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IDEIAS DE ESQUERDA
Notas sobre a formação da classe operária da China, 1840-1989
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

A história do movimento operário chinês se mescla com a história do desenvolvimento industrial do país oriundos dos choques contra a opressão estrangeira na China e da conflagração militar entre as potências imperialistas. Já nos primórdios de seu choque com a classe dominante, observamos dois traços essenciais: em primeiro lugar, os trabalhadores chineses dificilmente podem ser classificados, em qualquer momento de sua história, como mero objeto de exploração; em segundo lugar, seu enfrentamento de classes habituou-se a se dar simultaneamente contra a classe dominante nativa e a opressão estrangeira. Colocamos adiante em breves traços alguns momentos decisivos da luta proletária na China, no último século e meio.

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A formação propriamente nacional da China, com o muito longo processo de unificação territorial ainda no curso da dinastia Qing, e posteriormente a sua queda até a fundação da República Popular da China em 1949, esteve imbricada com ciclos cada vez mais marcantes de lutas operárias. Segundo a historiadora Elizabeth Perry, em seu Shanghai on Strike: the Politics of Chinese Labor:

Os protestos operários desempenharam um papel central nas transformações políticas que atravessaram a China no século XX. A Revolução de 1911 que derrocou o sistema imperial, o Movimento 4 de Maio que inaugurou uma nova cultura política, a ascensão e queda do regime nacionalista, a vitória dos comunistas, e mesmo o desenho político pós-1949, todos esses eventos foram profundamente afetados pelo movimento operário chinês (PERRY, 1993, p. 2).

No século XIX, apenas apresentava-se o esboço do proletariado chinês, que surgiria da potente combinação dos trabalhadores rurais migrantes a caminho das cidades portuárias, e os dispersos artesãos urbanos. Já no século XX, com a formação do proletariado chinês em pleno curso na forja de Hefesto da indústria nascente, a história do movimento operário na China teve múltiplos pontos explosivos, sendo mais notório a erupção “cataclísmica”, nas palavras de Mark Selden em Labor Unrest in China (1995), em meados da década de 1920, como conseqüência da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa de 1917. Esse período, considerado por muitos analistas (Chan 1995; Perry 1993; Selden 1995) como o mais convulsivo na história do movimento operário chinês, localiza-se entre 1922 e 1927, englobando, portanto, a fundação do Partido Comunista Chinês e a grande gesta operária da Revolução Chinesa de 1925-27. Uma segunda explosão de vitalidade do movimento operário na China, ainda que de menor intensidade que a primeira, ocorreu durante a Guerra Civil (1946-49) que culminou com a Revolução que elevaria Mao Tsé-Tung ao poder, dando origem à República Popular da China em 1949. Outros três momentos relevantes em que o movimento operário chinês teve grande protagonismo se deram já no interior da República Popular da China: em 1967, no auge da Revolução Cultural; em 1979, na turbulenta transição da era Mao para a era Deng; e em 1989, com os acontecimentos relacionados ao Massacre da Praça da Paz Celestial. Todos esses períodos de luta operária revelam a íntima relação do proletariado chinês com os acontecimentos mundiais, muito avesso à tradição imperial chinesa, isolacionista e de animosidade ao estrangeiro (característica que a mesma burocracia do PCCh adotou como sua, fruto de uma estratégia de bloqueio da expansão da revolução internacional).

Lutas anticolonialistas na China do século XIX

Nos primórdios da atuação operária na China, ainda na primeira metade do século XIX, os distúrbios tinham como objetivo opor-se à opressão nacional chinesa pelas potências europeias, nomeadamente a Inglaterra. Esparsa e mergulhada num oceano de camponeses, a classe trabalhadora tinha pouco peso numérico à época da Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), concentrando-se nas guildas que animavam a produção artesanal nas cidades costeiras, como Xangai e Cantão. Mesmo nessas condições, a classe trabalhadora ligada aos portos chineses desempenhou, no seio das disputas entre a dinastia Qing e o Ocidente, o importante papel de combatente de vanguarda contra a intervenção militar estrangeira. Antes mesmo do conflito sino-britânico, temos registros de distúrbios de trabalhadores têxteis nas regiões de Nanhai e Panyu, próximas de Cantão, contra a entrada de fio britânico nos portos chineses, como forma de defesa da manufatura de fiação nativa. Já em meio à Guerra do Ópio, trabalhadores, também do setor têxtil, atuaram nas milícias que atacaram os invasores britânicos no Incidente de Sanyuanil, de 1841 (SELDEN, 1995, p. 71). Após o anúncio do imperador Daoguang acerca da suspensão dos direitos comerciais dos britânicos e a apreensão forçada do ópio dos mercadores da Coroa britânica, foram os trabalhadores portuários que tiveram papel de destaque na resistência militar – sem grandes chances de êxito, desde o início – às belonaves e canhões da frota britânica, sob o comando do plenipotenciário Henry Pottinger (que viria a tornar-se o primeiro governador de Hong Kong). Antes de assinado o Tratado de Nanquim, selando a vitória britânica, os trabalhadores chineses haviam se aproveitado do contato com a tecnologia militar do inimigo para absorvê-la em sua própria indústria bélica. Essa curiosa aptidão observada na capacidade de apropriação de tecnologia estrangeira, que viria a marcar tanto a vida industrial da China na passagem do século XX para o século XXI, já se via em embrião a meados do século XIX. O especialista britânico em China, Jonathan Spence, conta que:

Em Xiamen, por exemplo, encontraram um réplica quase terminada de uma belonave de convés duplo inglesa, com trinta canhões; estava quase pronta para ser lançada ao mar, e o trabalho em diversos barcos semelhantes já estava bastante avançado. Em Wusong, encontraram cinco barcos a roda prontos, armados com canhões de bronze fundidos recentemente. Em Xangai, capturaram dezoito canhões de dezoito libras para navio, novos e bem executados, perfeitos nos mínimos detalhes, tal como as miras fundidas no corpo e os ouvidos das fecharias de pederneira. Todos estavam montados em robustos carros de madeira com eixos de ferro (SPENDE, 1996, p. 169).

