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ECONOMIA INTERNACIONAL
Crise econômica mundial: o lugar das dívidas e o dia seguinte
Paula Bach
Buenos Aires

A atual convulsão econômica mundial - que a esta altura já se mostra a pior desde a Grande Depressão - se manifesta como um choque entre, essencialmente, duas forças. A primeira: a pandemia de COVID-19. A segunda força: a debilidade herdada das características da recuperação pós-crise 2008/2009.

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A atual convulsão econômica mundial – que a essa altura já é a mais grave desde a Grande Depressão – se manifesta como um choque entre, essencialmente, duas forças. A primeira: a pandemia de COVID-19. Um fato estritamente “exógeno” à economia ainda que não da maneira específica na qual o capitalismo desenvolve suas forças produtivas. Nos referimos ao desprezo pela natureza característico da gestão do agronegócio desde décadas, ao persistente processo de destruição da saúde pública típico do neoliberalismo, ao desdém pela investigação epidemiológica e os ouvidos fechados diante de alertas sobre possíveis epidemias de novos coronavírus com potencial de propagação entre os humanos [1]. A segunda força: a debilidade advinda das características da recuperação pós-crise 2008/2009. Uma fragilidade que vem expressando desde há mais de dez anos em dois grupos de fatores que , como veremos, são complementares. Por um lado, o apagado crescimento do comércio mundial – uma tendência muito anterior as medidas protecionistas de Trump -, e do investimento em capital fixo e o da produtividade do trabalho – apesar do desenvolvimento impactante das novas tecnologias. E, por outro lado, a grande ascensão das dívidas tanto privadas quanto públicas.

A pandemia, por sua vez, atua como uma sorte de substância paralisante que se estende por canais estabelecidos pela própria globalização, quase como uma “vingança do destino”. A falta de preparação sanitária exigiu a paralisação da economia – e em particular o fluxo internacional de pessoas e produtos – por medo de um colapso nos sistemas de saúde, uma catástrofe humanitária e a perda do controle por parte dos Estados. A paralisação sacode o conjunto das economias, porém golpeia com particular virulência os setores mais internacionalizados: as cadeias globais de valor – modalidade na qual se destacam particularmente as empresas eletrônicas, automotivas e químicas – por um lado, e os setores de serviços tais como o turismo, a aviação, a hotelaria, a gastronomia, por outro. O quase congelamento da economia repercute, naturalmente, sobre o setor petroleiro, vítima por sua vez da aguda competência internacional entre Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos, em particular.

No que foi dito até agora – a modo de introdução – ilustra parte da dinâmica presente porém, em um sentido, já é passado. O que nos interessa particularmente tratar aqui é a maneira na qual os pontos críticos mencionados se encontram entrelaçados e entram para interagir com as debilidades herdadas pela outra “força”, quer dizer, pelas condições do pós-Lehman [2]. Dizendo de outra forma, nos interessa abordar as dinâmicas que podem adquirir a crise seguindo seus núcleos críticos, assim como apresentar de maneira mais explícita possível as grandes questões e contradições que marcam o futuro.

Dívidas corporativas: o elo débil

Existe uma coincidência entre os setores da economia mais golpeados pelo choque da pandemia e as dívidas corporativas não financeiras. Como antecedente, é preciso ter em conta que a diferença da crise de 2008/9 a maior parte da dívida do setor privado não se concentra na atualidade em créditos imobiliários e hipotecários, mas sim em créditos ao setor empresarial. Segundo mostra um artigo do Financial Times, com base em dados da OCDE, as empresas acumularam dívida barata durante toda uma década, elevando o estoque global de bônus corporativos não financeiros a um máximo histórico de 13,5 bilhões de dólares no fim do ano passado e o dobro do montante correspondente a dezembro de 2008 em termos reais. Por sua vez e segundo estimativas da Reserva Federal estadunidense, a dívida corporativa dos Estados Unidos sofreu um aumento de 3,3 bilhões de dólares antes da crise de 2008/9 para 6,5 bilhões em 2019. China e Estados Unidos encabeçam de longe o ranking global dos dez países com maior dívida corporativa não financeira. Segundo a já mencionada nota do Financial Times a causa desse fenômeno reside no fato de que devido a queda das taxas de interesse pós-Lehman, implementadas pelos bancos centrais, os rendimentos dos auxílios governamentais mais seguros foram derrubados e os investidores encontraram os empréstimos a empresas mais arriscadas como uma forma de obter benefícios. Também se indica ali que este universo se encontra dividido entre mutuários de nível intermediário que até alguns meses atrás podiam continuar pedindo empréstimos e ir reembolsando dívidas e mutuários zumbis – uma de cada seis empresas estadunidenses – que ainda que, sem obter lucro suficiente para cobrir o pagamento de interesses, podiam seguir adiando a crise enquanto os mercados da dívida seguiram permitindo-lhes refinanciar. Em outra nota do Financial Times, é possível ler que empresas como Alphabet, Apple, Facebook e Microsoft contavam com um total de 328 milhões de dólares em efetivo no final de 2019. Questão que sugere que esse tipo de empresas atua de fato como credor de outros setores que concentram grande parte da dívida incluídos aqueles que pertencem à chamada “velha economia”. O artigo do Financial Times, também sinaliza que a troca no tipo de endividamento das empresas resulta em certo modo menos arriscado para o sistema financeiro em seu conjunto, devido a que os bancos não estão tão expostos à dívida corporativa como as entidades de investimento do tipo de companhias de seguros, fundos de pensões e fundos mútuos. Dito isso, não obstante, alerta que as entidades bancárias não poderiam escapar a um colapso mais amplo que acabe aumentando o não pagamento de seus créditos.

