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ANÁLISE
Para onde vai a primavera latinoamericana?
Claudia Cinatti
Buenos Aires | @ClaudiaCinatti

Traduzimos aqui o texto de Claudia Cinatti, do La Izquierda Diario Argentina sobre os rumos dos levantes no nosso continente.

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Os motores

América do Sul se incorporou com direitos plenos na onda de levantamentos populares que recorre o mundo e que, sem diferenciação entre países centrais e periféricos, colocou no centro o questionamento em torno da herança de 40 anos de neoliberalismo. Com a rebelião no Chile, que leva mais de um mês, se transformou em um dos epicentros destas convulsões políticas sociais.

De um panorama que vinha marcado pela passividade relativa das massas e o predomínio de governos da direita regional alinhados com Trump logo após o esgotamento de ciclo dos governos pós-neoliberais, a situação deu uma viragem brusca com a irrupção em cena de um ator que ninguém esperava. Em apenas um mês vimos dois levantamentos populares, Equador e Chile (ainda em curso), e um golpe de Estado quase clássico na Bolívia contra Evo Morales que desatou uma dura resistência operária, camponesa, indígena e popular em El Alto e Cochabamba. E mais recentemente uma greve geral intermitente na Colômbia que está colocando o governo de Iván Duque contra a parede.

Para além das particularidades nacionais, esta nova onda de luta de classes, e sua refração latinoamericana, se desenvolve em cima do substrato comum das condições criadas pela crise capitalista de 2008, que deixou visível uma profunda polarização social e política herdada de décadas de globalização e sentenciou o fim da prolongada hegemonia neoliberal.

Na América Latina a crise chegou com força entre 2011-2014 com o esgotamento do superciclo de matérias primas, que havia sido o principal lubrificante dos “governos pós-neoliberais”. A economia entrou em recessão em 2015/16 e desde então se mantém em níveis de estancamento, com algumas exceções. Durante este anos a oscilação pendular da política continental foi para a direita. Piñera no Chile, Macri na Argentina, Duque na Colômbia, Kuczynski no Perú, Abdo no Paraguay e, como se faltasse algo, Temer/Bolsonaro no Brasil; todos governos alinhados com Trump, alimentaram a ilusão de uma mudança relativa de sinal político que permitiria avançar com (contra) reformas pendentes, em particular as reformas da previdência e trabalhista, cada vez mais vitais para os capitalistas em épocas de vacas magras.

Mas diferentemente dos governos alinhados com o Consenso de Washington da década de 1990, estes novos governos da direita não conseguiram assentar uma hegemonia relativamente estável. E encontraram um entorno global adverso, tendências nacionalistas no auge nos Estados Unidos e outras potências comerciais, instabilidade geopolítica, para sua orientação regida pelo livre mercado.

Ainda que a economia não explique tudo, as situação mais radicalizadas que se dão no Chile e na Bolívia ainda crescen, tem um peso decisivo. As perspectivas mais gerais de desaceleração com tendências recessivas no marco da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China são um fator determinante: o crescimento médio da região passou dos 4% anuais entre 2004 e 2011, a 0,2% que prevê o FMI em seu último informe para 2019. Isso antes que estourassem as manifestações no Chile e na Colômbia. Com as três principais economias em sérios problemas, México e Brasil com um crescimento vegetativo , e Argentina em uma prolongada e profunda recessão e com uma dívida impagável , o panorama regional parece sombrio, inclusive alguns já anunciam uma “segunda década perdida”.

A política imperialista ofensiva de Trump com ia América Latina, que voltou discursivamente à doutrina Monroe ainda que sem a força que teve o imperialismo no momento alto da sua hegemonia, oscila no ritmo da campanha eleitoral norteamericana na qual o presidente tenta sua reeleição. Isso soma um elemento de instabilidade. Nesta lógica eleitoral deveriam ser lidas algumas decisões políticas como o aumento das tarifas sob as importações de aço e alumínio para o Brasil e a Argentina, que estão dirigidas a reter o núcleo duro da sua base eleitoral. Nesta categoria entraria inclusive a tentativa de golpe de Estado na Venezuela promovido pela direita republicana da Flórica que tenta fazer uma diferença no eleitorado do gusanaje latino.

