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MUNDO OPERÁRIO
Dia do Gari: Não tem arrego! A greve de 2014 e o potencial da luta dos trabalhadores essenciais
Juan Chirioca
RIO DE JANEIRO
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Momentos especiais vivemos hoje tanto no Brasil quanto no mundo. Um ano atrás ninguém afirmaria que um vírus abalaria toda a dinâmica econômica mundial, acelerando as tendências de aprofundamento da crise que já se colocavam no cenário internacional. Quando vemos no Brasil a consolidação do golpe institucional, a degradação do regime, a podridão das instituições e o ascenso dos diversos bonapartismos, mergulhando na lama da burguesia brasileira na crise do coronavirus, dedicar os parágrafos embaixo a analisar uma luta operária que aconteceu faz 6 anos pode parecer para alguns desavisados um esforço fora de lugar: muito olhar pro passado, “para que olhar para trás?” como disse Regina Duarte naquela nefasta e vergonhosa entrevista.

Trotski alertava os perigos de considerar “os grandes combates do proletariado só como acontecimentos objetivos, como expressão da ‘crise geral do capitalismo e não como a experiência estratégica do proletariado’”. Como marxistas a análise científica das experiências históricas da classe trabalhadora são legado vivo e aprendizados fundamentais para enfrentar os desafios que a realidade nos coloca hoje na pior crise sanitária da história da humanidade que no Brasil é gerido por um governo da ultra direita mais tosca terraplanista e obscurantista que o mundo já viu desde o começo da crise em 2008.

Esse artigo tem como objetivo tirar lições de uma das experiências do movimento operário brasileiro mais recentes. Uma experiência vitoriosa e esmagadora e pensar quais rumos coloca para a esquerda brasileira nos dias de hoje que em meio dessa pandemia, a classe trabalhadora do Brasil sofre demissões em massa e a retirada de direitos trabalhistas enquanto as suas principais organizações, seus sindicatos e as centrais sindicais viram as costas para eles, como essas organizações assistem impotentes como a maquinária do bolsonarismo deixa na miséria os trabalhadores, os pobres, o povo negro e todos os setores oprimidos da sociedade.

Muitas vezes na história, a juventude veio ser a caixa de ressonância da classe trabalhadora. Livres do peso da experiência das derrotas do passado trazem uma onda de energia renovada que pode incendiar as consciências dos diversos setores de trabalhadores. A greve dos garis esteve longe de ser um raio em céu sereno. 8 meses antes explodia nas principais cidades do Brasil o que foi conhecido como as jornadas ou manifestações de junho que acabou com décadas de passividade do movimento de massas muito bem construída pelo projeto de conciliação de classes do petismo encabeçado por Lula. Foram enormes manifestações que reuniram milhares ou até 1 milhão de pessoas como no Rio de Janeiro no dia 20 de junho, manifestação que foi fortemente reprimida pela polícia militar do então governador do Rio, Sérgio Cabral. Uma coisa estava clara com as manifestações de junho: O pacto social construído por Lula e pelo PT começava quebrar. As massas expressaram nas ruas que não confiavam mais nas promessas da melhora gradual da vida das pessoas não tinham seu reflexo na vida real e que muito pelo contrário os anos de governo do suposto partido da classe trabalhadora trouxe um aumento da precarização e terceirização do trabalho no Brasil. Nada comparado ao nível de ataques implementados na nefasta gestão de Bolsonaro na atualidade mas também muito distante das esperanças, necessidades e aspirações da população que levaram Lula e o PT a conquistar a administração do estado burguês por 13 anos. De aliança em aliança com setores do centrão e mesmo da direita, os governos do PT viram como as massas exploradas tomavam as ruas do Brasil em protesta por 30 centavos de aumento, mas também contra a precarização da vida, do trabalho, dos serviços públicos.

A falta de direção do movimento de massas, a enorme espontaneidade, um programa confuso e a miséria estratégica que os partidos da esquerda brasileira tiveram frente ao movimento e também o fato da classe trabalhadora não ter entrado em cena como sujeito e com seus métodos durante o processo fez com que aos poucos as manifestações refluíssem e fossem capitalizadas pela direita fortalecendo os setores que no seu momento foram aliados do PT e que posteriormente organizaram o golpe institucional de 2016.