Todo esse esquema é o que emerge como uma bomba relógio ao correr da crise desatada pela COVID-19. Em princípio, há que se ter em conta o 50% da dívida corporativa global está qualificada como BBB por agências como Moody’s, S&P, ou Fitch. Isso significa que se bem se trata de auxílios que consideram “Investiment grade” – ou “de qualidade” – resultam os piores dentro de um universo pelo qual uma queda de qualificação os coloca diretamente em terreno de títulos de alto risco. Para o caso dos Estados Unidos, enquanto 40% dessa dívida possui qualificação BBB, 22% pendente de pagamento inclui títulos de alto risco. Quer dizer que quase dois terços dos títulos pertencem a companhias com um risco mais alto de default, entre eles muitos varejistas [3]. E acontece que não só a dívida de empresas com vulnerabilidades prévias se encontra ameaçada mas também as que anteriormente se viam como relativamente sólidas. Por um lado exibem uma grande vulnerabilidade as empresas que sofrem cancelamentos massivos como as hoteleiras ou de aviação. Uma questão que inclui desde empresas menores de cruzeiros até gigantes como Carnival e Royal Caribbean, titãs da aviação como Boeing e American Airlines, ou da hotelaria como a norteamericana Ryman Hospitality Properties. Por outro lado as companhias energéticas norteamericanas muito dependentes de preços elevados do petróleo já se encontravam na borda e estão apontando um forte golpe com preços futuros que alcançaram níveis negativos. No entanto, o universo ameaçado resulta ainda maior. As empresas automotivas, as de eletrônica e as companhias químicas permanecem vulneráveis devido as interrupções às cadeias de fornecimento. Também as empresas de aluguel de automóveis ou os grandes operadores de cinemas como a estadunidense National Amusements, entre muitas outras, já viram suas dívidas degradadas no terreno negativo. Também, com toda segurança os bancos acudiram primeiro as grandes corporações o que torna provável que as pequenas e médias empresas terminem ainda mais castigadas.Uma questão inquietante devido a que as últimas podem ser elos cruciais na cadeia de fornecimento, e assim, se interrompem-se os vínculos resultará muito mais difícil uma posterior recuperação. Com certeza, também se trata de uma oportunidade para uma maior concentração de capital mediante a aquisição destas pequenas e médias empresas pelas grande [4].

Dado esse cenário – ainda quando diferente da crise de 2008/9 a situação da banca se mantém mais estável – as dívidas corporativas constituem um dos elos débeis mais significativos. O risco de uma série de quebras em cadeia que acabe repercutindo sobre os bancos, pende como uma Espada de Damocles. Situação que se apresenta em um contexto no qual já com o sucedido até o momento, a contração do PIB mundial – na visão otimista do FMI – se calcula em 3% e o prognóstico de queda do comércio mundial oscila numa ampla margem, segundo a OMC, entre 13 e 32%. Além do mais, e por só considerar o caso paradigmático dos Estados Unidos, no melhor dos casos a economia sofreria uma contração de 6% em 2020 e os prognósticos de desemprego oscilam entre um arrepiante 16 e 20%. Todos os dados que – exceto no caso do comércio mundial com prognóstico ainda em aberto – superam amplamente os valores de queda da crise de 2008/9. Nesse contexto, os estímulos sem precedentes históricos que – entre medidas monetárias e fiscais – superam nos Estados Unidos os 5 bilhões de dólares e que em termos de medidas fiscais representam 30% do PIB na Alemanha e Itália e cerca de 20% na Espanha, tem o objetivo de evitar esse entrelaçamento explosivo entre os efeitos da pandemia e uma das vulnerabilidades mais inflamáveis do pós-Lehman. Também diferente da crise de 2008/9 as atuais medidas de intervenção estatal não tem por objeto – não poderiam tê-lo – uma reativação da economia, mas sim uma reativação da queda. A continuidade da paralisação econômica pode, não obstante, resultar mais poderosa que os estímulos e é por isso que a maioria dos governos tenta sair das “quarentenas” com consequências desconhecidas em termos sanitários. Dadas as circunstâncias, a “dialética” entre pandemia e economia emerge como uma das maiores incertidões do momento deixando a muitos analistas – segundo a ironia de Michel Husson – sem letras do alfabeto para qualificar o que está por vir.