Assim também, os trabalhadores portuários, na guerra sino-francesa de 1885, foram protagonistas das atividades de resistência ao colonialismo francês, ao se recusarem a descarregar os navios de guerra do inimigo – numa situação de franca desvantagem militar, dada a superioridade da força naval francesa. Em 1894, quando um conflito militar contra os japoneses também levou ao triunfo dos estrangeiros sobre as forças chinesas, o proletariado nativo trabalhava sob o comando da Zongli Yamen (uma espécie de “Ministério de Relações Exteriores” dos Qing) para construir um aparato militar minimamente compatível com os desafios postos pelo Japão. São inúmeros os exemplos dessas pequenas escaramuças de milícias chinesas contra o colonialismo europeu e asiático, em que a força de trabalho das importantes cidades portuárias, esmagadas sob o peso dos Qing, servia de força material contra os invasores.

Bombardeio britânico na Primeira Guerra do Ópio (1839-1842). "’Nemesis’, East India Iron Armed Steamship", de Edward Duncan.

É de primeira ordem notar o grau de enfrentamento contra a opressão estrangeira como marca definidora do proletariado nascente chinês. Os incidentes que marcariam estopins das grandes ondas de greves insurrecionais no primeiro quarto do século XX começaram com os abusos de ingleses e japoneses, que de 1860 a 1895 impuseram duras condições de sobrevivência ao império chinês, após triunfos militares contra os Qing. No caso dos britânicos, o bombardeio de Cantão e a rendição de Pequim levaram ao Tratado de Tianjin, de 1858, que liberava o território chinês para o comércio britânico do ópio. Com o Tratado de Shimonoseki, imposto pelo Japão ao derrotar a marinha chinesa em 1895, os japoneses garantiram o direito de construir fábricas em todos os portos livres da China, especialmente da indústria do algodão, bastião de grandes revoltas operárias prévias à Revolução Chinesa de 1925, e reduto de influência do Partido Comunista Chinês.

Outro ponto notável era a composição da classe operária chinesa: a diferença na qualificação dos trabalhadores costumava ser decisiva, nas grandes cidades industriais, para o nível e o tipo de organização adquirido. Elizabeth Perry faz notar que, em Xangai, enquanto os artesãos especializados do Sul da China dispunham na cidade de melhores postos de trabalho e a proteção que as guildas (ou associações de ofício, na carpintaria, alvenaria, olaria) ofereciam (regulamentando os salários e a jornadas de trabalho), usualmente os camponeses do Norte não logravam atingir esses mesmos postos, e tinham de se resignar com trabalhos mais precários. Ademais, esses trabalhadores rurais, sem especialização, não possuíam meios para entrar nas guildas, e eram obrigados a se organizar em diferentes gangues (como a “Gangue Verde”, logo após a Revolução de 1911), cuja relação de hierarquia sobre os trabalhadores precários os colocava na situação de supervisores de trabalho. Essa divisão em “duas almas” da classe trabalhadora chinesa seria vista com moldes renovados na divisão entre a velha classe operária do setor estatal, e o novo proletariado rural que ocuparia as fábricas exportadoras no curso das reformas pró-capitalistas de Deng Xiaoping.

Essas divisões eram estimuladas pelos gerentes de manufatura e administradores estrangeiros que operavam na China (as gangues possuíam laços de interesse material com os patrões). Os capatazes, que possuíam essa influência sobre os trabalhadores, por meio da hierarquia das gangues ou das guildas, utilizavam esse poder para extrair benefícios pecuniários dos proprietários, sob pena de facilitar greves controladas. No entanto, essas divisões não predispunham os trabalhadores necessariamente contra a atuação comum. Pelo contrário, Emily Honig (1986; 1989), Gail Hershatter (1986) e Elizabeth Perry (1993) descrevem os processos de solidariedade operária que integrariam – aos traços incipientes de consciência de classe que emergiam no final do século XIX e início do século XX – as linhas de gênero e local de origem como fatores de organização e atuação coletiva como, por exemplo, no segmento das trabalhadoras da indústria do algodão, por muito tempo dominado pelos japoneses.

Imagem da guerra sino-japonesa de 1895.

Excetuando determinados excessos na caracterização dos motivos identitários dos protestos, que impregnavam a consciência dos trabalhadores chineses, mais do que impeditivos, eram fatores que alentavam uma nova espécie de consciência coletiva, não raro de consciência de classe, entre os trabalhadores urbanos. Essas razões ajudam a iluminar a combinação criadora que as transformações de época no capitalismo imperialista, especialmente na passagem para o século XX, e a influência das idéias revolucionárias após a Revolução Russa de 1905, começavam a ter em pequenos círculos das cidades industriais chinesas. Assim, tendo como fator propulsor a defesa das condições de classe no trabalho, greves ou distúrbios contra as arbitrariedades patronais não eram escassos:

Em 1868, os trabalhadores da Shanghai Dock and Engineering Company realizaram uma greve para evitar um corte salarial. Em 1879, ferreiros da empresa Pudong Engineering Works paralisaram seus trabalhos para reclamar dos abusos físicos recebidos de um supervisor estrangeiro. Em 1883, trabalhadores do Jiangnan Arsenal se amotinaram quando um capataz da fábrica tentou elevar a duração da jornada de trabalho. Dois anos depois, encenaram uma paralisação para exigir aumento salarial. Em 1890, um novo administrador desse setor provocou uma greve quando anunciou o aumento da jornada de 8 para 9 horas [...] Esses protestos iniciais eram amplamente defensivos por natureza. Cortes salariais, abusos físicos e a extensão da jornada de trabalho precipitavam os conflitos. Com a expansão da indústria depois da Guerra sino-japonesa de 1894-95, entretanto, o padrão das greves dos artesãos mudou notavelmente. A demanda maior por trabalhadores qualificados encorajou modalidades mais agressivas de protestos por parte desse setor mais favorecido da força de trabalho (PERRY 1993, p. 38).

As greves operárias que surgiam, nomeadamente dos artesãos qualificados (da carpintaria, alvenaria, do setor gráfico, da pintura) adquiriam um caráter não mais defensivo apenas, mas inclusive ofensivo, exigindo demandas novas, no período que conduziu à Revolução de 1911, dirigida pelo nacionalista burguês Sun Yat-sen. Com a derrubada da dinastia Qing e do último imperador, Xuantong, a liberdade de atuação do movimento operário chinês, já em pleno curso de concentração industrial, aumentava, uma vez que o código penal que estipulava terríveis punições aos grevistas perdera efeito. A politização geral do discurso urbano no início da república encorajava os trabalhadores, especialmente os artesãos qualificados, a elaborar demandas mais ambiciosas em seus conflitos trabalhistas.

