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POESIA
Torquato Neto: Paixão, Tropicália, Marginália e Morte
Hélio

Meu objetivo aqui é apresentar alguns trabalhos do poeta piauiense Torquato Neto (1944-1972) ligados à Tropicália (Tropicalismo) no final dos anos 1960 e à chamada arte marginal dos anos 1970. Um pouco do Anjo Torto, poeta, compositor, jornalista, ator e agitador cultural que pensou a Geléia Geral Brasileira e viveu intensamente a contracultura num pais regido por uma Ditadura Civil-Militar (1964-1985).

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quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
lets play that
até o fim

No embalo psicodélico e também comercial da contracultura, movimento de transgressão cultural e comportamental que influenciou jovens e artistas em todo o mundo nos anos 1960 e 1970, a gravadora Philips lançou em maio de 1968 o álbum Gilberto Gil, o segundo de estúdio do cantor e compositor baiano, tido como um dos álbuns fundamentais do Tropicalismo, nome dado pelo jornalismo oficial a uma série de manifestações culturais espontâneas surgidas durante o ano de 1967. Torquato Neto assina junto com Gil as canções Domingou e Marginália II.

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Aqui, o terceiro mundo
Pede a benção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti

Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte

A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo

(Marginália II - Gilberto Gil e Torquato Neto)

Existe todo um debate sobre o papel que o tropicalismo cumpriu no seu curto período de existência (do III Festival da Record em 1967 à prisão de Gil e Caetano em dezembro de 1968). Alienado ou transgressor? Rebeldia estética ou mais um produto pequeno burguês da indústria cultural? Uma válvula de escape frente ao Terror de Estado ou um grito rebelde que escandalizou a direita e os stalinistas do Partido Comunista Brasileiro (PCB)?

Em Marginália II, hoje, uma canção tropicalista quase nunca divulgada pelos grandes meios de comunicação, Gil e Torquato apresentam uma crônica antropofágica das condições de vida no cotidiano violento das grandes cidades sob as botas dos generais.

O Brasil da fome e do medo cantado em Marginália II não é a terra romântica do poeta Gonçalves Dias com suas palmeiras e sabiá. No Brasil da Margem não há romântismo e no canguote do cidadão sopra o vento forte principalmente da morte. Brasil precário. Brasil fundo do poço. A ordem e o progresso da bandeira esconde o pão seco de cada dia. Aqui é o Terceiro Mundo. O fim do mundo. Yes, nós temos banana e pau de arara.

Em julho de 1968, a Philips lança o álbum conceito Tropicália ou Panis et Circensis, obra coletiva de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes, Tom Zé, Capinam, Torquato Neto e o maestro Rogério Duprat. Torquato assina com Gil as músicas Mamãe Coragem e Geléia Geral.

Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplendente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

"A alegria é a prova dos nove"
E a tristeza é o teu porto seguro
Minha terra é onde o Sol é mais limpo
Em Mangueira é onde o Samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem dança não fala
Assiste a tudo e se cala
As relíquias do Brasil
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Super poder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Brutalidade, jardim

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz: "Bom dia"
E outra moça também, Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Faz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento

E bumba iê iê boi
Ano que vem, mês que foi
E bumba iê iê iê
É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança meu boi
É a mesma dança meu boi

Geléia Geral, canção-manifesto do Tropicalismo, expressa, assim como Alegria, alegria de Caetano Veloso, as propostas, o espírito e as contradições deste movimento artístico que, segundo os seus criadores é uma forma antropofágica de relação com a cultura.

Geleia Geral é uma superposição de Bumba Meu Boi, Jovem Guarda, Oswald de Andrade, Frank Sinatra, Jornal do Brasil, Canecão, santo barroco baiano, miss Brasil, carnaval, TV e carne seca num caleidoscópio psicodélico. Geléia Geral de Torquato e Gil é cinema e candomblé, bossa nova e comunicação de massa. Bananas ao vento. Bananas em Transe. Araras e Chacrinha. Aqui! Oba! Here Baby. A Geléia Geral. Le Soliel Tropical. Aquela canção do Roberto. Pow! Singela explosão.