O sentido profundo das dívidas

Voltando as dívidas corporativas não financeiras, interessa ir algo mais além de suas causas imediatas. O crescimento acelerado deste tipo de dívida durante os mais de dez anos transcorridos desde o início da recuperação pós-Lehman constitui, pra dizer a verdade, quase um espelho do escasso crescimento do investimento em capital fixo. Vínculo que representa um sintoma profundo da coexistência de grandes massas de liquidez por um lado, e escassas fontes para investimento lucrativo por outro. Uma contradição que em grande parte se “resolve” através do crescimento da dívida corporativa com um destino privilegiado e altamente especulativo dessas grandes massas de liquidez. Volumes originados seja em empresas de forte rentabilidade e matriz em país de altos riscos – formulamos mais acima o exemplo Alphabet, Apple, Facebook e Microsoft -, como nos próprios programas de facilidades quantitativas que os Bancos Centrais que resgataram a banca privada durante a crise passada ou nas extremamente baixas taxas de interesses que regem no “centro” capitalista desde há mais de uma década, entre outros. Como disse o geógrafo marxista David Harvey, a conversão do dinheiro excedente que demanda sua “libra de carne futura” se leva a cabo dentro das instituições financeiras [5]. Essas instituições como os fundos de investimento, de pensão e também bancos, entre outros, canalizam o crédito para empresas – muitas das quais economizam nulos ou escassos lucros reais – porém que utilizando o dinheiro para a recompra de suas próprias ações elevam seu preço de forma artificial incrementando o valor da companhia e atraindo maiores massas de capital. As empresas de inovação tecnológica denominadas unicórnios que não economizam lucros porém se revalorizam graças aos constantes aportes de capital e que já vinham perdendo dinamismo [6], constituem um exemplo deste tipo de operações. Todo um sistema que constitui um emaranhado quase insondável de apostas especulativas e criação de dependência através do dinheiro de crédito, edificado sobre a escassez de fontes reais para investimento.

A relação entre escassez de fontes de investimento e crescimento da dívida – não só a privada corporativa não financeira mas também da pública [7] que junto com a primeira representam mais de 80% do aumento extraordinário da dívida total na última década e também a dívida das famílias – tem muito que dizer sobre os limites do capital para sua auto reprodução. Uma questão que possui particularidade de “nos inquietar” não só aos marxistas mas também a boa parte do mainstream neokeynesiano. Em um artigo recente, Martin Wolf se pergunta porque a economia global se converteu tão dependente da dívida e se responde que expressa um “desejo excessivo de salvar” relativo as “oportunidades de investimento”. Wolf agrega que o aumento da desigualdade nos Estados Unidos se traduziu em um grande incremento na “poupança” do 1% superior da distribuição do ingresso que não se corresponde com o aumento do investimento. Pelo contrário, afirma, a taxa de investimento vem caindo apesar da diminuição das taxas de interesse reais. Um aspecto que, agregamos, , está na base do fenômeno conhecido como “histerese” que dá conta da incapacidade da economia de voltar aos níveis de funcionamento prévio a crise apesar das grandes massas de dinheiro introduzidas pelos Bancos Centrais. Um elemento característico da última recuperação e fundamento da tese do estancamento secular. Por sua vez, David Harvey colocava – uns anos antes da crise atual – que o crescimento acumulativo ininterrupto frente a crescente escassez de oportunidades de investimento rentável, exerce uma intensa pressão sobre a forma de capital que pode aumentar sem limites o dinheiro a crédito. Neste contexto, Harvey também desenvolve o conceito de “servidão por dívidas” como o meio preferido do capital para impor sua forma particular de escravidão através de empréstimos predatórios tanto aos trabalhadores como a outros capitalistas e aos próprios Estados [8].

