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OPNIÃO
Não caia no O Poço
Gabriel Fardin

Seria este filme uma crítica à desigualdade? Uma alegoria crítica ao capitalismo? Qual é a verdadeira tese por de trás da suposta crítica social? O que está escrito nas entrelinhas desta violência cinematográfica?

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O filme O Poço (The Platform, original em inglês) foi lançado em 2019, mas é neste ano de 2020, em meio a explosão da pandemia global da covid-19, que alcançou seu público massivamente e viralizou, com o perdão do trocadilho, através da plataforma de streaming da Netflix.

O filme espanhol, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, se vende com a temática de crítica social, construída através da ficção num cenário distópico de um experimento social sem local, data ou universo determinado. Toda a trama se desenvolve praticamente em um único cenário, em que centenas de pessoas estão presas, voluntariamente, cada qual por seus motivos, em um longo prédio de centenas de andares, sem janelas, sem cômodos, sem saídas. Cada andar contém uma dupla de voluntários, escolhidos aleatoriamente. No centro deste enorme prédio de concreto, aparentemente subterrâneo, um poço gigantesco atravessa os andares, criando um grande vão central. Por este poço uma plataforma repleta de comida desce todos os dias parando andar por andar durante poucos minutos. Aqueles aprisionados no topo se esbaldam com fartura, os que estão nos andares abaixo ficam com os restos, e para os últimos não resta nada, exceto a fome.

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O filme deixa evidente sua metáfora, assim como sua pretensão em construir um modelo social para, a partir do roteiro, desenhar suas especulações sobre as consequências. O roteiro faz tanta questão de deixar explícito suas intenções que a trama do filme revela, já nas primeiras cenas, que a prisão é um experimento sobre “solidariedade voluntária”. Na analogia, explicitada com muito didatismo no cenário do filme, a temática social pretendida, e que justamente vem encontrando respaldo na audiência, é a desigualdade social, onde os de cima ficam com toda a “riqueza” e fartura, e aos de baixo resta a fome e a barbárie. O roteiro faz questão de remarcar, a todo tempo, que “existem os de baixo e existem os de cima”, não importa em qual andar você esteja.

Em todo o primeiro ato passamos a conhecer o funcionamento da prisão através de Goreng, um personagem que representa um homem simples comum de “coração bom”, com o qual todos nós poderíamos nos identificar, ou ao menos desenvolver empatia. Entendido as regras, o segundo ato desencadeia cenas intermináveis de tortura psicológica, violência explícita, canibalismo, assassinatos, e todo tipo de barbárie que se possa imaginar.

Na medida em que Goreng passa a entender o funcionamento da prisão, imediatamente passa fazê-lo com olhar questionador, e esta é uma sagacidade do roteiro, pois, neste primeiro movimento abraça todos os espectadores críticos, que ficam logo horrorizados com o cenário e já começam a imaginar todo tipo de barbárie que pode se decorrer dalí. Todas as mentes com algum nível de consciência social que assistem o filme embarca na jornada de Goreng, buscando formas de lidar com a situação coletivamente, de forma racional, para que todos possam sobreviver e minimizar o dano da tragédia anunciada. Porém, a barbárie é tamanha, que em determinado momento estamos apenas preocupados com a sobrevivência individual do nosso personagem, e o ceticismo nos acomete profundamente, pois não é possível confiar em ninguém em tamanha selvageria cotidiana pela sobrevivência e conquista do que é mais básico para a sobrevivência, a comida. Um crossover teatral vulgar unindo a “guerra de todos contra todos” dentro da “caverna de Platão”.

Pois bem, por meio desta ficção, a que conclusões serviu toda a brutalidade empregada ininterruptamente? Afinal, dada a condição pré-estabelecida da desigualdade, o que está sendo criticado? Sua origem? Sua perpetuação? A ação dos sujeitos? E aqui começamos verdadeiramente nossa análise do filme e, portanto, também nossa zona de spoiler, fica o alerta. Mas para todos aqueles que leram o filme como uma crítica ao capitalismo, confira a entrevista do diretor para a DigitalSpy. na qual ele deixa claro que o filme não é uma metáfora contra o capitalismo.

