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CRISE POLÍTICA E ASSEMBLEIA CONSTITUINTE
O jogo e suas trapaças
Iuri Tonelo
Recife

Que os ricos e poderosos têm influência direta no “jogo” do sistema político e que vivenciamos na verdade mais um jogo de manipulações do que uma democracia, é algo que está cada vez mais escancarado para além dos círculos da esquerda. Mas que chegaríamos ao nível de vivenciar a decomposição bolsonarista da democracia dos ricos, em que o autoritarismo deixa de ser exceção e torna-se regra, isso é algo que muitos não imaginariam.

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Acontece que a ordem de grandeza da trapaça, como em todo jogo, tem seus impactos. No jogo da democracia capitalista brasileira, a última e notável trapaça foi o golpe institucional de 2016, um golpe que teve muitas consequências na descrença em amplos setores de massa senão dos limites absolutos, ao menos relativos, da democracia burguesa. Ou seja, o impeachment de 2016 teve consequências enormes e anos de ressonância, partindo do terreno político, com seu coroamento na prisão do Lula e as eleições manipuladas que levaram Bolsonaro ao poder. Mas não só, sendo um golpe (institucional), com todo o significado político da palavra, naturalmente teria consequências econômicas e sociais.

Se as discussões sobre o significado político do impeachment de 2016 parecem ter se saturado, suas consequências estão na ordem do dia, mais escancaradas que nunca, e em embates para definir o futuro dos trabalhadores. A ferida do golpe foi a morte de Marielle, que escancarou o que se avizinhava. E vira e mexe a questão negra reaparece em resistência: o grito frente as consequências da “ferida” teve sua última expressão na emblemática greve dos entregadores, jovens e em sua maioria negros, trabalhando mais de 12 horas, ganhando o mínimo para sobreviver. Entre as distintas heranças maléficas de 2016, com reforma da previdência, teto dos gastos, ataque as universidades... a reforma trabalhista, e em particular a uberização do trabalho, é parte da mais notáveis heranças deixada.

Por que esse debate retoma a ordem do dia? Pois estamos precisamente agora em meio ao debate sobre que fazer frente aos fantasmas de 2016 quando o mundo viveu uma das maiores ondas de lutas sociais no ano passado (lembremos Chile, Equador, Haiti, França...), abriu um dos maiores conflitos de rua da história dos EUA e outros capítulos como Líbano atual estão em pleno vapor. Eis que clama o think thank democrata norteamericano: “não é hora de readequar?”.

Como se coloca essa pergunta no país aos olhos dos dominantes? A greve no metrô é muito chamativa: 73% dos metroviários votam greve e uma chuva de comentários nas redes sociais dão apoio, as tropas bolsonaristas estão mais debilitadas, o metrô não paga pra ver e recua. O debate sobre o metrô roda os whatsapps de muitas categorias, a luta tem apoio. Entre os aeroviários, na Latam os trabalhadores uniformizados pedem fim as demissões. O entregador enfrenta o racista e o país inteiro apoia, nas mais distintas categorias e meios, quem não vai apoiar? Isso indica que a situação mudou e estamos deixando a reação bolsonarista? Não. A esquerda não pode se confundir nem pintar com cores benévolas a desgraça que vivenciamos no país dos 100 mil mortos. Mas deve olhar estrategicamente para o que se avizinha no Brasil, ao menos os estrategistas dos EUA estão fazendo.

Daqui um duplo movimento: por um lado, a pressão do mercado financeiro para retomar as reformas, privatizações, cortes de gastos (com Paulo Guedes e Maia a frente); por outro, o significado da Rede Globo fazer seu primeiro aceno a Lula. Todos os socialistas que querem aprender um pouco com a história sabemos que Lula foi e continuará sendo um espírito conciliador, que acredita que acordos com as elites podem levar a algum lugar... vejam aonde estamos com esse pensamento - governo Bolsonaro - e pensemos que o abismo é grande se quisermos repetir a experiência da conciliação. O fato é que a filial do partido democrata no país e dona do maior pedaço da mídia brasileira está recolocando as cartas na mesa, por isso o aceno a Lula. Se as coisas seguem amenas, pode-se tentar a nova direita (Moro) contra a extrema-direita (Bolsonaro) em 2022. Se as coisas se tornam mais quentes, é sempre bom ter a velha carta lulista para controlar as massas.

No jogo de ganha-ganha da elite pró-imperialista, pode-se rever o lugar das igrejas e da burocracia sindical no regime, pode-se até rever o lugar do PT, negócios são negócios para os velhos banqueiros e empresários e muita coisa pode ser feita, só não pode se mexer nas feridas, é preciso que elas cicatrizem. Ou seja, a cartilha deles é: mudemos os representantes do “jogo democrático”, mas aceitemos as novas regras, é tempo de uberização, o novo normal é o trabalhador sem direitos, seguro-desemprego, sem 13º, férias, transporte.... enfim, é tempo de aceitarmos como o normal o entregador dizer que “o duro é trabalhar com fome levando comida nas costas”.

A negociação começa com o próprio Lula, esse é o grande recado da Globo para virar a página do golpe. A trajetória do PT nós já conhecemos, mas o que chama a atenção são forças políticas dentro do PSOL prontamente retirando a caneta do bolso para aceitar as novas condições. Desesperados com 2022, o total ceticismo com a classe trabalhadora é diretamente proporcional com a sanha de fazer campanha para o PT ou até justificar as coligações. Para este setor do PSOL o problema dos socialistas não é superar o PT pela esquerda, o problema é criar espaços melhores para enfrentar eleitoralmente o “fascismo bolsonarista”. A retórica as vezes é ácida, mas notem que frisei o eleitoralmente, porque no final das contas é isso e, partido por partido, o PT acaba sempre tendo mais peso nesse terreno. E eis que voltamos ao mesmo ciclo vicioso da conciliação, tendo expressões concretas de aliança do PSOL com PT em Campinas, apoio ao PT em Recife e Belém, “frente ampla” em Florianópolis, só para citar alguns exemplos.