No coquetel explosivo norteamericano se misturam em proporções variáveis de ingredientes de diferentes densidades, como a persistente desigualdade no sentido amplo (ou seja, não apenas econômica), a frustração de expectativas de camadas médias e de setores assalariados que apenas saíram da pobreza no ciclo anterior mas temem a recaída pela sua posição precária, a percepção de que a classe política trabalhava sempre para os ricos, ou diretamente o ajuste do Fundo Monetário puro e duro como no Equador.

Esta “globalização da insatisfação” ainda não configura um ascenso operário de conjunto e justamente por isso também não abriu uma dinâmica revolucionária clara, mas pela potência dos motores que acolocaram em marcha, dificilmente se esgote nas suas primeiras etapas sem deixar consequências políticas duradouras.

As tendências

As ações de massas deslegitimaram em alguns dias as grandes certezas capitalistas das últimas décadas, como o êxito do “modelo chileno” ou o “fim da luta de classes”.
Esta é a magia dos processos que supera os estreitos marcos corporativos e rotineiros e colocam em questão poder estabelecido. No entanto, unilateralizar o elemento da luta pode dar uma ideia equivocada de que existe uma única tendência, que traduziria mecanicamente a ação das ruas em um giro à esquerda.

Para passar da descrição à teorização, a “primavera latinoamericana” é produto de que as tendências às crises orgânicas tem dado um salto de qualidade e com elas também as ações de massas e as respostas das classes dominantes, que em alguns casos tendem aos extremos.

A maior novidade é sem dúvidas a tendências à esquerda colocada no movimento pelas massas exploradas e oprimidas que passaram da passividade à atividade; em um “todo ainda caótico”, segundo a definição clássica de Gramsci, tem tomado as ruas com um grau de radicalidade que não se via desde o ascenso anterior que colocou um fim nos governos neoliberais no começo dos anos 2000.

Os processos mais avançados desta tendência são as jornadas revolucionárias que colocaram em cheque o governo de Lenin Moreno no Equador, a emergência da luta de classes no Chile, que teve seu ponto mais alto na paralisação geral do 12 de novembro, e a heróica resistência contra o golpe na Bolívia, em particular em El Alto e Cochabamba, que teve como emplema o bloqueio da fábrica de combustível em Senkata, um ponto estratégico que deixou La Paz desabastecida e que se se aprofundasse teria o potencial de ganhar uma dinâmica similar à “guerra do gás” de 2003. Como veremos mais adiante, que não tenham se desenvolvido estes elementos revolucionários é responsabilidade das direções reformistas e/ou populistas que atuaram conscientemente para evitar esta perspectiva.

Esta emergir dos explorados enfrenta uma tendência reacionária que mostra a crescente disposição das classes dominantes, ou das suas frações mais decididas, para utilizar as “soluções de força”. O cesarismo não é novo, de fato é o que vem acompanhando o ciclo de governos de direita, com feitos como o “golpe institucional” contra Dilma Rousseff no Brasil, baseado na utilização da justiça como árbitro, legitimado para as classes médias reacionárias, como mostrou a operação Lava Jato. Esta tendência deu um primeiro salto com a chegada de Bolsonaro ao governo no Brasil. E mais em geral com a gravitação crescente das forças armadas no nosso continente.

Neste sentido caminha o assentamento progressivo do golpe de Bolívia, onde já se prepara a candidatura de Luis Camacho, o “Bolsonaro boliviano”. Ainda que a situação ainda é precária e instável, a direita mais rançosa e racista apoiada pela polícia, as forças armadas e a igreja buscará transformar sua vitória política em força estatal, impor um programa neoliberal e varrer as conquistas dos povos originários.

O avanço da ofensiva antioperária no Brasil iniciada com Temer e continuada por Bolsonaro reforça os elementos reacionários na região. A aprovação no Congresso de duas contrareformas chaves para o plano neoliberal de Guedes e da patronal brasileira, a reforma da previdência e a reforma trabalhista com toques escravistas, sem que os grandes sindicatos tenham convocado a menor luta de resistência, não pode passar inadvertida. A soltura de Lula e a suspensão de outras duas reformas pendentes, a administrativa para diminuir o Estado e a tributária, para depois das eleições de 2020 não revertem esta tendência.