A intelectualidade petista interpretou de forma interessada as manifestações de junho como movimentações orquestradas pela direita para conspirar contra o governo do PT, mas nada mais distante da realidade. Inclusive esses argumentos foram utilizados pelo petismo para, em meio a crise política pela qual passava, demonizar o caráter espontâneo daquele e de qualquer processo do movimento de massas. Elemento que na verdade atenta contra o próprio DNA petista que se caracterizou desde seu começo e nasceu se fortalecendo a partir de ter controlado o movimento de massas e de trabalhadores. Num sentido parecido discute Trotski quando analisa a França em 1922 e a tática da frente única, afirmando que o reformismo se fortalece debilitando a ideia da frente única e por tanto debilitando o movimento dos trabalhadores.

Lutas como a demanda por justiça e pela aparição do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza ou a forte greve de professores ainda na esteira das manifestações de junho no Rio de Janeiro expressam, junto com as demandas por mais saúde e mais educação, o caráter progressista das jornadas de junho de 2013. Ainda que como já colocamos anteriormente esses elementos progressistas em termos absolutos não foram o fator que permaneceu na política nacional de conjunto. E foi esse mesmo caráter progressista expressado na renovada vitalidade do protesto social como uma forma válida de obter melhorias na vida (em contraste com a via passiva e gradual de avanços oferecida pelo PT que já se mostrava falida) que mostrou o caminho e preparou as bases para a explosiva greve dos trabalhadores do asseio da COMLURB no Rio de Janeiro.

Como a pandemia colocou em total evidência em 2020, os trabalhadores de setores essenciais desenvolvem seu trabalho em péssimas condições laborais. Hoje os garis devem trabalhar sem acesso a todo o equipamento de proteção para enfrentar o coronavirus e manter a cidade limpa. Não foi só 2013, mas as péssimas condições de trabalho sofridas pelos garis que motivaram a articulação da greve.
Entrando já na greve como tal, poderíamos começar pelo final. Os garis em luta conquistaram 36% de aumento salarial, aumento no ticket refeição e outras reivindicações menores. Mas resumindo, eles impuseram uma derrota esmagadora à empresa e à prefeitura. Foram 8 dias de greve com enfrentamento constante contra as forças do estado burguês, da prefeitura e da empresa. Pese a ter todos esses atores fazendo de tudo para derrotar a luta dos trabalhadores.

A unidade da categoria foi fundamental. A insatisfação crescia nos trabalhadores com péssimas condições de trabalho, falta de equipamento, equipamentos vencidos, perseguição e assédio constante por parte da gerência, baixos salários. Essa insatisfação foi se organizando num movimento sem lideranças claras e através de grupos no facebook foram sendo coordenadas ações iniciais de trabalhadores da categoria de diversas gerências nos dias finais do mês de fevereiro com passeatas no centro da cidade e na Tijuca.

Mas e o sindicato?

O sindicato dos garis (SIEMACO) que agrupa, na verdade, a todos os trabalhadores de empresas de asseio da cidade do Rio de Janeiro, já estava fortemente pressionado pela mobilização dos trabalhadores e tentando descomprimir a movimentação argumentando que as medidas grevistas não eram possíveis no momento, que precisava aguardar 72 horas e todo tipo de malabares para impedir a paralisação dos garis. O SIEMACO é forçado a convocar uma reunião da categoria onde anuncia que foi assinado o acordo com a empresa, de costas para os trabalhadores não tendo decidido isso em assembleia. Os garis mobilizados desconheceram o acordo criticando a burocracia sindical por proceder sem debater com os trabalhadores. A base já tinha decidido e só havia uma possibilidade. A greve.

O sindicato recusava-se. Isso acendeu o movimento grevista que por quase 12 horas se aglomerou na porta da sede do sindicato, aumentando a pressão sobre a burocracia ao ponto de obriga-los a assinar documento que decretava o início da greve. Nessa sexta-feira abria-se oficialmente o carnaval. O prefeito Eduardo Paes fazia a entrega das chaves da cidade ao Rei Momo. Mal imaginava o pemedebista que quem assumiria o controle da cidade nos 8 dias seguintes seriam os garis da COMLURB.

No dia seguinte em cada gerência se organizaram piquetes convencendo mais trabalhadores a se juntarem ao movimento grevista. Lá foram surpreendidos por um novo documento assinado pelo sindicato que negava a declaração de greve do dia anterior, mas o documento não significava nada frente à enorme força e decisão dos garis. Os que não se convenceram na sexta-feira de que o sindicato estava do outro lado da barricada e atuava para derrotar a categoria se convenceram na manhã do dia 1º de março.