Segundo Paulo Andrade em Torquato: Uma poética de estilhaços, o poeta piauiense foi uma importante voz intelectual do tropicalismo. Conhecedor da obra do escritor Oswald de Andrade, Torquato revalorizou o modernista antropófago no roteiro que escreveu com o poeta Capinam para o programa de TV Vida, Paixão e Banana do Tropicalismo, que seria dirigido pelo diretor de teatro José Celso Martinez Correa, com produção de Roberto Palmari e direção musical de Rogério Duprat.

No roteiro original assinado por Torquato e Capinam, Caetano e Gil dizem em off: Somos compositores. Estamos aqui para realizar a primeira e última manifestação conjunta de tudo que no ano de 67 até hoje recebeu o nome de tropicalismo foi uma tentativa crítica da cultura brasileira através da utilização, como matéria de todas as tendências e expressão dessa cultura. Para demonstrar a necessidade de criação de uma cultura absolutamente nova, por isso o tropicalismo é uma fase crítica que se esgota quando cumpre o seu papel. Este programa pretende mostrar porque sentimos essa necessidade, quando ela nos surgiu e de modo que daremos por concluída uma boa parte de nosso trabalho. O tropicalismo está no fim. E apenas demos os primeiros passos de uma longa travessia.

O programa seria apresentado pela Rede Globo em 1968, mas o roteiro original não foi aprovado pelo diretor de eventos institucionais da empresa patrocinadora, a Rhodia. A Globo adiou várias vezes a exibição e na noite de 23 de agosto de 1968, foi registrado o piloto do programa na boate Som de Cristal. O que foi finalmente ao ar, em setembro, levou o título Direito de Nascer e Morrer do Tropicalismo.

Para garantir os interesses imperialistas no Brasil é decretado no dia 13 de dezembro de 1968 o Ato Institucional n 5, o AI- 5. Quinto decreto da Ditadura Civil Militar que deu plenos poderes ao então Presidente Arthur da Costa e Silva para fechar o Congresso Nacional, interferir nos Municípios e Estados, cassar direitos, prender, torturar e matar trabalhadores, políticos opositores ao regime ditatorial, militantes de esquerda.

Em 03 de dezembro de 1968, dez dias antes do decreto do AI-5, Torquato embarcou com o artista carioca Hélio Oiticica para Londres.

A barra pesou. O AI- 5 significou uma intensificação do regime militar. A partir deste decreto todo mundo é suspeito. Nas delegacias e nos quartéis a tortura foi instituicionalizada para preservar a ordem, a segurança, a tranquilidade e o desenvolvimento econômico e cultural do capitalismo.

A censura foi declarada. Agora a arte tem que passar pela salinha do censor caso queira ir para a rua. Segundo a seção meteorológica do Jornal do Brasil no dia seguinte a decretação do AI-5 a temperatura era sufocante. O ar estava irrespirável e o país era varrido por fortes ventos.

Torquato, síntese dos abismos que definiram a contracultura no Brasil nos anos 1960 e 1970, manteve-se atento a situação política no país e em Londres pode se aproximar de intelectuais e artistas da cena cultural inglesa. Em maio de 1969 Torquato mudou-se para Paris. Apesar dos receios sobre o seu retorno, após uma viagem para Espanha e Portugal, embarca para o Brasil em dezembro de 1969.

Abril de 1971, Torquato escreve à Hélio Oiticica as dificuldades que encontrou para conseguir trabalho e dinheiro na volta ao Rio de Janeiro. Depois que cheguei no Rio, tive de sair por aí feito maluco atrás de alguma coisa pra fazer, e logo em seguida tive de fazer essas coisas: produção de discos de novela pra Globo, música para novela, músicas para vender e garantir qualquer dinheiro - enfim, um negócio chato e cansativissimo que eu tinha de fazer.

Compôs com Nonato Buzar a canção O homem que devia morrer, tema de abertura da novela homônima da Rede Globo e com Roberto Menescal compôs Tudo Muito Azul, que fez parte da trilha sonora da novela das 7 Minha Doce Namorada, também da Globo.