Uma tese dos de cima sobre a desigualdade dos de baixo

Partimos da proposta autoproclamada da produção, de construir um experimento ficcional que simule as situações mais extremas de desigualdade social, em uma alegoria, onde possamos apreender esteticamente, e assim, portanto, sensivelmente e reflexivamente, todas as suas consequências, para depois retornarmos à realidade. O que nos diz o cenário metafórico, além do que o próprio roteiro quer nos dizer através do didatismo presente nas falas dos personagens? O que o filme como um todo tem a nos dizer sobre como ele mesmo enxerga a temática da desigualdade social ao construir sua prisão?

Bem, existem inúmeros pequenos detalhes no filme que nos permitiria analisar esteticamente de onde parte sua interpretação social. Porém nada é mais forte e explícito do que o próprio poço em si, e a comida que desce de cima para baixo. No modelo proposto pela prisão, a riqueza pertence aos que estão acima da prisão, e seu papel para com os de baixo -que não possuem nada, sujeitos a morrerem pela fome- é dividir uma parte de sua riqueza, mas apenas o suficiente para cada um ter um pouco e não poderem dizer que não havia o suficiente, cabendo assim aos de baixo dividi-la igualmente. Porém, nesta ficção, as pessoas são individualistas, egoístas, rancorosas, corruptas, irracionais, e não existe nenhuma organização ou colaboração para dividir igualmente os alimentos. Desta forma, na interpretação do O Poço, por mais que haja alimento para todos, a plataforma sempre chegará vazia nos últimos andares. Esta mensagem fica clara em uma informação que o roteiro nos dá, e deixa sua conclusão implícita. Todos que vão para o poço escolhem um prato de comida favorita para preencher a plataforma. Ou seja, se todos comessem apenas o seu prato escolhido, ao final todos teriam garantido ao menos o próprio prato que escolheram.

Porém este é um modelo de fato condizente com a desigualdade social que vivemos? Esse seria de fato um experimento sensivelmente análogo a nossa realidade a ponto de utilizarmos suas consequências para crítica social, tal qual sua audiência vem exaltando? Bem, se olharmos para realidade veremos que o filme na verdade constrói um modelo que é o exato oposto do que acontece na realidade. Na sociedade capitalista em que vivemos toda a riqueza, assim como todo alimento, são produzidos pelos de baixo, ou seja, pela população, pelos trabalhadores e, portanto, na analogia do O Poço, seria produzida pelos próprios prisioneiros. Riqueza e alimentos esses que são usurpados pelas elites e pelas classes dominantes, pelos capitalistas, por aqueles que estão verdadeiramente acima, que criaram e controlam o experimento, no filme, sutilmente retratado pela cozinha. Ou seja, se formos reproduzir de fato o funcionamento da desigualdade social utilizando a alegoria do poço e da plataforma, o que veríamos é cada prisioneiro produzindo uma quantidade enorme de alimentos, o suficiente para haver fartura para todos, mas sendo obrigado a colocar tudo que produzem na plataforma, que subiria, andar por andar, sem poderem retirar nada, até chegar ao topo, e aí, assim, ficariam a mercê da fome. Se existe de fato uma “crítica da desigualdade” neste filme, ela parte de que a riqueza não pertence a nós, que a produzimos, mas sim àqueles que a rouba, nos deixando apenas a miséria e a fome. E desta forma, a solução da desigualdade social, seria a divisão restrita e igualitária da filantropia movida pela consciência e boa vontade de nossos algozes, ao dividirem uma pequena fração de suas riquezas com seus prisioneiros.

A visão da desigualdade social deste filme, é uma reprodução estética da ideologia da escassez artificial de recursos e da filantropia distributiva da burguesia enquanto gestora da barbárie e da fome cotidiana do proletariado, culpando-o por sua própria condição de miséria e aprisionamento.

A ideologia da barbárie individualista

A crítica anterior da construção da alegoria já seria o suficiente para desmascarar o recurso estético e discursivo “dos de cima e dos de baixo”, que não é nem de longe uma novidade. Também não é novidade a Netflix apostar em temas que sugerem ou flertam com críticas sociais. Porém onde está realmente a crítica do filme? O cenário da desigualdade imposta pela prisão construída na ficção é um fato dado, a priori, justificado por ser um “experimento”. Raramente o roteiro chega a questionar este fato dado: quem criou o experimento? Quais suas intenções? É um experimento lógico, eficiente, necessário? Não, as condições dos prisioneiros já estão dadas. Pois então, o centro da “reflexão” que propõe o filme não está na origem da desigualdade em si, mas sim, em como os indivíduos humanos lidam uma vez aprisionados neste contexto de recursos escassos ao qual estão submetidos. Por tanto, por detrás da tentativa de se mostrar como uma crítica social, seu interesse não é discutir e refletir o funcionamento da sociedade. Isso não está em questão. A verdadeira tese do filme está implícita nos atos de violência, no ceticismo profundo para com a humanidade e na barbárie individualista promovida por seus personagens.