A industrialização e a formação do proletariado chinês

Mas o século XIX chinês viu apenas os esboços de um proletariado ainda muito fragmentado, pouco numeroso e esparso, fundado no artesanato urbano e na pequena manufatura têxtil. Submersa na imensidão camponesa, a classe trabalhadora chinesa começava a se concentrar nos centros urbanos que se conectavam com a expansão, caracteristicamente lenta e gradual, do comércio externo pela via marítima. O período que vai de 1895 a 1918, ou seja, do início do movimento de reformas contra a opressão política dos Qing ao final da Primeira Guerra Mundial, representa a fase de transição e de amadurecimento da incipiente classe trabalhadora urbana, que passaria por um intenso período de industrialização a partir de 1914, com o impulso da guerra. O centro do movimento operário nascente na China foi Xangai, maior cidade do país e beneficiária do desenvolvimento do comércio marítimo na segunda metade do século XIX. Outras cidades litorâneas, como Cantão e Tianjin, também viram florescer sua indústria vinculada ao comércio estrangeiro, e desenvolveram seu proletariado ligado a essas atividades.

Examinando as primeiras décadas do movimento operário chinês, Jean Chesneaux observou quatro períodos de picos grevísticos: 1898-99 (10 greves), 1904-06 (15 greves), 1909-13 (38 greves) e 1917-19 (46 greves), cada pico mais longo que o anterior. O primeiro pico coincidiu com o Movimento de Reforma de 1898, o segundo pico com o boicote anti-EUA de 1905, o terceiro com a revolução de 1911, e o quarto pico absorveu suas energias do estímulo nacionalista da Primeira Guerra Mundial, por um lado, e da Revolução Russa de 1917, por outro, culminando no Movimento 4 de Maio de 1919. Enquanto a reconstrução das datações nacionais feita por Chesneaux resulta útil, o estudo minucioso do caso de Xangai, feito por Elizabeth Perry, sugere uma importante modificação nessa periodização. Contrariamente a Chesneaux, Perry encontra uma alta aguda nas greves de Xangai, de 30 greves entre 1909 e 1913, para 86 greves entre 1914 e 1918. A Primeira Guerra Mundial foi a “era dourada” da indústria chinesa, momento em que a China conseguiu tirar vantagem tanto da alta demanda por manufaturas, quanto do enfraquecimento do controle do capital estrangeiro, ocupado então com a guerra, uma situação favorável ao florescimento da militância operária (SELDEN, 1995, p. 72).

Os grandes eventos que robusteceram a indústria chinesa e, por conseguinte, avolumaram o peso da classe trabalhadora, foram a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, que habilitaram a conexão da vanguarda da classe trabalhadora com o melhor da experiência estratégica do marxismo, desenvolvida por Lênin e Trótski na III Internacional (sem desconhecer as inúmeras dificuldades advindas com as diferenças idiomáticas e da própria tradição política particulares da China). O estímulo dos eventos internacionais mencionados, além da incessante agressão japonesa em território chinês, e o crescimento do proletariado urbano nas regiões centrais da economia, prepararam o caminho para o ciclo mais ardente de ativismo operário na história da China, entre 1919 e 1927. Xangai era o centro desse dinâmico operariado nascente. Em 1933 quase metade da classe trabalhadora chinesa se encontrava aí; entre 1918 e 1940 foram encenadas 2.291 greves na cidade, com 65% delas conseguindo êxitos parciais ou totais (SELDEN, 1995, p. 74).
Proporcionalmente, a quantidade de trabalhadores urbanos empalidecia diante da potência numérica do campesinato. Em 1919, a China possuía 2 milhões de trabalhadores urbanos industriais, em comparação com centenas de milhões de camponeses, e outras dezenas de milhões de trabalhadores rurais, numa sociedade predominantemente agrária (como, aliás, era o caso da vizinha Rússia). Entretanto, como na Rússia, a questão não se fundava meramente em números absolutos dessas populações relativas, e sim seu papel na produção e sua concentração nos centros nevrálgicos que definiam o curso da economia nacional. Em Xangai, Cantão, Tianjin, Pequim, a importância do proletariado chinês foi engrandecido por sua concentração nas posições mais estratégicas da economia, e nas zonas urbanas mais sensíveis do ponto de vista da política nacional.

Acontecia na China um processo semelhante ao que Trótski descrevera na Rússia, sob a lei do desenvolvimento combinado, a saber, alguns poucos milhões de operários, concentrados nos centros estratégicos da economia, dirigia uma centena de milhões de camponeses:

A lei do desenvolvimento combinado manifesta-se a cada passo, no domínio econômico, tanto nos fenômenos simples como nos complexos. Quase sem rotas nacionais, a Rússia viu-se obrigada a construir ferrovias. Sem haver passado pelo artesanato e pela manufatura europeias, a Rússia saltou diretamente para a produção mecanizada. Enquanto a economia camponesa permanecia, freqüentemente, ao nível do século XVII, a indústria da Rússia achava-se no mesmo nível dos países avançados e, por vezes, sobrepunha-os em muitos aspectos [...] Uma burguesia russa numericamente débil, que não possuía nenhuma raiz nacional, defrontava-se desta forma com um proletariado relativamente forte e com rijas e profundas raízes no povo.

Nacionalismo e comunismo

Nessa formação social da classe trabalhadora chinesa, como apontamos no início, a tradição da resistência contra a agressão estrangeira marcou a consciência de sua atividade política. Os Movimentos de 4 de Maio de 1919, e de 30 de Maio de 1925 (sem mencionar as refregas de 1840 a 1895 contra o colonialismo euro-asiático) se fizeram em nome da resistência ao imperialismo da Inglaterra e do Japão. As lutas de libertação nacional influenciavam o desenvolvimento da subjetividade do movimento operário chinês, e não espanta que, politicamente, essa subjetividade se expressasse de maneira heterogênea. O nacionalismo burguês, encarnado no Kuomintang de Sun Yat-sen e Chiang Kai-shek, tinha tanto interesse quanto os comunistas em conquistar a base operária para suas fileiras, na década de 1920. Esse foi um dos motivos que levaram Chen Duxiu, futuro fundador do Partido Comunista Chinês, a buscar criar associações operárias marxistas em Xangai.

