevê contração do PIB mundial em 4.4% para 2020 – um péssimo resultado, mas menos pior que a previsão de queda de 5.2%, em junho, segundo o Financial Times.

A economia chinesa vem se recuperando com participação intensa do comércio exterior, mas curiosamente não pela região sudeste – centro da indústria exportadora – e sim pelas exportações oriundas das regiões central e ocidental da China. O comércio exterior chinês cresceu 7.5% em termos anuais, no terceiro trimestre, no montante de 1.3 trilhão de dólares (8.8 trilhões de iuanes), sendo um incremento de 10.2% nas exportações e de 4.2% nas importações. Mesmo em meio à contração do comércio global em função relativa paralisia produtiva provocada pela COVID-19, a China teve, em termos acumulados, ganhos de 23 trilhões de iuanes nos três primeiros trimestres, alta de 0.7% anual.

As importações da China, em setembro, foram outro sinal da maior recuperação econômica. Atingiram 13.2% de aumento em termos anuais, 203 bilhões de dólares, investidos na compra de minério de ferro, commodities agrícolas e semicondutores - mais uma vez, a dependência exógena sendo a pedra no sapato da indústria chinesa. Tanto assim que um dos principais fornecedores de semicondutores (microchips) para Pequim é Taiwan – que Xi Jinping quer reabsorver de todo modo ao território chinês, como parte do impulso tecnológico interno – que viu suas exportações crescerem 26%, especialmente em componentes eletrônicos.

As regiões central e ocidental da China contribuíram com aumento de 8.3% nas exportações em termos anuais. Menos afetada pela COVID-19 do que o Sul da China, essas regiões vem segurando o comércio exterior. As desigualdades na recuperação regional, e a presença física de Xi em Guangdong, são antes um sinal de apreensão que de calmaria. Um novo surto do coronavírus no centro industrial-tecnológico da China, como ocorreu em Pequim, pode significar turbulências políticas para o governo.

A recuperação relativa das exportações chinesas não apenas vem sustentando a debilitada economia mundial, mas também impactando na revalorização do renminbi. O superavit de conta corrente da China está decolando, sob o efeito das vendas de equipamentos médicos e protetivos contra a pandemia. Isso vem causando a revalorização do renminbi diante do dólar, e o governo chinês não sinaliza querer controlar esse movimento. Ao contrário das operações regulares de desvalorização por parte do Banco Popular da China, a situação mundial e a orientação política do país parece ter descoberto certas virtudes na fortaleza da moeda chinesa.

O objetivo principal é a internacionalização do renminbi. A China tem muito interesse em fazer com que sua moeda tenha maior participação diária nas transações internacionais, e ambiciona conquistar o posto de moeda de reserva para os bancos centrais mais importantes. Trata-se de uma condição fundamental para que a China entre numa competição mais séria com os Estados Unidos, e ela está ainda longe disso. Dados de 2016 do Bank for International Settlements (BIS) mostram que a participação do renminbi no giro diário dos mercados cambiais é pequena, de 4%. Em 15 anos, subiu da posição de 35ª para 8ª moeda mais transacionada nesse mercado, mas ainda assim permanece bem abaixo da participação do dólar, que é de 87%. Analistas como Ernani Torres afirmam que a maior conversibilidade do renminbi e sua utilização global mais efetiva ainda podem levar anos ou mesmo décadas, e mesmo que as autoridades chinesas assim o desejassem, sua moeda dificilmente poderia ser uma alternativa ao dólar.

A sutil valorização do renminbi diante do dólar poderia ser um passo adiante nos planos chineses. A desvalorização do renminbi não teria tanto efeito na recuperação chinesa, diante da contração do comércio global. A maioria dos contratos de exportação da China, ademais, estão denominados em dólar. Diana Choyleva, do Financial Times, argumenta que esse é um cenário favorável para a China manter um renminbi forte, e continuar atraindo capitais estrangeiros para o país: Pequim precisa dos influxos de capital para limpar os problemas de dívida que acumulou com grandes rodadas de investimento estatal na economia, e a dívida contraída em função do combate à pandemia.

Para os capitalistas interessados, serve de pressão para a maior liberalização do sistema financeiro chinês, substancialmente controlado pelo Estado. É o caminho que, lentamente, vem trilhando o governo chinês em 2020. Submetido à pressão de Trump pela maior liberalização dos mercados de capital, Xi Jinping permitiu que os bancos norte-americanos JPMorgan e Goldman Sachs fizessem investidas importantes nessa área, com o JPMorgan arrebatando o fundo de investimento China International Fund Management, e o Goldman Sachs próximo de obter o controle total sobre o primeiro banco de investimento completamente controlado por capital estrangeiro a operar na China, segundo o colunista Patrick Jenkins. O Morgan Stanley e o Citigroup também fizeram negócios favoráveis para o fortalecimento de suas posições na China.

Os bons resultados econômicos da China, portanto, estão carregando certa recuperação inesperada da economia mundial, com o Ocidente golpeado pela COVID-19. Para o Brasil, isso representa um fôlego econômico, com as exportações recorde de commodities para a China, tornando Bolsonaro um fã oculto de Xi Jinping: a China respondeu por 40% das exportações agrícolas brasileiras no primeiro semestre de 2020, segundo dados do governo, e a receita das exportações do agronegócio subiu quase 10% quando comparado o primeiro semestre de 2019 com o de 2020, passando de US$ 47,08 bilhões para US$ 51,63 bilhões. De janeiro a junho deste ano, foram gerados US$ 20,5 bilhões com as vendas de produtos agrícolas para os chineses. A importância da relação comercial com a China nunca foi tão decisiva para a extrema direita bolsonarista, que vai encontrar dificuldades em 2021 com o fim do auxílio emergencial.

Mas a viagem ao Sul de Xi é um ponto de preocupação dentro das boas novas econômicas. Qual a razão para o atraso na recuperação do sudeste chinês? Além da contração do comércio, não se pode descartar os efeitos residuais da pandemia. Do ponto de vista estratégico, a competição com os Estados Unidos passa por um salto na produção de inovação tecnológica endógena, depois dos ataques diretos que Trump orquestrou contra o fornecimento de tecnologia estadunidense para a Huawei e a SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corporation, a principal empresa chinesa de microchips). Para isso, Guangdong e as províncias do Sul são fundamentais. Há nuvens nesse céu azul.

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