Este sentido profundo do incremento de dívidas predatórias como a outra face da progressiva escassez de fontes lucrativas para o investimento teve sua primeira grande expressão na crise de 2008q9, emergindo logo sob a forma da grande debilidade da recuperação pós-Lehman que os neo-keynesianos definem com os termos de “histerese” e “estancamento secular”. Trata-se, mais precisamente, da crise do capitalismo em seu formato neoliberal assim como das qualidades específicas da internacionalização financeira e produtiva que o caracterizaram. De fato, enquanto o baixo investimento explica o lento crescimento da produtividade do trabalho – apesar dos grandes avanços tecnológicos -, o letárgico crescimento do comércio mundial se apresenta, por sua vez, como um dos fatores explicativos do baixo investimento [9]. A tormenta da COVID-19 se desenvolve sobre esse cenário inóspito que já vinha comovido não só pela debilidade econômica mas também pelas profundas crises políticas e instabilidades geopolíticas. As configurações que possam estabelecer-se no próximo período constituem uma das questões mais complexas e interessantes a se elucidar.

O que vem depois

A maneira como vai se configurar o cenário no próximo período imediato depende em boa parte dos tempos da pandemia e das capacidades para controlá-la. O prognóstico mais otimista oferece –como é habitual – o FMI considerando que a enfermidade resulta dobrada no próximo semestre e que os danos da crise econômica não superam as tendências que estão à vista. Em um contexto destas características, auguram um crescimento econômico mundial de 5,6% para 2021. Um número que, ainda que pareça elevado, na realidade é muito baixo porque ao incluir a recuperação da queda de 3% para o ano em curso se localiza, como sinaliza o próprio FMI, por debaixo da tendência estipulada previamente à crise. Ou seja, um cenário de “histerese” – em termos neokeynesianos – mais agudos que o que caracterizou a recuperação da última década. O FMI, seguramente, considera cenários muito piores ainda que os que reserva.

Se bem que o cenário anterior não pode ser descartado, é provável que a situação termine mais intrincada. O desenvolvimento da doença e seu controle relativo se produz por regiões, questão que – mas além do devir das tensões geopolíticas – implica desigualdades que complicam uma convergência. O início, por exemplo, da aparente recuperação da economia coincide com o pior momento da pandemia e a crise nos Estados Unidos. Além disso, se torna impossível afirmar que a maior parte das economias que começam a tentar voltar a normalidade se encontrarão isentas de um rebote.Pelo que poderiam estar expostas as recuperações e novas quedas somado às desigualdades internacionais, configurem um cenário desigual, incerto, e ainda mais atrasado em termos de recuperação econômica [10]. Por outro lado, assinalando que o abandono dos bloqueios constitui um processo e não um evento, um artigo do The Economist, incorpora o conceito da economia do 90%. Quer dizer, uma situação na qual por temor a contágios e rebotes – até que se descubra a vacina e se dissipe o medo – a economia não possa voltar por completo à normalidade, considerando um menor consumo de bares, restaurantes, hotelarias, viagens e transporte público, entre outros setores.Considerando esse cenário geral, de modo algum se pode descartar que em um emaranhado de rebotes e retrocessos e impossibilidade de volta a normalidade, o elo débil da dívida corporativa termine finalmente se rompendo e dê lugar a uma recessão muito mais profunda inclusive do que mostra a tendência até o momento.

Por outro lado, o curso da economia chinesa emerge como grande incógnita que, por sua vez, condiciona os possíveis cenários que virão. Ainda que se fale de uma recuperação em uma velocidade maior que a esperada, o crescimento do PIB chinês prognosticado para o ano em curso – sempre sobre a base do cenário mais otimista – apenas supera o 1%. É complexo supor que estas condições possam cumprir o mesmo papel de motor internacional da economia real que se desenvolveu diante da crise de 2008/9. O plano de estímulo fiscal de aproximadamente 600 milhões de dólares que naquele momento determinou um rebote muito sólido da sua economia, se enfrenta com as contradições como o subinvestimento interno, a sobrecapacidade e o sobreendividamento – ainda que, em yuans, é certo -, ausentes naquele momento. De toda forma, nada está dito ainda. A China é uma economia nova e ainda depois da crise pode recuperar o vigor. O diferente é que, no caso de que isso aconteça, tomará quase seguramente um formato muito distinto ao dos primeiros anos posteriores à crise de Lehman. Como mínimo é esperado um maior enfrentamento pelos espaços mundiais para investimento de capital que acarrete uma intensificação da luta por zonas de influência.