Quer demonstrasse lealdade aos Três Princípios do Povo, de Sun Yat-sen, ou ao marxismo, os dirigentes do Partido Comunista Chinês e do Kuomintang se sentiram compelidos a designar uma alta prioridade à classe operária. Acreditando que a industrialização era a esperança do futuro, tanto os nacionalistas quanto os comunistas fizeram grandes esforços para alistar o movimento operário sob suas bandeiras políticas [...] Profundas divisões persistiam na classe operária, abrindo caminho a uma base fragmentada para ambos os partidos (PERRY, 1993, p. 68).

Essa disputa política entre o nacionalismo e o comunismo se faria central em todo o ciclo de revoluções e guerras que integram o período de 1922 a 1949. É importante, portanto, não examinar linearmente os resultados dos ciclos de greves e distúrbios operários a uma filiação ideológica homogênea. Como se provou muitas vezes na história, e na China não foi diferente, a luta de classes molda de forma contraditória as lealdades políticas das classes e frações de classe, e depende sumamente dos seus resultados das relações de força no terreno nacional e internacional.

Na própria Xangai, que veria o nascimento do Partido Comunista Chinês em junho de 1921, comunistas e nacionalistas disputavam a organização da classe trabalhadora com a formação de sindicatos rivais. Os políticos do Kuomintang, auxiliados por capatazes de fábrica e pelos mesmos gangsteres que controlavam a mão de obra precária, buscavam canalizar o ativismo operário para seus próprios desígnios [1]. A federação Sindical de Xangai, controlada pela ideologia nacionalista conservadora do Kuomintang, perseguia e atacava os membros da Federação Sindical Geral de Xangai, criada após os incidentes do Movimento 30 de Maio, em 1925, e influenciada pelo Partido Comunista. Essa federação sindical comunista ganhou muito prestígio entre 1923-1926, reunindo 117 sindicatos, dentre os quais o Sindicato Gráfico de Xangai e os sindicatos representantes dos trabalhadores das fábricas de algodão, de capital japonês. Essa força adquirida se erguia sobre bases frágeis, entretanto, caminhando na trilha do abandono da independência política do Partido Comunista em nome de sua integração no Kuomintang, por orientação da ala majoritária da Internacional Comunista de então, dirigida por Stálin e Bukharin.

Veremos adiante que a própria direção do Partido Comunista Chinês, sob os auspícios da Internacional Comunista, decidiu dissolver-se no interior do Kuomintang e entregar a Chiang Kai-shek o arbítrio sobre as vidas de milhares de operários. Poucos intelectuais chegam a deslindar esse novelo, que pertence ao campo da estratégia. Para a compreensão das disputas políticas entre essas duas vertentes, a história da luta de tendências interna entre as distintas frações que conduziam as bandeiras partidárias é conditio sine qua non, para que não se incorra em exames superficiais.

Greves e ciclos revolucionários na China

Da participação dos trabalhadores de Xangai no Movimento 4 de Maio de 1919 [2], com 60.000 grevistas protestando contra a passividade do governo chinês diante das intenções imperialistas do Japão sobre seu território no Tratado de Versalhes; passando pela greve dos marinheiros de Hong Kong e Cantão em 1922, que virtualmente paralisou o comércio da região pó meses; até o Movimento 30 de Maio, em 1925, que iniciado nas fábricas de Xangai se espalhou por todo o país para dar origem à Revolução Chinesa, o movimento operário esteve no centro da vida política nacional como nunca antes. Mais uma vez, o movimento operário chinês, agora muito mais robustecido do que durante as incursões da Coroa britânica na Guerra do Ópio, postou-se como classe de vanguarda contra as agressões imperialistas, especialmente do Japão e da Inglaterra. Teve, para isso, de enfrentar os obstáculos impostos pela própria burguesia nacional chinesa (organizada no Kuomintang), que embora não aceitasse todas as injunções estrangeiras, tinha um ódio muito mais mortal dos perigos que advinham da classe trabalhadora chinesa do que do capital euro-asiático.

Tiroteio no Movimento do 30 de Maio de 1925.

O Movimento 30 de Maio, em 1925, teve como estopim uma das brutais arbitrariedades cometidas pelo imperialismo japonês e seu capital na China. Ponto alto de uma grande onda de greves, teve como início o assassinato em Xangai de um trabalhador chinês, Gu Zhenghong, que fazia parte da organização sindical dos algodoeiros, durante uma greve de três meses numa fábrica de algodão de capitais japoneses. O velório, com mais de 10.000 trabalhadores, despertou a simpatia do proletariado da cidade e se converteu num grande acontecimento. Quando dez outros trabalhadores chineses foram assassinados a tiros pela polícia britânica que operava em Xangai, 160.000 operários entraram em greve (50.000 estudantes boicotaram aulas para dar-lhes apoio). Ao bloqueio do porto de Xangai pelos portuários, navios japoneses adentraram o rio Whangpoo para reabri-lo, matando outros 60 trabalhadores. A continuidade da chacina aumentou a ira operária que daria início à Revolução Chinesa. Greves e assembleias de massas se espalharam pelas cidades industriais costeiras. Em 1925 as conseqüências do Movimento 30 de Maio levaram a 130 greves com a participação de 400.000 trabalhadores. Nesse ano, outra potência estrangeira seguiria de perto os crimes cometidos pelo imperialismo japonês. A Inglaterra, que havia feito parte ativa na exploração e na devastação militar dos portos chineses no século XIX, também exigia seus direitos sobre a força de trabalho nativa. Quando as tropas britânicas assassinaram 52 manifestantes a 23 de junho de 1925, 300.000 operários chineses ganharam as ruas para, novamente, impulsionar uma dos mais alentados ciclos grevísticos da história nacional.

