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A degeneração da democracia brasileira e o papel da agitação de uma nova Constituinte
Douglas Silva
Professor de Sociologia

“A forma defensiva da guerra não é [...] um simples escudo, mas, sim, um escudo formado essencialmente por golpes dados com habilidade”. Carl von Clausewitz, em Da Guerra.

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Das mais diversas analogias do período atual da crise brasileira com a guerra, seria a forma defensiva clausewitziana, repleta de meios ativos, ou seja, golpes habilidosos que buscam preparar para o contra-ataque, a mais plausível para os revolucionários agirem frente à crise atual, assim como fizeram Trótski e Gramsci acerca da consigna de Assembleia Constituinte que buscaremos abordar no presente artigo.

Frente a atual crise brasileira e a crescente degeneração da democracia construída sobre a Constituinte de 1988 (tutelada pelos militares), muitos buscam alternativas para colocar em prática seu “Fora Bolsonaro”. O sentimento crescente de que o atual presidente governa para os ricos e pouco se importa com a vida dos trabalhadores – fato que ele mesmo não deixa de negar quando perguntado sobre a maior taxa de mortes por coronavírus em 24 horas e sua única resposta é um sonoro e repulsivo “e daí?!” – é parte da demonstração de como o capitão do reacionarismo pouco se importa com as vidas dos trabalhadores e com os mínimos direitos democráticos, fato provado pela sua participação nos atos abertamente pró-ditadura e todas as demais declarações reacionárias.

Bolsonaro é fruto podre do golpe de 2016, apoiado por militares, que hoje ocupam diversos cargos no interior de seu governo, e por figuras, não menos odiosas e anti-trabalhador como Maia, Doria e todo o judiciário golpista que garantiu a prisão arbitrária de Lula, a manipulação das eleições e todos os ataques contra os trabalhadores e população pobre. Sendo os militares, os mesmos que nunca foram eleitos por ninguém, parte de um governo em que o próprio vice, Mourão, homenageia a ditadura militar no último dia 1° de abril e agem como árbitros da crescente crise política no país como a mão que segura a espada do regime.

Entre a crise dos de cima, uma coisa une todos os políticos e demais setores da burguesia brasileira, incluindo os militares que vem a cada dia ganhando mais força: garantir os ataques contra os trabalhadores. Portanto, diferente da oposição passiva de setores da esquerda e do próprio PT, que, inclusive, fizeram um ato no 1° de maio (dia do trabalhador) com os inimigos golpistas de nossa classe, nosso objetivo tem de ser a luta contra Bolsonaro e Mourão sem nenhuma confiança no Congresso, governadores e judiciário, que foram e são parte do processo de degeneração da democracia com suas múltiplas faces autoritárias e reacionárias. Afinal, seria possível uma saída em prol dos trabalhadores e população pobre com os mesmos que fizeram o golpe em 2016, abriram caminho à Bolsonaro, sustentando-o, inclusive, até o momento?

Portanto, pensar a consiga da Constituinte deveria ser um dever de toda esquerda, a partir dos debates travados pelos revolucionários russo e sardo, para fazer emergir como sujeitos os únicos capazes de entender e responder as suas próprias demandas enquanto classe: os trabalhadores. Afinal, a crise aberta hoje no Brasil se aprofunda, mas não surge com o coronavírus, portanto, trabalhar por uma resposta a crise sanitária também inclui repensar de cima a baixo todo o funcionamento da sociedade, desde os lucros dos patrões, o pagamento da dívida pública, que saqueia o dinheiro que poderia ir para saúde, educação, moradia e etc., além de todas as questões que afligem os trabalhadores no dia a dia.

Para tal desafio é preciso que o conjunto da esquerda brasileira rompa todo e qualquer seguidismo as alas do regime, e levantem uma política independente e classista. Neste sentido é que buscamos retomar o debate das consignas democrático-radicais como parte do desafio em construir uma saída dos trabalhadores para a crise. Por isso, a importância da esquerda em romper, por um lado, com aquela visão que transformou o programa democrático-radical como um fim em si mesmo e, por outro, com aquela que, mais diretamente, abandonaram as consignas democráticas (ALBAMONTE; MAIELLO, 2020, p. 248). Ou seja, para enfrentar a crise atual é necessário romper as ilusões na democracia burguesa e qualquer adaptação ao regime, supostamente democrático, que mantem os mesmos princípios estruturantes da sociedade capitalista: administrar os negócios da burguesia em detrimento da vida dos trabalhadores.