Essa forma em que atuou o sindicato naquela greve não é a exceção e hoje em dia vemos na maioria do sindicatos do Brasil e do mundo atuarem como contenção da insatisfação e da energia transformadora dos trabalhadores. Frente a pandemia a passividade e a falta total de resposta frente as misérias que estão sendo impostas à classe trabalhadora chega ser criminosa. A localização e a ação que vemos hoje desenvolver pela maioria dos sindicatos é fruto da ação e reação no campo da luta de classes no século XX e foi a resposta que a burguesia deu frente à vitória da revolução russa e frente ao crescimento das organizações operárias, transformando as estruturas políticas da sua dominação sendo uma característica da época imperialista o processo de incorporação dos sindicatos ao aparato estatal burguês e também sua burocratização interna. O fenômeno foi identificado corretamente tanto por Gramsci como por Trotski. Um Estado “baseado em algo a mais” que o próprio aparato estatal. O fenômeno sindical que “pelo fato de se unir [ao estado] modificam a estrutura política da sociedade”.

Com essa ampliação do estado burguês, a classe capitalista “não se limita a buscar o consenso desde fora, de forma esporádica, mas o organiza, educando-o” (FROSINI, FABIO 2010). Esse processo modificou o caráter dos sindicatos transformando-os no novo espaço onde a burguesia combate o movimento dos trabalhadores.

Corretamente Trotski identifica o destino dos sindicatos em nossa época reconhecendo o fim deles como organizações neutrais, podendo bem servir como ferramentas do capitalismo onde as burocracias sindicais são verdadeiros pilares da dominação imperialista ou o seu avesso como ferramentas do movimento revolucionário dos trabalhadores.

Obviamente, essa integração dos sindicatos no estado burguês não se dá diretamente transformando as burocracias operárias em funcionários públicos oficiais mas os seus interesses materiais à frente dos sindicatos se baseiam no controle dos trabalhadores mantendo suas forças contidas. Greves selvagens como a que analisamos hoje atropelaram completamente todas essas tentativas de controle do sindicato colocando em questionamento o papel das burocracias do ponto de vista dos trabalhadores, evidenciando seu caráter de polícia política e contrário aos interesses dos trabalhadores.

Isto se evidenciou novamente no decorrer da greve. O sindicato havia perdido o controle da categoria e frente à força do movimento grevista foi obrigado a assumir as posições dos garis em luta, contra a sua própria vontade.

A greve de conjunto não foi um movimento aventureiro. Os garis analisaram a situação a cada passo que eles avançavam. Conscientes e confiantes da sua força, da sua organização, do apoio da população. Isso começando pela feliz coincidência da data do dissidio cair na semana do carnaval em março de 2014. A luta dos trabalhadores também precisa de sorte. Os garis a tiveram e a aproveitaram a seu favor conscientemente. Organizando os piquetes nas gerencias que já estavam paralisadas os garis foram expandindo o movimento, mapeando as gerências que continuavam trabalhando e organizando delegações de trabalhadores que iam nessas gerências e convenciam os trabalhadores a também paralisar.

A empresa tentou desmontar a greve por todos os meios possíveis, afirmando que era bagunça de uma minoria de 300 garis (que para desgraça de Eduardo Paes e da prefeitura acabou relacionando os garis e toda a greve ao filme dos guerreiros espartanos) demitindo os trabalhadores por SMS, enviando a polícia amedrontar os trabalhadores nos próprios endereços das suas residências. A justiça declarou a greve como ilegal. Mas todas essas tentativas só fortaleceram o movimento de trabalhadores que estavam decididos a mudar a sua realidade.

A empresa e a prefeitura cada vez mais pressionados pela categoria e por uma cidade que em pleno carnaval acumulava montanhas de lixo que mesmo com a contratação de fura greves continuava fortemente nas ruas, mudando a paisagem da ‘cidade maravilhosa’. No terceiro dia de greve abriram-se as negociações com o movimento grevista. Aqui se expressou outra das fortalezas da emblemática greve dos garis de 2014. Frente a abertura da empresa a negociações formou-se uma comissão de 10 trabalhadores para representar a categoria. Já no primeiro dia a comissão se dividiu entre os que queriam aceitar o oferecido pela prefeitura (que era muito aquém do demandado pelos garis) e aqueles que queriam ir por mais. Mas a categoria consciente das suas próprias forças decidiu continuar avançando. Elegeu novos representantes para conformar a comissão e manter as demandas da categoria nas negociações com a Comlurb. Esse processo de renovação da comissão aconteceu repetidas vezes ao longo dos 8 dias de greve.