O auge revolucionário de 1925-27

Esse foi o período mais concentrado da atividade grevista da classe trabalhadora chinesa em sua história. Para derrotar a opressão anglo-japonesa e realizar uma revolução agrária, os trabalhadores, cuja vanguarda de centenas de milhares organizava-se no Partido Comunista, tinham forças para vencer a própria burguesia nacional, condição para eliminar o entulho do atraso social chinês oriundo dos “senhores da guerra” feudais. Mas havia algo de podre no reino da Dinamarca (nesse caso, no “Reino do Meio”). A direção do Partido Comunista Chinês vinha atuando, desde 1923, em estreita consonância com a burguesia nacionalista, reduzindo a batalha pela hegemonia sobre o proletariado em nome da colaboração numa “frente única anti-imperialista” cujo centro era o abandono da independência de classe – a tal ponto que dessa “frente” fazia parte o triunvirato Huang Jinrong, Du Yuesheng e Zhang Xiaolin, os principais gangsteres do tráfico de ópio em Xangai (que vieram a ser os aliados íntimos de Chiang Kai-shek na ofensiva anti-comunista de 1927).

Em 1925, inicia-se uma série de greves em função do assassinato de Gu Zhenghong. As tropas de Chiang Kai-shek estavam avançando em sua “Expedição ao Norte”, em 1926, contra os senhores da guerra em função da unificação nacional. A revolta camponesa, que no rastro dos expedicionários ocupava os latifúndios e assassinava os senhores de terra, e a agitação nas cidades, incomodava profundamente o Kuomintang, que aguardava o momento para por um fim violento aos distúrbios, e ao Partido Comunista. A despeito disso, toda a atividade grevística, que se desdobrou numa série de chamados insurrecionais, fora conduzida pelo PCCh sob o objetivo tático de colaborar na retaguarda com as tropas de Chiang.

Isso era assim porque, seguindo a linha do V Congresso de 1924 – em que Stálin, Zinoviev e Kamenev iniciam a organização da campanha contra Trótski e o legado de Lênin – a Internacional Comunista define que o PCCh deveria se incorporar ao Kuomintang (algo a que Trótski se opunha desde 1923). Essa definição se fazia em base a uma leitura interessada das chamadas “Teses gerais sobre a questão do Oriente”, um dos resultados do IV Congresso da IC em 1922. As “Teses” atestavam com clareza que as burguesias nacionais das colônias e semicolônias eram incapazes de conquistar a independência nacional e a resolução do problema agrário; no entanto, não generalizavam a experiência russa de 1917, deixando de postular que, para conquistá-las, a classe trabalhadora deveria dirigir a revolução. Apesar do caráter semietapista das “Teses” – que seriam plenamente superadas pela concepção global da teoria da revolução permanente de Trótski, em 1930 – seu objetivo estratégico estava posto no desenvolvimento dos partidos comunistas no Oriente, tendo na independência de classe um princípio fundamental [3]. Passando por cima desse princípio, Stálin elabora uma divisão “teórica” estanque entre os países “maduros e não maduros” para a revolução – a China caía fatalmente nessa segunda categoria – restaurando a velha fórmula da “ditadura democrática de operários e camponeses” para os países de desenvolvimento capitalista atrasado, uma concepção assinalada como ultrapassada pelo próprio Lênin, para encobrir sua política aberta de colaboração de classes com a burguesia. Ademais, resgata a ideia dos “partidos operários e camponeses” para esses países, uma maneira de renunciar à construção de partidos revolucionários independentes, e que levava objetivamente à subordinação do PCCh ao Kuomintang e seus gangsteres. Nada mais afastado dos fundamentos teóricos que, naquele então, deram origem às “Teses do Oriente”.

Em 1926, já sob as ordens diretas de Stálin, essa orientação se aprofunda, e ao PCCh é ordenado que se dissolvesse organizativamente e se submetesse às ordens de Chiang, que seria elevado por Stálin a “membro honorário da IC”. Contra a formação de organismos de tipo soviético dos trabalhadores e camponeses chineses, e chegando ao cúmulo de exigir que o Partido Comunista Chinês entregasse suas armas às tropas nacionalistas, Stálin preparava a catástrofe da Revolução Chinesa. Com uma estratégia assim, tirava-se toda necessidade de um grande pensamento estratégico do inimigo para derrotar os trabalhadores. Mais espantoso se torna o temário à luz dos êxitos que o proletariado chinês conquistara em Xangai, em março e abril de 1927, êxitos entregues sob ordens de Stálin às mãos dos verdugos.

A prova real da luta de classes não tardou. A 21 de março de 1927, lança-se o chamado à greve geral em Xangai, com sucesso incontestável, fundado na greve ferroviária que paralisava as funções governamentais. O Partido Comunista Chinês desata o plano insurrecional, desarmando a polícia e multiplicando o armamento dos trabalhadores. Do ponto de vistada preparação militar e do seu desenvolvimento tático, a insurreição de Xangai se mostrava triunfante. Mas no campo da estratégia, esse êxito parcial não soube ser utilizado para derrotar o inimigo. Ao invés de impulsionar sovietes – ou organismos de auto-organização adequados à tradição chinesa – na noite do dia 22 de março o PCCh abriu os portões de Xangai às tropas expedicionárias de Bai Chongxi, do Kuomintang. O momento esperado por Chiang Kai-shek chegara, e em aliança com os magnatas do ópio e com a embaixada britânica (ávida em eliminar os comunistas das fábricas), desencadeia-se sob o comando do general Bai a repressão contra os trabalhadores de Xangai. A 12 de abril, milhares de trabalhadores são fuzilados, que previamente haviam entregado suas armas ao Kuomintang, sob orientação da IC. Proíbem-se as greves e a organização sindical – os gângsters Du Yuesheng e Zhang Xiaolin erguem a “Sociedade de Avanço Mútuo”, uma tropa de choque de extermínio de comunistas – enquanto Chiang negocia com os senhores da guerra a unificação pactuada do país, sem terra aos camponeses. Não satisfeito com essa derrota, a direção da IC orienta o PCCh a subordinar-se a uma suposta “ala esquerda” do Kuomintang, personificado em Wang Jingwei (adversário ocasional de Chiang Kai-shek no tema da “aliança”), que conduzia os nacionalistas na cidade de Wuhan. A experiência levou a uma nova carnificina dos trabalhadores, com a reaproximação de Wang e Chiang em 1927.

Cartaz chinês sobre o Massacre de Xangai de abril de 1927.

