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EDUCAÇÃO - CORONAVIRUS
O papel da escola pública diante da crise do coronavírus
Mauro Sala
Campinas
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Desde que começou a crise do coronavírus no país, as escolas e universidades foram as primeiras instituições que decidiram suspender suas atividades presenciais. Essa necessidade se impôs pela própria natureza e estrutura da educação presencial, que tem no contato direto para o ensino dos conteúdos o seu fundamento.

A suspensão dessas atividades teve impacto imediato para milhões de pessoas, sejam elas professores, estudantes ou familiares que se viram, de uma hora para outra, alijados da escola.

Sabemos que essa crise sanitária que vivemos não se resolverá em dias, mas em semanas ou meses. E mesmo quando começarem a reabrir outras instituições, como o comércio e outros serviços, a escola, provavelmente, tardará ainda mais para voltar ao seu funcionamento presencial e regular. Isso porque, mesmo terminado os efeitos mais dramáticos do crescimento da contaminação, as escolas seguirão reunindo um número de pessoas que não será adequado para a perspectiva de conter novos surtos.

Dessa forma, a perspectiva de suspensão prolongada da suspensão das atividades escolares presenciais colocou a necessidade de buscarmos saídas para que isso não signifique a suspensão ou cancelamento da escola como instituição social indispensável. A questão é: qual o papel das escolas públicas nesse momento de crise?

O que a crise do coronavírus revelou das condições escolares?

A crise do coronavírus revelou que a falta de investimento na educação pública criou um cenário em que a escola não poderia manter condições sanitárias mínimas de funcionamento. Não era apenas álcool em gel que não havia nas escolas, mas, muitas vezes, as escolas não contam com itens básicos de higiene e cuidado pessoal como um simples sabonete ou papel higiênico em seus banheiros.

Escolas superlotadas funcionando em três turnos consecutivos sem os materiais e investimentos necessários para uma higienização regular e efetiva era uma bomba relógio que precisou ser desarmada de pronto.

A realidade do coronavírus iria, forçosamente, impor o fechamento das escolas públicas pelo país. Mas esse fechamento também revelou que a falta de investimento, que mantém as escolas em uma situação precária, precisa ser urgentemente revertida. Mesmo passado os efeitos mais dramáticos da crise sanitária, as escolas não poderão voltar a funcionar da mesma maneira.

A educação a distância seria uma saída?

Diante da suspensão das atividades escolares presenciais, muitas escolas privadas logo migraram para plataformas on-line, instituindo o ensino a distância. Essa rápida aceitação do ensino a distância nessas instituições serviu para que os oportunistas de plantão passassem a exercer certa pressão difusa sobre as escolas públicas, como se as instituições privadas estivessem buscando uma saída “educativa" para seus alunos enquanto a escola pública e seus professores estivessem acomodados em uma posição corporativa, lesando o direito à educação que tanto dizem defender. Desse modo, o ensino a distância tem sido defendido como a forma possível e desejável de cumprimento do direito à educação dos estudantes.

Ensino a distância: uma mudança estrutural da política educacional

Diante disso, várias secretarias de educação do país começaram a discutir abertamente e a fazer projetos para a implementação do ensino a distância em suas redes, embora não exista amparo legal para a instituições do EaD na educação básica.

Dessa forma, essas iniciativas não poderão ser contabilizadas para o cumprimento das cargas horárias obrigatórias anuais, a não ser que ocorra uma mudança estrutural na política educacional do país.

Dado o tempo de interrupção das atividades presenciais que a pandemia nos imporá, já está havendo certa pressão - tanto das instituições privadas quanto dos setores privatistas na educação pública - para que essas atividades a distância possam ser computadas como parte efetiva do ano letivo. Até agora, pelo menos no que diz respeito à educação básica, nenhuma mudança efetiva da legislação foi feita nesse sentido. Entretanto, podemos esperar que a generalização do EaD pelas diversas redes públicas pelo país vai fazer aumentar a pressão para que o EaD seja institucionalizado como forma - emergencial e/ou regular? - de garantia do tão falado direito à educação.

Uma mudança dessa ordem significará uma aceleração das contrarreformas privatistas que a educação básica pública vem sofrendo. Se a reforma do ensino médio já abriu as portas do EaD para o cumprimento do itinerário formativo profissionalizante, com uma mudança dessa ordem se abriria espaça para que o EaD corroesse a educação presencial em todos os seus níveis.

Sabemos que as políticas emergenciais - muitas vezes necessárias - também podem esconder mecanismos de controle e violência que poderão ser ativados novamente quando necessário. Será que uma longa greve da educação também não seria uma situação emergencial na qual poderia ser novamente ativado os mecanismos do EaD?