Organizações aparentemente mais “radicais”, como o PSTU, mantem-se na miopia de repetir que 2016 não foi golpe, fechando o diálogo com qualquer alma racional no país que percebe que as coisas pioraram muito, mas muito, no pós-impeachment. Pousam de sectários, mas mantém uma prática muito adaptada às burocracias sindicais (às grandes centrais) e, politicamente, na verdade só abrem caminho com sua leitura rasteira e autocentrada do país a um novo fortalecimento do PT – afinal, o PT sempre gostou de “radicais” que discutem nos seus círculos, sem propostas políticas para os trabalhadores, nem iniciativas de influência reais, em suma, sem propostas políticas.

Ou seja, retomando o problema global, o que incomoda a elite não é reabilitar alguns políticos e rever algumas linhas, ainda que importantes, da narrativa golpista: o que incomoda é que exista uma esquerda que não aceite as “novas regras” desse jogo podre, que questione as reformas, a dívida pública e a cada vez maior subordinação ao imperialismo, os novos métodos do golpe e o papel nefasto do autoritarismo do judiciário e essa escravidão moderna da uberização, obras estratégicas da nova correlação de forças pós 2016.

Que todo o jogo democrático não é nada mais que o jogo do capital, isso nós sabemos. Mas é preciso que apresentemos programas políticos claros, que façam a leitura da situação e apresentem saídas para as massas trabalhadoras a partir da nossa estratégia socialista e das debilidades dos dominantes. A grande falácia, a grande trapaça (inscrita nas possibilidades dessa democracia carcomida, mas nem por isso uma inflexão menor) que levou as transformações no regime político atual foi o golpe de 2016, e a maior falcatrua será reordenar um pouco o jogo e manter a obra do golpe. A isso é preciso dizer não, sabendo dialogar com as aspirações democráticas. “Virar a página” com uma eleição com Lula nas novas condições desse regime apodrecido, como propõe a Globo, é o projeto político mais mesquinho que a esquerda pode ter. Não tiramos nenhuma lição da transição pactuada com os militares de 1988 frente a esse regime ainda mais decomposto?

Assim, nosso combate a Bolsonaro não pode ser para colocar Mourão, tornar o impeachment o programa dos socialistas, esse recurso esdrúxulo de manipulação dos de cima, capitaneado pelo congresso atual (!), é covardia. E pensar 2022 por fora das questões estratégicas da obra do golpe é uma aceitação do autoritoritarismo, subordinação e a precarização sem limites do trabalho.

É preciso colocar o dedo na ferida. Não, os trabalhadores não aceitamos esse regime degenerado que sufoca qualquer boa alma, que tira o sono dos que refletem um pouco, que normaliza a opressão e a exploração sem limites, onde o bolsonarismo, suas milícias, suas chacotas com Marielle e sua intolerância são parte do jogo do dia a dia. A esquerda precisa construir o mais forte polo possível que se oriente para a unidade dos trabalhadores e os sindicatos nas ruas, na ação, com uma bandeira que busque revogar essas reformas, autoritarismo e manipulações. Não aceitamos esse regime golpista, exigimos uma assembleia constituinte, que enfrente toda a corja miliciana do governo de Bolsonaro e os militares, que coloque abaixo esse Senado e garanta uma câmara única, que elejam os juízes e demos um basta nos autoritarismos do judiciário, que revogue as reformas e recoloque os grandes temas nacionais, como a reforma agrária, a soberania nacional contra o capital estrangeiro e suas privatizações, que tome medidas decididas contra o racismo em nosso país etc, [1]

Quanto maior for o polo que construamos da esquerda orientado para uma ampla frente única dos trabalhadores nas ruas, unindo o bloco de esquerda radical do PSOL e PSTU e outros setores que batalhem pela independência de classe, que se enfrente com esse regime e obra econômica do golpe (e os novos planos privatizantes e ajustadores de Guedes, Maia, Bolsonaro e cia) e se prepare para os processos de lutas de classes que se expressam em cada canto do mundo desde 2019, mais próximos estaremos por superar a velha experiência da conciliação de classes e construir um partido revolucionário que possa fazer frente não apenas as trapaças burguesas, mas o verdadeiro jogo capitalista da exploração, da miséria, das mazelas e opressões eu se perpetuam como um vírus no sistema internacional.

[1] A virtude da ACLS é, justamente, auxiliar as massas a enxergar as conspirações antidemocráticas do seu inimigo, obrigar a classe dominante “a colocar todas as suas cartas na mesa, explicitando o papel traidor dos conciliadores”, opondo assim os interesses dos trabalhadores e da população aos interesses da burguesia. No sentido do que dizia o Trotski “As consignas da democracia formal conquistam ou são capazes de conquistar não somente as massas pequeno-burguesas, mas também as grandes massas operárias, precisamente porque lhes oferecem a possibilidade (ao menos aparente) de opor sua vontade à dos generais, latifundiários e capitalistas. A vanguarda proletária educa as massas servindo-se dessa experiência e as leva adiante" (SGOD, CEIP, p. 290).

 
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