A defesa como preparação para contra-atacar

Trótski e Gramsci, longe de se curvarem a passividade em períodos não revolucionários, entendiam toda a importância dos meios defensivos, coordenados por golpes habilidosos, para perfurar a casca da democracia burguesa e avançar a consciência dos trabalhadores à ruptura das ilusões com a mesma.

A consigna da Constituinte levantada – cada qual em suas respectivas elaborações – visava, justamente, exigir os elementos mais democráticos presentes no período da democracia burguesa como forma de ganhar uma parcela cada vez maior da classe operária para um programa revolucionário. Dizia Trótski:

Nosso objetivo primordial é o de ganhar para esse programa a maioria dos nossos aliados da classe operária. Entretanto, e enquanto a maioria da classe operária seguir se apoiando nas bases da democracia burguesa, estamos dispostos a defender tal programa dos violentos ataques da burguesia bonapartista e fascista. (TRÓTSKI, 1934, tradução nossa).

Mas, assim como para Trótski, o qual via a Constituinte como mecanismo para fazer emergir os trabalhadores como sujeitos, Gramsci também a entendia num sentido de colocar os mais explorados e oprimidos em movimento, ou seja, não viam na consigna passividade alguma frente à democracia burguesa, sendo que para conquistar os elementos democráticos mais básicos no capitalismo os trabalhadores teriam que lutar para impor com sua força uma nova Constituinte que atendesse a seus interesses. Se referindo ao caso italiano, Gramsci dizia:

Os giolittianos querem uma Constituinte sem a Constituinte, ou seja, sem a agitação política popular que está ligada à convocação de uma Constituinte; querem que o Parlamento normal funcione como uma Constituinte reduzida aos mínimos termos, edulcorada, domesticada. (GRAMSCI apud VACCA, p. 245).

O sardo entendia que sob a democracia e, sobretudo, por meio da consigna da Assembleia Constituinte, o Partido Comunista poderia organizar a unidade do proletariado e, inclusive, atrair as classes médias para seu lado e gradualmente conquistá-las para a “revolução proletária”.

Acho que, com a piora das condições econômicas, teremos na Itália uma série de agitações populares de praça com caráter esporádico, mas com uma certa continuidade. Este fermento da classe trabalhadora assinalará o momento em que a Constituinte se tornará viável na Itália. Mas tal palavra de ordem deve ser agitada pelo Partido imediatamente. (GRAMSCI apud VACCA, p. 200).

Gramsci, em debate com Athos Lisa, um dos principais opositores a política da Constituinte na Itália, expressa sua oposição ao que se faz ainda recorrente nos debates no interior da esquerda mundial, a falsa ideia de que consignas como a defendida pelo sardo só serviria em momentos nos quais a classe trabalhadora já estivesse em movimento, o que se trata, justamente, do oposto do que Gramsci dizia quando destacava a importância do partido em levantar “imediatamente” a palavra de ordem da Constituinte, ainda sob o regime fascista de Benito Mussolini e sem esperar que eclodissem mobilizações populares na Itália – ainda que seu prognóstico fosse de que elas ocorreriam cedo ou tarde pelo nível da crise – pois caberia, também, a consigna organizar os operários (e seus aliados) em torno da mobilização necessária para impor a mesma.

Neste sentido, Vacca (2012) reitera que o sardo, em toda sua biografia, entendia a Constituinte como um “meio” e não um “fim”, que, como destaca, deveria ser utilizada para “desvalorizar todos os projetos de reforma pacífica [...] demonstrando à classe trabalhadora italiana que a única solução política na Itália [residia] na revolução proletária”.

Trótski, por sua vez, assinalava que enquanto a maioria da classe trabalhadora não se agrupava sob a bandeira do comunismo, deveria os revolucionários defender a democracia burguesa, com um programa transicional, contra os ataques da própria burguesia. Ou seja, ele via como elementos articulados de uma mesma estratégia a consciência e a experiência, fazendo com que essa última faça avançar a primeira. Sendo assim, tanto para Trótski quanto para Gramsci, as consignas democrático-radicais, como a Constituinte, se davam como parte do caminho pelo combate as ilusões na democracia burguesa e luta pelo poder operário, tornando-as meios e não fins.

Será a partir dessas duas posições que buscaremos, através das notas de Gramsci e Trótski, esboçar a importância de tal consigna para a atuação dos revolucionários brasileiros frente à crise atual aprofundada pelo coronavírus, demissões de ministros e rearranjos do tabuleiro político nas últimas semanas.

Mas, afinal, como seria a Constituinte hoje?