Esse elemento de democracia operária foi um diferencial dessa processo de luta dos garis que contrasta com a maioria dos processos de luta operária onde quem controla os movimentos da greve é o sindicato atuando como um corpo separado se colocando acima do conjunto dos trabalhadores. Esse elemento de democracia operária, em contraste com a democracia burguesa como é hoje que restringe o ato democrático a um mero voto cada certa quantidade de anos, que no caso do Brasil depois do golpe tem sido gravemente afetada, e que busca separar as massas do governo do Estado. Essa pequena experiência da greve dos garis que coloca as massas decidindo cada passo dessa luta se acontecesse numa escala e proporções maiores pode virar a base do poder da classe operária dirigindo os rumos da economia e da sociedade. Os sovietes: órgãos da insurreição e a base da ditadura do proletariado. Da mesma forma que os garis trocaram seus representantes da comissão de negociação cada vez que alguns dos integrantes ia contra os interesses do movimento grevista a história da classe trabalhadora mostrou que essa é uma das fortalezas da organização dos trabalhadores, e assim o identificou Marx na Comuna de Paris onde os delegados eram revogáveis a qualquer momento se a base assim o decidia.

O trabalho dos garis é tão essencial e estratégico que a cidade se paralisa se o lixo não for recolhido. A pesar da paralisação das atividades de asseio dos garis na cidade afetar fortemente a vida da população carioca, estes viram que as demandas dos garis eram corretas, que pese à legalidade burguesa considerar a greve como ilegal, era um movimento legitimo. Os garis conquistaram o apoio da população contra a empresa fortalecendo ainda mais o movimento. Junto a isto o apoio e a solidariedade de trabalhadores de outras categorias de trabalhadores como petroleiros, metroviários de São Paulo, professores e setores de estudantes que se organizaram para apoiar e lutar junto aos garis por suas demandas foi mais um pilar de apoio da luta dos garis.

Isto mostra como os trabalhadores de setores estratégicos podem movimentar outros setores de trabalhadores e do povo pobre e setores oprimidos. Neste caso conseguiram o apoio para suas próprias demandas mas tem o potencial de liderar lutas por demandas gerais da sociedade. Com todas suas limitações a greve dos garis mostra como os trabalhadores podem se colocar numa posição hegemônica na sociedade sendo a linha de frente e oferecendo um programa de saída para as misérias que o capitalismo oferece hoje como o único horizonte possível.
Esses elementos são fundamentais hoje nos debates que a esquerda brasileira deveria estar fazendo num momento em que a crise aumenta e os custos dela está sendo colocada toda na conta da classe trabalhadora. Frente ao Bolsonarismo a estratégia de conciliação petista mostrou sua falência mais absoluta e criminosa, deixando a classe trabalhadora exposta frente aos ataques da burguesia brasileira e do imperialismo. Os métodos parlamentares nessa situação onde os atores que não são eleitos pelo voto popular como os militares o STF se fortalecem, se mostram cada vez mais impotentes. A classe trabalhadora é a única classe essencial que pode dar uma saída a essa crise. Hoje é ela que em meio ao colapso dos sistemas de saúde público consegue minimamente enfrentar a pandemia. Se a classe trabalhadora está chamada a assumir a sua tarefa histórica, deve o fazer com seus próprios métodos: os da luta d classes. Os garis não se restringiram pelos limites da legalidade e da institucionalidade burguesa questões que a esquerda brasileira tem se adaptado totalmente, confiando cegamente na lei e nas instituições que hoje nos atacam e nos deixam morrer na crise do coronavirus.

A palavra de ordem mais emblemática da luta dos garis de 2014 “Não tem arrego” foi inspiração para diversas outras greves que aconteceram posteriormente. Expressa a confiança nas próprias forças, nos métodos da própria classe trabalhadora, determinação e ambição. Todos estes elementos que as novas forças políticas de esquerda que venham surgir dessa profunda crise no Brasil devem ter como elementos fundacionais: Confiar na classe trabalhadora, confiar na auto organização, nos métodos e nas energias das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. A greve dos garis foi vitoriosa porque os trabalhadores tomaram consciência do papel que cumprem na sociedade, como produtores de tudo que existe ideia que é a base do movimento que os pode levar a gerir a sociedade de outra forma. Hoje, um dia depois do dia do Gari, lembramos e homenageamos essa greve histórica onde por 8 dias, a cidade foi dos trabalhadores.

 
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