Assustado com os resultados de sua política, o Kremlin stalinista sugere um giro de 180º, e desfere uma ofensiva insurrecional em Cantão. Isolado e enfraquecido pelo Massacre de Xangai, os comunistas de Cantão tomam armas e se apoderam do controle político e econômico da cidade. Sob a direção de Li Lisan, o Partido Comunista Chinês desencadeia a insurreição a 11 de dezembro de 1927, em poucas horas os serviços governamentais e o arsenal passam às mãos dos insurretos. Ao contrário do que foi feito em Xangai, imediatamente em Cantão são erguidos sovietes, que passam a organizar a economia: uma série de decretos institui a nacionalização da terra, o confisco das grandes fortunas da cidade, a nacionalização da grande indústria, dos bancos e das ferrovias.

Cantão provara que era possível à classe operária chinesa tomar o poder em Xangai, de forma independente da burguesia, e transformar-se em dirigente das tarefas democrático-estruturais da nação oprimida, combinadas às tarefas socialistas de expropriação dos capitalistas. Havia disposição da vanguarda operária, apoiada por milhões, de resolver com seu próprio programa independente a emancipação nacional e a distribuição das terras aos camponeses, contra a burguesia e os “senhores da guerra”. A situação, entretanto, havia mudado com os acontecimentos de abril em Xangai: as tropas do Kuomintang entram em Cantão e derrotam militarmente a insurreição. A derrota foi “esplendorosamente” organizada por Stálin e a nova direção da Internacional Comunista.

De 1927 a 1949, breves linhas

Depois da derrota da Revolução Chinesa de 1925-27, o movimento operário chinês chegou a um estado de catatonia. Sob a dominação ditatorial do Kuomintang e dos senhores da guerra no campo, além da repressão japonesa, a classe trabalhadora chinesa padeceu anos de retrocesso, e não protagonizou conflitos de monta até o final da Segunda Guerra Mundial em 1945. Tendo sido traído pelo Partido Comunista Chinês e a Internacional Comunista sob a direção de Stálin e Bukharin, os trabalhadores chineses ficaram atomizados nas cidades, desorganizados e aterrorizados pela repressão e vigilância permanente de Chiang Kai-shek. A depressão econômica vivenciada no país também desencorajou qualquer reanimação, mesmo de resistências defensivas.

Nesse ínterim de quase 20 anos de quietismo operário, algumas exceções apresentaram o vigor do combate anti-imperialista que fez parte da formação da classe trabalhadora chinesa, especialmente no final da década de 1930, quando o Japão preparava uma nova guerra contra a China. Centrado em Xangai, os trabalhadores, em expressão reduzida, deixaram sua marca na resistência contra a opressão japonesa, entre 1935-36 – anos de protestos nacionais contra a ingerência do Mikado – assim como entre 1939-40, quando Xangai já se recuperara dos ataques militares japoneses de 1937.

O segundo grande ciclo de ativismo operário na China adveio com o final da Segunda Guerra Mundial e início da guerra civil (1946-49), entre o Kuomintang e o Partido Comunista, após a derrota do Japão. Assim como o primeiro ciclo emergiu fruto dos processos revolucionários pós-Primeira Guerra, esse novo levante operário emergiu em sintonia com os processos revolucionários dos trabalhadores que se espalharam pelo mundo após a Segunda Guerra (os processos de descolonização na África e na Ásia, ondas revolucionárias na Grécia, na Itália e na França, processos anti-burocráticos nos países sob a batuta da URSS). Entretanto, diferentemente do impulso dado pela Revolução Russa de 1917, que sob a direção de Lênin e Trótski buscava expandir a revolução internacionalmente, ajudando estrategicamente na construção de novas lideranças comunistas no globo, no pós-Segunda Guerra a direção burocrática de Stálin, responsável pela derrota da Revolução Chinesa, saiu da conflagração com prestígio mais assegurado. O Exército Vermelho, com dezenas de milhões de mortos e toda a velha guarda revolucionária assassinado na fraude dos Processos de Moscou orquestrados por Stálin, foi o único capaz de vencer o exército nazista alemão, o que conferiu à União Soviética um respeito internacional no movimento operário.

Para a União Soviética, esse cenário implicava o fortalecimento do controle da burocracia sobre os trabalhadores russos, e sobre uma terça parte do globo terrestre, em que os capitalistas foram expropriados pelo Exército Vermelho (sem protagonismo operário), mediante os Acordos de Yalta e Potsdam entre Stálin, Roosevelt e Churchill. Para a China, implicou o fortalecimento da burocracia stalinista do Partido Comunista Chinês, que tinha à testa Mao Tsé-Tung.

Mao, para quem a revolução a ser feita na China estava dirigida “contra o imperialismo e o feudalismo, e não contra o capitalismo” [4], defendia que suas forças motrizes incluíam não apenas a classe trabalhadora e os camponeses, mas também setores burgueses nacionais, e até mesmo latifundiários que, de maneira “sensata”, demonstrassem opor-se aos japoneses. Vemos com Mao a anterior estratégia de Stálin, de colaboração de classes com a burguesia nacional sob a ideia de que esta cumpriria um papel revolucionário. Isso quer dizer que, para Mao, a frente política com o Kuomintang de Chiang Kai-shek era a peça político-estratégica central, subordinando a ela sua concepção de guerra popular prolongada, para o triunfo contra os japoneses. Dessa forma, Mao defendia em grande medida a política que havia levado ao fracasso a revolução de 1925-1927, ainda que, diferentemente de Stálin, não aceitasse a dissolução do PCCh – um detalhe organizativo, diante da renúncia aberta ao fundamento da independência política dos trabalhadores chineses. Em verdade, o papel do Partido Comunista Chinês para Mao consistia em garantir a unidade com a burguesia nacional a qualquer custo e, portanto, protegê-la das massas, estabelecendo assim limites estritos para a luta entre trabalhadores e burgueses como condição estratégica para a manutenção da luta prolongada contra o imperialismo japonês. A guerra de libertação nacional deveria impor limites à revolução.

Assim sendo, sobre a base de um partido-exército camponês, a estratégia da “guerra popular prolongada” de Mao não objetivava reativar organismos de auto-organização de massas dos trabalhadores e dos camponeses chineses, e sim sufocar qualquer tendência de tipo soviético, como aquele na Rússia de 1917 (que a burocracia stalinista também lograra sufocar). A ruptura do Partido Comunista Chinês com o Kuomintang, em verdade, só ocorreu por imposição de Chiang Kai-shek, que após a derrota japonesa, com apoio dos Estados Unidos, negou a política de Mao que oferecia cooperação com a burguesia, e buscou acabar com os rastros do PCCh. Sem escolha de aliança com o nacionalismo burguês, rejeitando a revitalização sobre bases democrático-soviéticas do proletariado chinês ainda atomizado nas cidades, Mao apoderou-se do poder após vencer militarmente o Kuomintang. À saída da guerra civil, a República Popular da China nasceria já burocratizada, sem que os trabalhadores chineses tivessem qualquer liberdade na decisão do rumo político do país, menos ainda da planificação racional da economia em base à propriedade social dos meios de produção.

