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MASSSACRE DE PARAISÓPOLIS
Tá lá o corpo estendido no chão
Cristina Santos
Recife | @crisantosss
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Tá lá o corpo estendido no chão. Tão lá os corpos estendidos no chão. Em sua maioria, corpos negros, corpos da periferia. Dennys, Marcos, Denys, Eduardo, Gustavo, Gabriel, Luara, Bruno e Mateus. Foram 9 Silvas que tiveram suas vidas arrancadas pelo estado na madrugada do último domingo, 01 de Dezembro. Dia em que completa 11 meses do governo Bolsonaro, o presidente que diz que com o excludente de ilicitude, “bandidos” “vão morre igual baratas” e também do governo do “polícia vai atirar pra matar” de João Doria. Agora em Outubro completou 1 ano do assassinato do Mestre Moa pelas mãos de um Bolsonarista após o primeiro turno das eleições de 2018. Seguimos sem saber quem mandou matar Marielle Franco, vendo uma investigação cheia de irregularidades e que está mostrando a proximidade das relações da família Bolsonaro com as milícias no Rio de Janeiro.

Sabemos que o assassinato sistemático de jovens negros e negras não é exclusividade desses governos. O Brasil tem uma polícia que utiliza a lógica da pobreza como a inimiga, os números relacionados aos assassinatos cometidos pela polícia e a cor da pele de suas vítimas estão aí e não nos deixa enganarmos. Essa perseguição sistemática não ocorre sem resistência: levantar nossos Blacks, valorizar nossa música, nossas gírias, nossa história, ocupar os espaços é um pouco do que expressa essa resistência. O Funk é sem duvida uma das suas grandes expressões, pois reúne a musicalidade da periferia, a expressão poética do cotidiano de sua juventude e os encontros que ocupam espaços públicos nos “fluxos”, cada vez mais perseguidos pelas autoridades.

Assisti com bastante indignação o noticiário da Band ontem, onde o apresentador falava da chacina de Paraisópolis, vitimando a polícia e colocando todo o eixo da discussão no baile funk. Para eles, não há problema da polícia chegar tacando bomba em um espaço lotado, perseguindo e espancando jovens negros. O problema está em que havia um baile funk e o “trabalho” da polícia ali era acabar com ele, que a ação da polícia tenha causado o assassinato de 9 jovens é apenas um efeito colateral.

Assistia isso junto com outras pessoas e via como a reportagem conseguia convencer que o problema era o funk, como é fácil colocar a culpa na vítima. Lembrei o Rap do Silva, música que ouvia muito quando criança na zona rural de Itaquaquecetuba, onde se existisse fluxos, estaríamos todos lá.

“Era só mais um Silva que a estrela não brilha / Ele era funkeiro, mas era pai de família”

“Mas era pai de família”... como nós mesmos temos que justificar que o fato de ouvirmos funk não nos transforma em “bandidos”, é porquês burguesia tá fazendo um trabalho muito eficiente pra convencer todo mundo disso.

“Era trabalhador, pegava o trem lotado / Tinha boa vizinhança, era considerado / Todo mundo dizia que era um cara maneiro / Outros o criticavam porque ele era funkeiro”

Fizeram isso com as religiões de matriz africana, fizeram isso com nossos cabelos, com a cor da nossa pele, nossa música. Antes do funk o samba também foi perseguido, a capoeira também foi. O que todas essas expressões tem em comum é que são patrimônio do povo negro.

Por mais que exista uma contracultura que consegue resistir, acho que temos que colocar especial atenção nos limites dela. Temos que nos questionar se o que temos é um ganho fruto da nossa resistência ou se é uma tolerância fruto da incorporação da indústria cultural, que precisa recorrer a representatividade para ter legitimidade, tornando nossos símbolos - como o black, como o samba e até mesmo o funk - inofensivos.