Folhas de papel picado
Cartas que não recebi
Minha doce namorada
Quase hein que eu compreendi

Longas noites acordada
Tantas que já me esqueci
E agora é bom
Que bom ficar com você
Toda vida
Tudo muito azul
Bom, que bom ficar com você
Toda vida
Tudo muito azul

Nada de guardar segredo
De ficar com medo
De perder você

Nunca mais sem tua vida
Sem você não tem porque

E agora é bom
Que bom ficar com ok você
Toda vida
Tudo muito azul

Tudo muito azul
Tudo muito azul
Tudo muito azul

À convite do cineasta Ivan Cardoso, Torquato interpreta o vampiro Nosferatu numa versão antropofágica e tropical. Filmado em super 8, este curta-metragem é considerado um marco do gênero Terrir, termo criado pelo poeta Haroldo de Campos, para identificar os filmes que se utilizavam de elementos clássicos do terror mesclados com erotismo e humor. Numa versão marginal ensolarada Nosferatu anda pelas ruas do Rio de Janeiro sedento por sangue, experimentação.

Em agosto de 1971 começa a assinar a coluna diária Geléia Geral no caderno de cultura do jornal Última Hora. Geléia Geral, nos seus oito meses de existência, de agosto de 1971 até março de 1972, foi um espaço de resistência, uma barricada contracultural no país dos generais assassinos, agora sob o comando de Emilio Garrastazu Médici.

Uma coluna underground, polêmica e iconoclasta que abordava questões do dia a dia, eventos culturais, considerações sobre música, televisão, cinema e teatro. Nesta coluna Torquato criticou a censura, o moralismo tedioso das classes médias, a indústria fonográfica, os festivais da moda e aproveitou este espaço para denunciar a adaptação do cinema novo às verbas governamentais para a produção de filmes históricos, particularmente os produzidos pelos cineastas Gustavo Dahl e Cacá Diegues.

Pessoal e Intransferível (terça-feira, 14 de junho de 1971).
Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada nos bolsos e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino e maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo dos braços. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair sua poesia, que, pensando bem, não é nada se você está sempre pronto a temer tudo, menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias herdeiro da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar.
Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusao.

Pouco antes de morrer, Torquato reuniu um grupo de artistas da pesada na revista experimental Navilouca ou Almanaque dos Aqualoucos. Assim como as revistas Flor do Mal e Presença, a Navilouca faz parte das publicações que divulgavam a produção contra cultural ou marginal dos anos 1970.

Concebida e organizada por Torquato e pelo poeta baiano Waly Salomão, com inspiração na Stultifera Navis, embarcação que na Idade Média circundava a costa européia recolhendo os loucos, os vagabundos e outros desajustados, Navilouca reuniu os loucos desajustados dos anos 1970, os marginais de novas sensibilidades empenhados num trabalho coletivo de experimentação radical de linguagens. Só os incomunicáveis que se comunicam.

A revista contou com trabalhos de Décio Pignatari, Rogério Duarte, Augusto e Haroldo de Campos, Jorge Salomão, Duda Machado, Hélio Oiticica, Caetano Veloso, Chacal, Lígia Clark, Stephen Berg, Luís Otávio Pimentel, Oscar Ramos, Luciano Figueiredo e Ivan Cardoso.

Monumento à Vaia. Viva Vaia Vaia Viva. Riso clandestino. O sangue da boca do lixo. O reflexo do mendigo num edifício em Manhattan. Environumental. Alfavela. Alfaville. Estraçalhar as neuras pelas vontades do corpo. Casa Vodum. Aqui e Ali. Ossadas. O corpo é cicratiz da mente. O teu cabelo tem cheiro de avião. Colapso. Enigmático. Fim da Febre de Prêmios & Pensões dum Poeta sem LLAAUURREEAASS.

Torquato deu fuga e não conseguiu ver a revista publicada. Na madrugada de 10 de novembro de 1972, Torquato cometeu suicídio em um apartamento no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, onde vivia com Ana Maria Silva e o filho Thiago de três anos.

 
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