Mesmo com as travas impostas pela burocracia maoísta, o segundo ciclo de ativismo operário na China, no final da década de 1940, foi superior ao visto nos últimos 20 anos, de passividade e resignação após os acontecimentos de 1927. Entretanto, o obstáculo burocrático foi suficientemente forte para que a atividade operária que levou à constituição da República Popular fosse substancialmente inferior à vista durante o ciclo de 1922-27.

Os resultados da Segunda Guerra Mundial foram definidores para a forma em que se daria o novo ciclo de ativismo operário, localizado sobre um terreno social em que a agressão imperialista japonesa havia retrocedido de maneira praticamente integral após sua derrota na guerra. Depois da rendição do Japão, o Kuomintang voltara às regiões costeiras da China. O capital japonês fora expropriado, e seus antigos trabalhadores chineses postos sob a administração estatal. Selden aponta que, de 1946 em diante, os distúrbios operários na China já não ocorriam no terreno do capital privado, mas na arena estatal (1993, p. 77). A combinação da guerra civil, da altas taxas de desemprego e da inflação galopante à saída da guerra impulsionou protestos operários de monta nas cidades controladas pelo Kuomintang (o PCCh mantinha-se nas zonas rurais circunstantes às grandes regiões urbanas). Em 1946, uma de cada cinco pessoas em Cantão (228.000) estavam sem trabalho, e 30% (200.000 pessoas) da população de Nanjing se encontravam desempregadas. Esse panorama de pobreza imposta pelas conseqüências da guerra levou a que, em Xangai, houvesse 1.716 greves registradas em 1946, número incrementado para 2.538 greves em 1947. Por trás da revolta dos trabalhadores, o Partido Comunista Chinês apertava o fole para intensificar as chamas nas cidades controladas pelo Kuomintang, sem com isso alentar qualquer tipo de auto-organização de tipo soviético nas cidades, sobre as quais almejava exercer domínio. Depois do triunfo em 1949, o Partido Comunista desativaria, por coerção ou repressão, as agitações trabalhistas que lhe permitiram derrotar os asseclas de Chiang Kai-shek.

Da República Popular ao Massacre da Praça da Paz Celestial

Esse foi um momento de crescimento das forças materiais da classe trabalhadora chinesa ocupada nas regiões urbanas. Entre 1949 e 1956, o proletariado chinês havia completado sua transição das bases privadas de propriedade para a base da propriedade estatal. A classe trabalhadora industrial havia atingido 25 milhões em 1952, aumentando para 54 milhões em 1966, e atingindo 148 milhões em 1988; desse número global a finais da década de 1980, 100 milhões de trabalhadores estavam ocupados nas empresas estatais, enquanto apenas 8 milhões na indústria privada (SELDEN, 1995, p. 77).

A situação da classe trabalhadora na China, com a expropriação do imperialismo japonês e a socialização dos setores estratégicos da economia, melhorou substancialmente. Em verdade, as condições de uma parte da classe trabalhadora, que não incluía os trabalhadores rurais, muito menos o campesinato. Os trabalhadores das grandes empresas estatais, como os da indústria pesada (metalurgia e siderurgia), conquistaram direitos sociais múltiplos, seguridade social, emprego vitalício, aposentadoria, plano de saúde gratuito, e elevações salariais. Em troca, a armação militar do país bloqueava todos os poros de expressão política das massas. O direito de greve foi circunscrito quase à abolição, e os comitês do Exército de Libertação Popular asfixiavam a vida intelectual nos locais de trabalho, cuja administração fora ossificada pelos distintos escalões da burocracia central e local. Com exceção de esparsos protestos nas décadas de 1950 e 1960, como durante o Movimento das Cem Flores encabeçado pela intelectualidade em 1957, não há registros de agitações operárias de relevo entre 1949 e o estouro da Revolução Cultural em 1966.

Em 1967-68, com a grande divisão interna no Partido Comunista Chinês e no Exército de Libertação Popular, fruto da catástrofe econômica do Grande Salto Adiante, a classe trabalhadora chinesa apareceu como um dos atores importantes na Revolução Cultural. Mao precisava restaurar seu prestígio, abalado pela aventura econômica que aniquilou pela fome milhões de camponeses ao acelerar a coletivização desordenada do campo (ao estilo de Stálin e Bukharin, em 1928), a partir de 1958, em que os camponeses que não cumprissem as metas extraordinárias de produção (mesmo com meios de produção antedatados e arcaicos) eram acusados de sabotagem. Contra si, desenhava-se uma fração no Partido Comunista Chinês, que alentava uma orientação oposta à de Mao em relação às reformas necessárias no país. À cabeça dessa oposição, estavam Liu Shaoqi e e o próprio Deng Xiaoping. A disputa entre as frações se deu nas ruas de Xangai, envolvendo milhões de pessoas. Nesse movimento contraditório, abria-se uma janela de oportunidade para atingir um setor da burocracia de Pequim, para o qual foi montada a Guarda Vermelha composta especialmente por estudantes, e em menor medida por trabalhadores. As turbulências políticas poderiam ter saído ao controle de Mao; não se podia descartar que, diante de certas condições, desenvolvesse um repúdio generalizado ao conjunto da burocracia estatal, um espectro que rondou as cabeças do Politburo durante a Comuna de Xangai. Mao decidiu por fim violento ao experimento, uma vez enfraquecida a fração rival; o Exército de Libertação Popular restabeleceu o controle, em primeiro lugar nas fábricas. A disciplina de ferro que se fez desabar sobre os trabalhadores chineses conseguiu estabilizar politicamente o país mediante a reunificação provisória da direção do Partido Comunista. Um dos resultados foi a transferência da vanguarda desses combates em Xangai, e de cidades como Cantão, Nanjing, Tianjin, para os trabalhos forçados no campo: dezessete milhões de jovens trabalhadores urbanos foram enviados às zonas rurais para recompor a produção de alimentos, entre 1964 e 1978.