Durante todo o filme vemos seus personagens desconfiando um dos outros, se degladiando, matando pela sobrevivência, para garantir um pedaço de comida. A conclusão final do “experimento sobre solidariedade espontânea” é fracassada, a solidariedade espontânea é uma utopia, da qual a humanidade é incapaz, pois não é capaz de ter empatia nem mesmo para com seus semelhantes, nem mesmo conhecendo e tendo vivenciado a fome e o desespero da miséria. Até mesmo aqueles que “possuem um bom coração” são corrompidos, e se veem obrigados a praticar atos repugnantes, e ao final acabam tão condenados como todos os outros. Ninguém pode se salvar, pois a humanidade está sempre à beira da selvageria, como se esta fosse de fato sua natureza repreendia, que desperta nas situações de dificuldade extrema, sem a coerção social para impedi-la. Esta ideologia reacionária e profundamente cética atravessa o filme do início ao fim. Os únicos momentos onde parece haver algum tipo de ordem, acordo, estes se estabelecem pela ameaça e pela coerção que os de cima podem fazer para com os de baixo. Como na cena em que Goreng ameaça defecar na comida caso não cumprissem suas ordens distributivas. Mas atinge seu extremo quando decide descer pela plataforma, para que ele mesmo distribua os alimentos, armado de uma barra de metal, atacando qualquer esfomeado que se aproxime em desespero. E para o filme, este seria o máximo de heroísmo e solidariedade capaz de ser executado por aquelas pessoas, o mais brutal autoritarismo, desencadeando umas das cenas mais violentas de toda a exibição. Vale salientar aqui, que para o diretor, em sua entrevista para a Digital Spy, esta cena representa a tentativa da praticar o “socialismo”.

Bem acontece, que felizmente, esta tese também é o oposto do ocorreu na realidade em toda a história da humanidade. Para começar o ser humano é um ser social. Tudo que construímos se baseia na capacidade de empatia e de cooperação para superação das adversidades. Nossa própria capacidade enquanto espécie de superar a escassez de alimento, impostos pelos limites da natureza e suas catástrofes meteorológicas, se deu em base ao trabalho coletivo. A tese também é completamente inválida no que se refere a história da luta de classes, dos explorados contra os exploradores, dos oprimidos contra os opressores. Não existe um momento da história da sociedade humana onde não tentamos nos unir contra os de cima, que se apoiavam em suas posições de dominação. Também não nos faltam exemplos de quando nos unimos entre oprimidos e explorados, dando nossas vidas para a sobrevivência de nossos semelhantes, por causas e ideias justas, pela liberdade e inclusive pela sobrevivência.

Até mesmo hoje, toda a miséria social, e até mesmo os atos de barbárie que nossa classe comete contra si mesma, não se reproduz naturalmente, mas sim porque as classes dominantes imputaram no interior da estrutura social, ideologias e desigualdades, como o racismo, machismo, LGBTfobia, etc, para nos dividir. E ainda assim, para reprodução e continuidade da violência entre os de baixo, é necessário esforço cotidiano, aparelhos de cooptação e coerção de massas, para que não voltemos nossa fúria contra eles.

Se estivéssemos presos em uma prisão como a do O Poço, sem instrumentos de coerção, sem instrumentos ideológicos, sem um esforço constante daqueles que nos colocaram ali para nos dividir, em algumas semanas já teríamos nos rebelado plataforma acima e tomando aquela cozinha de assalto. Pois este filme está longe de expressar os valores da humanidade em sua história, ou “dos de baixo” aprisionados na sociedade. Este filme é o reflexo da burguesia e das classes dominantes olhando-se no espelho, pois esta sim é capaz de tudo, de todo tipo de barbárie, de impor a fome, disseminar a violência, promover a guerra, para proteger sua ganância, seus valores individualistas e sua dominação econômica e social.

 
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