Finalmente a questão chinesa conduz a esboçar ao menos umas breves linhas sobre o destino da “globalização”. O nível de dependência das economias nacionais com respeito a internacionalização do capital e as chamadas cadeias de valor se encontram muito elevados. De fato, a pandemia tornou visível que os Estados Unidos dependem da China para seu abastecimento de medicamentos elementares e implementos básicos de saúde. O estancamento da globalização que, como apontamos, leva um pouco mais que uma década e seu questionamento que adquiriu formas políticas e econômicas durante os últimos anos, manifesta-se mais explicitamente agora como um problema de “segurança nacional”. O alto grau de internacionalização das frações do capital dominante aprofunda sua contradição com a estrutura dos estados nacionais que, em última instância, lhes garante as condições globais e locais para acumulação. Sem dúvidas haverá pressões para desarmar determinadas cadeias globais de valor em particular no que tem a ver com o setor de saúde e seguramente se produzirão modificações em determinadas áreas. Porém, para colocar em escala maior um problema – que estará tingido, além do mais, pelo ano eleitoral estadunidense – é necessário ter em conta ao menos três fatores. O primeiro, a resistência do capital mais concentrado frente a pressões contrárias a internacionalização. O segundo, que para industrializar novamente e rearmar a produção nos países centrais seria necessário conquistar no “centro” salários como os que as grandes transnacionais norteamericanas e de outros países obtém, como mínimo, na China. O terceiro, é que o desarmamento das cadeias de valor – uma configuração extremamente complexa e inclusive difícil de perceber pelos pesquisadores – implicaria um investimento massivo de capital no centro, quer dizer, superar uma das debilidades mais profundas durante a última década e meia. Recordemos que o maior processo de investimento em novas tecnologias economizadores de trabalho nos países centrais durante os últimos 40 anos, teve lugar durante a década de ’90 e os primeiros anos 2000 em forma complementar ao deslocamento do trabalho manufatureiro com destino ao México, o sudeste asiático, os países do Leste europeu, a ex-URSS e China [11]. Existe uma contradição aguda na Divisão Internacional do Trabalho estabelecida durante todo esse último período, porém, sua transformação está muito distante de soluções simples.

Para terminar, se torna evidente que dentro destas complexidades se inscrevem as políticas em curso para avançar rumo a um aprofundamento da flexibilização laboral. Um ataque que a medida que as condições recuperem certa normalidade deverá enfrentar a continuidade dos processos de luta de classes que emergiram como características mais significativas do mundo pré-pandemia. De fato, essa crise mostrou o papel categórico do trabalho humano como motor da economia. Os avanços técnicos são muito profundos, porém, ainda seguem sendo complementares. Num período próximo, além de enfrentar os ataques às condições laborais, estará colocado para a classe trabalhadora inscrever em seu programa a luta por quem se apropria das novas tecnologias: se os grandes capitalistas, aumentando a exploração e o sofrimento, ou as grandes maiorias, melhorando as condições da existência humana.

Notas de Rodapé

[1] Ver, Malamud, Andrés, “La globalización en peligro”, Le monde Diplomatique, Nº 250, 4/2020 e Wallace, Rob, Liebman, Alex, Chavez, Luis Fernando e Wallace, Rodrick “El COVID-19 e os circuitos do capital”, Ideas de Izquierda, 29/03/2020.]]

[2] Nos referimos ao período aberto depois da quebra do banco de investimento Lehman Brothers, em setembro de 2008, que provocou a expansão a nível internacional da recessão que havia começado nos Estados Unidos no ano anterior.

[3] Lund, Susana, “Estamos em una borbuja de deuda corporativa?, Proyect Syndicate, 19/06/2018.

[4]Informação extraída de “Will the coronavirus trigger a corporate debit crisis?” Financial Times, março de 2020.

[5] Ver, Harvey, David, Marx, el capital y la locura de la razón económica. Buenos Aires, Akal, 2019.

[6] Ver, Srnicek, Nick, Capitalismo de Plataformas, Buenos Aires, Caja Negra, 2018.

[7] Ver Bach, Paula, “Crisis económica mundial: escaparán los espíritus subteráneos?”, Ideas de Izquierda, 3/2020.

[8] Harvey, David, ob. Cit.

[9] Ver, Bach, Paula, ob. cit.

[10] Ver, Husson, Michel, “¿Rebote o caída?”, A l’encontre, 4/2020, disponible online y Roberts, Michael, “The scarring”, thenextrecession.wordpress.com, 5/2020.

[11] Ver, Bach, Paula, Fin del trabajo o fetichismo de la robótica? Ideas de Izquierda 39, julo de 2017.

 
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