Os outros dois feitos marcantes do proletariado chinês na vida nacional ocorreram em 1979 e 1989. No primeiro caso, a morte de Mao Tsé-Tung e o processo de sucessão reabilitou as disputas fracionais no interior do Partido Comunista entre 1977-78. Deng Xiaoping, depois de retornar do exílio, buscou assenhorear-se da máquina partidária contra o sucessor escolhido por Mao, Hua Guofeng. Batalhando por uma orientação mais acelerada para as reformas pró-capitalistas que seus adversários internos, Deng recorreu a uma espécie de segundo Movimento das Cem Flores, alentando o questionamento da fração ligada a Guofeng. Se ouvimos as observações do general prussiano oitocentista Carl von Clausewitz, apercebemo-nos que objetivos pequenos são capazes de mobilizar apenas reduzidas forças morais. As atividades operárias subsequentes foram, assim, modestas, ainda que as mais relevantes desde 1966, em função da repressão política do governo central. Já em 1989, mais robustos foram os protestos dos trabalhadores – encabeçados pelos estudantes – contra a inflação rompante no país, e sob a inspiração do questionamento à burocracia stalinista na Polônia (que, na ausência de uma força política que fosse simultaneamente antiburocrática e anti-imperialista, permitiu que Lech Walesa e o Solidarność, com o apoio do Papa João Paulo II e de Washington, restaurasse o capitalismo polonês), foram às ruas para melhorar suas condições de vida. Foram reprimidos impiedosamente, evento que ficou conhecido como Massacre da Praça Tiananmen.

A modo de (in)conclusão

Sobre esse breve percurso da atividade operária na China do século XX, vemos que o proletariado chinês sempre esteve envolvido com os fluxos e refluxos da situação internacional, atuando no diversificado terreno que a luta de classes promovia, tanto o da propriedade privada estrangeira, como o da propriedade estatal comandada pela burocracia do Partido Comunista. Tendo a maioria de seus direitos sociais restritos durante o século XX, limitada a zero a liberdade de organização sindical e o direito de greve, o proletariado chinês foi forjado no molde “heroico”, para usar dos termos de Giovanni Arrighi.

Os movimentos dos trabalhadores na China tendiam a atingir seus picos nos momentos decisivos de conflito político nacional, e foram tanto produto como causa dos resultados políticos e das crises econômicas. Mas em contraste com o período de 1922-27, quando os trabalhadores estavam no centro do conflito, nos períodos de insurgências operárias anteriores e posteriores, os atores dominantes foram os estudantes, os intelectuais, os camponeses, ou as elites políticas e militares do Partido Comunista e do Exército de Libertação Popular. Em suma, encontramos um momento epocal (1925-27), um segundo levante importante (1947-49) e cinco distúrbios menores da classe operária chinesa (1935-36, 1940, 1957, 1979, 1989) em sua história moderna. A mais poderosa manifestação do poder da classe operária veio na esteira da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique; a segunda manifestação, surgido como conseqüência da Segunda Guerra Mundial, coincidiu com o último estágio da guerra civil que culminou com a vitória do comunismo. No caso da China, observamos conflitos sociais em que as insurgências operárias são parte de um padrão revolucionário mais amplo. No curso da República Popular, protestos operários surgiram no Movimento das Cem Flores de 1957, em 1967 no auge da Revolução Cultural, em 1979 durante o Movimento da Muralha Democrática e a ascensão de Deng Xiaoping, e no movimento de 1989. Em todos esses momentos, profundas divisões políticas internas, usualmente intensificadas por crises internacionais, abriram caminho para gestas operárias em grande escala nas principais cidades da China.

Isso é importante quando se leva em conta a ascensão da China no sistema mundial de Estados, e seu lugar como potência. Os trabalhadores chineses precisam atuar hoje em condições de chauvinismo burocrático incentivado pelo PCCh, e com as inúmeras contradições que, em sua unidade, combinam maiúsculos traços de dependência e atraso com importantes desenvolvimentos tecnológico-científicos que lhe permitem desafiar grandes potências imperialistas como os Estados Unidos em determinados terrenos. Dentro disso, a China parece constituir-se como um Estado capitalista dependente, com traços imperialistas. Essa fórmula descritiva tem a vantagem de mostrar melhor o que é a China atualmente, pondo em relevo suas características contraditórias, sua dependência e seus laivos imperialistas. É contra esse inimigo interno, a burguesia organizada no PCCh, que se encontra numa disputa estrutural como pontência ascendente diante da maior potência imperialista do mundo, que os trabalhadores chineses precisam abrir caminho para uma política independente da burocracia pós-maoísta e do imperialismo mundial.

Mais do que a organização de forma compreensiva de seus combates, a história do proletariado chinês está impregnado de heroísmo em combate, e especialmente da possibilidade de vencer. Não apenas vencer internamente contra a burguesia nacional, mas de expandir internacionalmente seu triunfo revolucionário, com a classe trabalhadora chinesa levando uma grande estratégia comunista que deveras mereça o nome, como defendia Trótski. Isso ainda não se deu. No século XX, essa perspectiva foi bloqueada pelo stalinismo, em primeiro lugar, e por seu sucedâneo, o maoísmo, a partir de 1949, tradição brutal da qual o atual plenipotenciário Xi Jinping é tributário. Mas a última palavra não foi dada para o gigante chinês, e não parece que o turbilhão se limitará às renovadas refregas do nacionalismo chinês por suas fronteiras asiáticas.

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Referências Bibliográficas

Perry, Elizabeth. Shanghai on Strike: The Politics of Chinese Labor. California: Stanford University Press, 1993.

Selden, Mark. Labor Unrest in China, 1831-1990. Review (Fernand Braudel Center), Vol. 18, No. 1, Labor Unrest in the World-Economy, 1870–1990 (Winter, 1995), pp. 69-86.

Honig, Emily. Sisters and Strangers: Women in the Shanghai Cotton Mills, 1911-1949. Stanford: California, 1986.


. The Politics of Prejudice: Subei People in Republican Shanghai. Modern China 15, no.3, 1989, pp. 259-62.

Hershatter, Gail. The Workers of Tianjin, 1900-1949. California: Stanford University Press, 1986.

 
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