O oferecimento do EaD como forma a garantir o direito à educação, na verdade, esconde uma concepção de educação como arremedo desse direito. Nenhuma aula presencial pode ser satisfatoriamente substituída pelo EaD, tanto mais nas condições objetivas de nossas escolas públicas e das condições de vida de nossos estudantes. E, se aceitarmos o EaD como saída para a crise atual, estaremos transformando esse arremedo em política nacional de educação.

A questão do acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação e à internet

Quando falamos da instituição do ensino a distância na educação básica, estamos falando de um universo de 48,4 milhões de estudantes, dos quais mais de 39,4 milhões estudam em instituições públicas, segundo o último censo da educação básica publicado pelo INEP.

Se olharmos para as condições de acesso à internet dos estudantes, vemos que a situação de implementação do ensino a distância não é uma realidade plausível para grande parte dos filhos e filhas da classe trabalhadora.

Embora o uso da internet tenha crescido nos últimos anos no país, ainda nos encontramos em uma situação em que apenas 74% da população urbana tem acesso à internet, e mais da metade da população rural não tem acesso. Dos 70% dos brasileiros que acessaram a internet em 2018, 43% o fizeram por computadores e 97% pelo celular, contando que algumas pessoas podem ter mais de um tipo de acesso. Entre a população mais pobre do país, apenas 48% tem acesso à internet, segundo pesquisa realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação.

A esses dados se complementam o fato de mesmo o acesso por celular de grande parte da juventude ser extremamente precário, seja pelos pacotes de dados limitados que podem adquirir, seja pelas limitações físicas e tecnológicas dos aparelhos que dispõem. De qualquer modo, aceitar o EaD como política educacional significa alijar completamente grande parte da juventude mais pobre desse processo.

Mesmo que uma ou outra rede de ensino diga que disponibilizará equipamentos e acesso à internet para todos os seus estudantes, temos que ter claro que aqueles mais de 39,4 milhões de estudantes das escolas públicas estão espalhados por todo o país, estando a cargo de cerca de 5.800 redes de ensino distintas, sejam elas municipais ou estaduais. E conhecendo bem as desigualdades regionais do país, sabemos que essas milhares de redes não teriam condições mínimas de fornecer os insumos indispensáveis para implementar o EaD.

Mas se o governo federal resolvesse, hipoteticamente, essa questão, fornecendo esses insumos, então o EaD poderia ser uma saída?

O EaD, problemas pedagógicos concretos da educação escolar e os limites do tecnicismo

Mesmo que se resolvessem os problemas básicos, como garantir equipamento e acesso aos milhões de estudantes e professores, o que, no contexto de um governo que mesmo diante da maior crise sanitária de uma geração ainda tenciona pelos ajustes antitrabalhador, parece improvável, a proposta de implementação do EaD esbarraria também em problemas pedagógicos.

Uma pesquisa sobre os resultados das avaliações padronizadas realizadas pelo estado de São Paulo comprovou o que muito de nós já percebemos intuitivamente: que dentro de uma mesma sala de aula há alunos com níveis distintos de apreensão e de dificuldade em relação ao conteúdo, o que recriaria uma espécie de multisseriação no interior da escola seriada.

Essa realidade sentida por todas as professoras e professores coloca uma questão pedagógica que o sistema de aulas on-line não é capaz de responder. Muitas vezes nos vemos no desafio - que se torna ainda maior diante das condições muitas vezes precária para o trabalho educativo - de termos que dar “várias aulas em uma” a fim de atingir alunos com níveis distintos de apreensão do conteúdo.

Segundo apontou a pesquisa referida, na escola estadual paulista selecionada, “mais de 35% dos alunos que cursaram o 9° ano do ensino fundamental em 2010 estavam “abaixo do básico” em língua portuguesa, e mais de 40% deles estavam “abaixo do básico” em matemática, sendo que para o 3° ano do Ensino Médio esses valores subiam para 42,2% e 57,7% respectivamente”.

Essa realidade não se reduz à escola selecionada nem mesmo a rede estadual paulista, pesquisas como essa e mesmo a percepção dos professores poderão atestar.

Assim, como preparar um material para o EaD diante dessa heterogeneidade de realidades no interior de uma mesma turma? Se no contato pessoal com os alunos essa realidade se impõem como um enorme desafio para o ensino, nas plataformas on-line elas se mostrarão como uma imensa impossibilidade.