Todas estas expressões em sua essência, e em especial o funk, nunca foram inofensivas. Sua proposta estética predominante é de enfrentamento, ao menos desde sua versão não comercial, já que como toda expressão artística que expresse resistência, também existe uma outra força tentando institucionaliza-lá e comercializava, vide super produções do chamado funk ostentação. Por outro viés, os fluxos reúnem uma juventude precarizada, que não tem nada ou quase nada além do baile pra se divertir, não tem direitos. Estão destinados a trabalhar 16 horas por dia pedalando pra Rappi, IFood, UberEats, pois não há perspectiva de emprego, não tem acesso à educação, saúde, moradia. Os ingredientes do caldo de cultivo para uma explosão de ódio contra o sistema está bem colocado nesses encontros e a musicalidade que sai daí expressa tudo isso. Por isso Doria e Bolsonaro querem acabar com o Funk, por isso a mídia, ao mesmo tempo que hipocritamente lamenta pelas famílias, culpam as vítimas criminalizando o Funk. Poderíamos desenvolver no mesmo sentido sobre o samba. O Carnaval virou alvo do presidente em 2019, e pudemos ver a Mangueira brilhar na avenida, expondo a ferida aberta do golpe de 2016 com a homenagem a Marielle Franco e a história do povo negro do nosso país. A mais orgânica cultura brasileira parece carregar o gérmen que irá tecer a forca do bolsonarismo. E eles sabem disso. Não à toa, Bolsonaro declarou uma verdadeira guerra à cultura. O governo quer ele definir o que è cultura e o que não é, através de mecanismos de controle como a Funarte e a Ancine.

Em 2017 Chico Buarque lançou o álbum que foi gestado em meio à crise migratória na Europa, o “As Caravanas”. A canção que dá nome ao álbum possui uma base de arrocha e funk carioca, e faz uma analogia da xenofobia europeia em relação aos refugiados em migração e o racismo do Brasil, fundado na escravidão:

“Com negros torsos nus deixam em polvorosa / A gente ordeira e virtuosa que apela / Pra polícia despachar de volta / O populacho pra favela / Ou pra Benguela, ou pra Guiné”

Claro como a poesia expressa a ideia da classe média branca pequeno-burguesa - essa gente ordeira e virtuosa - e que acredita que os espaços não pertencem ao “populacho” que tem que ir de volta pra “favela, pra Benguela, pra Guiné”...

“Mandar de volta”. Como se esse país não tivesse sido construído pela força do trabalho negro. Como se as fábricas, a construção civil, não tivesse majoritariamente funcionando a base da força dos milhões de negros e negras do nosso país.

“Sol, a culpa deve ser do sol... que embaça os olhos e a razão”... é exatamente o que o governo Bolsonaro quer legalizar com seu excludente de ilicitude. Vão dizer que a polícia estava sob forte emoção ao jogar bombas dentro de um espaço lotado, assim como a personagem de Albert Camus em O Estrangeiro. Não, não foi confusão, não foi acidente, e como os indícios descobertos estão mostrando, foi assassinato. Foi mais um episódio da realidade que estes governos querem impor para o povo pobre, negro e periférico. É fruto da política de repressão de um Estado racista, que quer nos arrancar o mínimo do direito que temos - fruto de muito enfrentamento e resistência - de desfrutar do pouco tempo livre que nos resta. Mas ainda há o funk que resiste, resiste como a arte que brota das periferias sob a qual o governo tem muito pouco controle. Pra essa arte, não é tão fácil utilizar de seus controles burocráticos, então eles vão para as vias de fato. Foi isso que vimos aterrorizados acontecer em Paraisopolis.

Por isso é urgente que os setores que se reivindicam de esquerda e do campo popular se coloquem contra os avanços autoritários desse governo. Por isso também me faltam palavras pra expressar quão absurdo foi Marcelo Freixo do PSOL votar a favor do pacote “anti crime” de Sérgio Moro, este que vem acenando para a direita já há algum tempo, e que não bastou sentar com a golpista Janaína Paschoal ou sair em defesa da polícia assassina no congresso, chancelou seu giro à direita votando a favor de um projeto de lei que significa mais perseguições e mortes para o povo negro e pobre. Por isso precisamos superar o PT, que teve quase que toda sua bancada também votando a favor de dito projeto, construindo um verdadeiro partido de trabalhadores, que esteja em cada local de trabalho e estudo, nos movimentos de negras e negros, de mulheres, de LGBT’s, de luta por moradia, por terra, por empregos... pois a resistência não basta para transformar, precisamos contra-atacar.

 
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