Muitos podem se perguntar: mas como seria uma nova Constituinte? Afinal, temos uma Constituição relativamente “nova” de 1988, não é mesmo? Não, não é. Quando falamos de impor uma Constituinte Livre e Soberana existem duas diferenças centrais: a primeira é que ela não seria com os mesmos que estão no poder e a segunda é que para que isso ocorra será preciso que o conjunto da esquerda e dos movimentos sociais a tomem em suas mãos, junto aos trabalhadores, e a imponha pela mobilização organizada, assim como Gramsci e Trótski defendiam.

Diferente da Constituição de 1988, tutelada pelos militares – garantindo, inclusive, que em caso de “desordem” possam intervir – uma Constituinte Livre e Soberana imposta pela luta teria como pilares centrais a abolição da figura presidencial e a unificação dos poderes legislativo e executivo numa câmara única, a revogabilidade dos mandatos, a abolição dos privilégios para os altos funcionários, como do judiciário, por exemplo, etc. Ou seja, essas medidas seriam um passo para se enfrentar com a democracia burguesa e seu mecanismo de controle em cima das decisões tomadas pelo conjunto dos trabalhadores, como, por exemplo, a crescente arbitragem das Forças Armadas em cima da política brasileira, assim como do próprio judiciário, ambos não sendo eleitos por ninguém e recebendo altos salários a custa da carestia de vida de milhões de brasileiros. Sobre esse aspecto, Gramsci chamava atenção como tais instituições existem, justamente, “para moderar os possíveis excessos do Parlamento eleito pelo sufrágio universal” (GRAMSCI, 1999).

O comunista sardo também salientava, no mesmo sentido da referência que fizemos da tutela militar a Constituição de 1988, que “em toda Constituição, devem ser vistos os pontos que permitem a passagem legal do regime constitucional-parlamentar ao ditatorial: exemplo, o art. 48 da Constituição de Weimar, que tanta importância teve na história alemã [...]” (GRAMSCI apud FILIPPINI, p. 145). Por isso a importância que dava à agitação popular pela Constituinte na Itália, pois somente a luta dos trabalhadores poderia impor uma (nova) Constituinte que fosse a mais democrática das democracias burguesas, ainda que tanto para Gramsci quanto para Trótski ela não fosse o fim, mas a consigna pela qual iria avançar a consciência dos trabalhadores com os próprios limites e ilusões contra a democracia dos ricos.

Assim como formulavam os dois revolucionários citados acima, Marx, por sua vez, também havia sintetizado o programa dos trabalhadores, como na Comuna de Paris, nos manifestos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), o qual Trótski atualiza com pequenas adaptações para o programa de ação para a França, no qual levantava como parte da Assembleia Constituinte:

Abaixo o Senado eleito por voto limitado e que transforma o poder do sufrágio universal em mera ilusão! Abaixo a presidência da República que serve como ponto oculto de concentração para as forças do militarismo e a reação! Uma assembleia única deve combinar os poderes legislativo e executivo. Seus membros seriam eleitos por dois anos, mediante sufrágio universal de todos os maiores de dezoito anos, sem discriminação de sexo ou de nacionalidade. Os deputados seriam eleitos sobre a base das assembleias locais, constantemente revogáveis por seus constituintes e receberiam um salário de um operário especializado (TRÓTSKI, 1934, tradução nossa).

Nota-se que, a divisão dos poderes na democracia burguesa existe como mecanismo de moderação do sufrágio universal e, como no caso do executivo, “de concentração para as forças do militarismo e a reação”. Nada mais atual para entender a crise brasileira do que os escritos marxistas de ambos os autores. Afinal, não seriam os militares parte crescente do governo de Jair Bolsonaro?

Por isso, a defesa de uma nova Constituinte imposta pela luta para varrer Bolsonaro, mas, também, os militares como Mourão e companhia, se faz tão importante. Pois apenas pela imposição de tal consigna poderíamos lutar pela mais democrática das repúblicas burguesas, mas, mais do que isso, somente por essa via podemos retirar o véu da falsa democracia no qual se escondem os capitalistas e demonstrar como não estão dispostos a abrir mão de seus privilégios, como vimos nas rebeliões chilenas em que, quando os trabalhadores aliados a juventude e os setores mais pobres da população levantaram a consigna por uma nova Constituinte, o governo retirou suas tropas da caserna e reprimiu duramente as mobilizações, enquanto, ainda, buscava domesticar a proposta de uma nova Constituição que não escapasse de seu controle.