Contexto de crise e o trabalho dos professores

Mesmo passados poucos dias de início da crise do coronavírus, já começam a surgir nas redes sociais e em conversas com colegas professores que estão tendo que dar esse ensino a distância um sentimento de cansaço e desamparo.

Primeiro, pelo evidente motivo de que nenhum de nós se preparou para fornecer atividades dessa maneira, exigindo um esforço e um tempo de preparação que, se já seriam uma enorme sobrecarga em tempo normais, agora se tornam um fardo que nos faz curvar em poucos dias de trabalho.

Além das dificuldades técnicas com esse meio, outros problemas cotidianos começam a surgir, desde um simples computador quebrado até o cuidado com os filhos que também estão em casa 24 horas por dia. Esses problemas cotidianos tendem a se agravar conforme passam os dias de quarentena e, mais ainda, conforme as consequências mais duras da pandemia se imponham entre nós. Se por ora são as dificuldades técnicas e cotidianas que nos abala, daqui em diante serão as questões da nossa saúde psíquica e física, senão de nossa própria vida.

Já avistamos a tempestade, mas nesse momento sentimos apenas os seus respingos. As cerca de 200 mortes por Covid-19 confirmadas até agora representam apenas uma pequena fração do número de mortos esperados para os próximos dias. Se agora contamos às centenas, em poucos dias contaremos aos milhares e em algumas semanas às dezenas de milhares.

Em uma situação como essa será impossível manter qualquer censo de normalidade. Os professores que já sentem a pressão do momento histórico, sofrerão também com as exigências do trabalho, o que se tornará insuportável. Mesmo aquelas escolas privadas que já instituíram o EaD serão obrigadas a parar diante da tragédia social que se anuncia. Não é o momento de tomarmos esse caminho, que já se anuncia como um beco sem saída.

Então as escolas não tem nada a oferecer nesse momento?

Isso não significa que os professores e as escolas não têm nada a oferecer nesse momento. Sabemos que diante do fechamento das escolas muitos dos nossos alunos, que tinham na escola sua melhor refeição diária, se encontram em uma situação infinitamente mais difícil por conta do seu fechamento, tanto mais num contexto em que aumenta o desemprego e fica quase impossibilitado as formas de trabalho informal a que recorrem.

Assim, os professores e as escolas precisam assumir o papel de ser um agente organizador para ajudar a população a lutar contra os efeitos sociais da crise. É preciso que se reverta, imediatamente, toda a verba das merendas escolares em fornecimento ou subsídio para a alimentação adequada da juventude. Sua capilaridade nos bairros, notadamente os das periferias faz das escolas instituições que podem cumprir um papel importante no combate contra a disseminação da epidemia, ajudando também na distribuição dos itens de higienes básicos.

Nós também temos que assumir o papel importante de difusão de informações corretas sobre a pandemia e seus efeitos, combatendo as notícias falsas e a deseducação. O papel educativo principal agora não é a transmissão - muitas vezes descontextualizadas - dos conteúdos do currículo escolar. Temos agora, junto com toda a sociedade a tarefa urgente de educar as massas trabalhadoras para enfrentar de maneira consciente os desafios do presente. Cada professor escolar deve se converter nesse momento num educador social.

É claro que também devemos fomentar todas as formas de contato possível com os demais professores, estudantes e suas famílias. Devemos buscar cumprir a tarefa de lutar contra as formas de atomização social que a quarentena, forçosamente, nos impõem. O uso das redes sociais, embora tenha os limites apontados acima pode ser um instrumento importante para isso.

Mas também teremos que, passado o momento mais fechado do isolamento social, nos dispor, de maneira segura, conversar presencialmente com os estudantes e com as famílias mais atingidas pela crise sanitária-social pela qual estamos passando. Teremos que ser a voz a levantar as demandas mais sentidas pela nossa classe.

Para isso, os professores precisam fazer da referência escolar um aglutinador, para que possamos tanto fornecer o acolhimento necessário aos nossos estudantes e seus familiares quanto para criarmos um germe de auto-organização que será fundamental se quisermos reconstruir a sociedade sobre novas bases.

Os sindicatos dos trabalhadores da educação e as entidades estudantis, devem assumir seu papel como espaço de organização da classe trabalhadora e da juventude, organizando, a partir de representantes das unidades escolares, a articulação entre as escolas.

A vanguarda mais consciente dos professores e dos trabalhadores precisa se preparar para, se necessário, formar frentes de trabalho emergenciais para manter em pé o sistema de saúde público em base à nossa auto-organização. Parar as aulas nesse momento não pode significar nossa imobilidade, mas sim o cumprimento de um outro papel social que esse momento de urgência e crise solicita.

 
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