Inclusive, sobre a participação dos revolucionários numa Comstituinte, Trótski dizia no caso chinês:

Nós, os comunistas, entraríamos numa assembleia nacional assim restringida e manipulada? Se não contamos com as forças suficientes para substituí-la, isto é, para tomar o poder, é óbvio que entraríamos. Essa etapa não nos debilitaria, minimamente. Ao contrário, nos ajudaria a reunir e desenvolver as forças da vanguarda proletária. Nesta assembleia espúria, e acima de tudo fora da mesma, desenvolveríamos nossa agitação por uma nova assembleia mais democrática. Existindo uma mobilização revolucionária das massas, simultaneamente construiríamos sovietes. É muito possível que, num caso, os partidos pequeno-burgueses convoquem uma assembléia nacional relativamente mais democrática, que sirva de dique de contenção diante dos sovietes. Participaríamos nesse tipo de assembléia? Supostamente, sim. Novamente, somente se não contássemos com as forças suficientes para superá-la com um tipo mais elevado de governo, ou seja, com os sovietes. Entretanto, essa possibilidade surge somente no auge do ascenso revolucionário. Na atualidade, tal situação está distante (TRÓTSKI, 1930).

Trótski discutia o caso chinês a luz dos vários questionamentos que hoje ainda poderiam surgir entre nós. Dialogando com a factibilidade da Constituinte, ele diz

“É possível fazer agitação por uma assembleia constituinte ao mesmo tempo em que se nega a sua factibilidade?” Porém, por que temos que decidir de antemão que não é factível? Obviamente, as massas somente apoiarão a consigna se a consideram factível. (TRÓTSKI, 1930).

Ele destacava a importância das massas em considerar factível a proposta da Constituinte, ou seja, a importância em atingir os pontos mais sensíveis das reivindicações dos trabalhadores. No caso chinês, Trótski alinhava a consiga a outras tantas, como a entrega de terras aos camponeses e a jornada de oito horas. Pensando, hoje, o caso brasileiro, sobretudo frente à crise do coronavírus, a consigna se entrelaça a luta pelo fim da subordinação imperialista a dívida pública que saqueia nossas riquezas, passando para os bancos dinheiro que poderia ser destinado à saúde, por exemplo. Além do mais, poderíamos questionar as privatizações, exigindo que empresas sejam estatizadas e colocadas sob controle dos trabalhadores, que são os verdadeiros interessados em fazer com que hospitais e indústria farmacêutica funcionem para salvar vidas e não para os lucros de poucos parasitas capitalistas.

No mesmo sentido para Gramsci “a “Constituinte” representa a forma de organização no seio da qual pode ser postas as reivindicações mais sentidas da classe trabalhadora, no seio da qual pode e deve se desenvolver, por meio dos próprios representantes, a ação do partido” (GRAMSCI apud VACCA, 2012, p. 243). Por isso, ressaltando novamente a força da estratégia que une consciência a experiência que o comandante do exército vermelho dizia que “os milhões de trabalhadores apenas se aproximam da ditadura do proletariado através de sua própria experiência política, e a assembleia nacional seria um passo a mais nesse caminho”. (TRÓTSKI, 1930).

Para reiterar a posição revolucionária de ambos os autores, vale destacar que a chave de tal consiga, como já demonstramos, era criar as condições favoráveis para a passagem da luta defensiva para o contra-ataque, ou seja, para o momento em que, desenvolvido mecanismos de auto-organização da classe trabalhadora, a luta passasse do campo democrático, ao qual fazia parte a Constituinte, para a luta pela tomada do poder.

Contudo, a fim de fazer avançar a consciência dos trabalhadores, a Constituinte também estabelece, como o exemplo russo tomado por Gramsci, “as condições novas em que a burguesia e o proletariado devem prosseguir a luta de classes, até quando a realidade econômica se trone tal que permita o advento do socialismo” (GRAMSCI, 1917, tradução nossa), ou seja, a “revolução proletária” na qual desembocava toda a elaboração das consignas democrático-radicais trabalhadas por Trótski e Gramsci.

REFERÊNCIAS

A. Lisa, Memorie. In carcere con Gramsci, Milão, Feltrinelli, 1971, p. 81-90

ALBAMONTE, Emilio; MAIELLO, Matias. Estratégia socialista e arte militar. 1. Ed. São Paulo: Edições Iskra, 2020.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, vol. 1, edição de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

GRAMSCI, Antonio. “Di chi è la colpa?”, Il Grido del popolo, 17 nov.1917.

VACCA, Giuseppe. Vida e pensamento de Antonio Gramsci 1926- 1937. 1. Ed. Rio de Janeiro: Contraponto Editora LTDA, 2012.

TRÓTSKI, Leon. A Palavra de Ordem de Assembléia Nacional na China. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/04/02.htm

TRÓTSKI, Leon. Un programa de acción para Francia. Disponível em: http://www.ceip.org.ar/Un-programa-de-accion-para-Francia

 
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