O quadro se completa com o triunfo apertado de Lacalle Pou no Uruguai, à frente de uma coalizão de governo que inclui formações de extrema direita como Cabildo abierto, e que para além do impacto sobretudo simbólico, somará outro país da região aos alinhados sem matizes com a política imperialista.

Em síntese, o que melhor define a situação é a polarização, com uma correlação de forças entre as classes que ainda está indefinida.

As perspectivas

Estamos acompanhando as primeiras manifestações de uma luta de classes inédita nas últimas décadas, ações nas quais se aceleraram a experiência da classe operária e dos explorados com suas direções políticas, as classes dominantes e seus Estados. Mas a irrupção da luta de classes por si mesma não garante a evolução em sentido revolucionário destes processos. Nem tampouco seu resultado.

Uma vez mais, as direções reformistas e populistas cumprem o papel de legitimar “pela esquerda” os desvios e conter a luta nos marcos da miséria do “possível”.
No Equador, a Conaie que hegemonizou a rua e as negociações com o “palácio”, se negou a lutar pela queda do governo de Lenín Moreno e chamou a retroceder frente ao primeiro triunfo da mobilização que foi a revogação do aumento do combustível.

No Chile, Piñera se sustenta com uma combinação de desvio e repressão, que seria inviável sem a colaboração ativa das direções reformistas do movimento de massas. Setores da Frente Ampla participaram da escandalosa “cozinha parlamentar” com os partidos do regime, inclusive a direita pinochetista, para convocar um processo constituinte amarrado e antidemocrático. Vários de seus deputados tem dado uma mostra mais de “responsabilidade” frente ao Estado burguês e as patronais votando a lei anti-protestos que transforma qualquer luta em um delito. O Partido Comunista também cumpriu seu papel apaziguador: se encarregou de que a paralisação geral do 12 de novembro, que marcou a entrada de batalhões decisivos da classe operária na luta, não tivesse continuidade, o que teria implicado organizar a greve geral política para transformar em realidade a demanda de milhões nas ruas que gritavam “Fora Piñera”. Apesar disso este processo ainda tem um final em aberto, como mostram as centenas de milhares de pessoas que seguem se mobilizando.

Na Bolivia, enquanto que a direção da COB que tinha sido aliada do governo de Evo Morales se passava para o lado do golpismo, a traição do MAS foi chave para desarticular a luta contra o golpe que ameaçava tomar uma dinâmica revolucionária. Enquanto desde seu exílio em México Evo Morales enviava mensagens contraditórias, no terreno uma maioria da direção masista reconheceu o governo usurpador e assassino de Añez, que tem na conta da sua existência os mortos de Senkata e Cochabamba.

A grande lição que se reatualiza com os levantamentos em curso é que os que agitam que para afastar o fantasma da “bolsonarização” regional o caminho é não aprofundar os elementos revolucionários da situação, mas se conformar com o “malmenorismo” passivizando o movimento de massas, terminam facilitando a tarefa da direita para avançar com seu programa reacionário. Assim foi com o golpe institucional no Brasil, sem que a CUT e o PT convocassem uma luta séria para derrotá-lo. Assim foi com o golpe na Bolívia. E assim passaram os ajustes de Macri na Argentina, depois da violenta manifestação contra a reforma da previdência em dezembro de 2017, que o peronismo e a burocracia sindical canalizaram rumo às eleições presidenciais de 2019 e agora gerando expectativas para o governo de Alberto Fernández.

Em outras notas viemos debatendo os aspectos estratégicos para passar da “revolta” à “revolução”, ou seja, da manifestação cidadã à intervenção da classe operária como articuladora da aliança entre os explorados; No Chile, experiências como o Comitê de Emergência e Resguardo de Antofagasta, uma instância de autoorganização democrática que coordena os diferentes setores que participam da luta, são exemplo que pode sim se generalizar, como é provável, a classe operária entra para a luta com as suas demandas, contra o despotismo patronal e a precarização, que são em última instância as bases nas quais se sustenta o suposto “milagre” do neoliberalismo chileno.

A greve geral que paralisa a França contra a reforma da previdência de Macron reatualiza nossa aposta no emergir da classe operária, e em particular de seus setores que ostentam posições estratégicas como os trabalhadores do transporte, e as experiências de coordenação e autoorganização que possam abrir dinâmicas mais clássicas de revolução. Não se trata deu uma espera passiva, mas de construir partidos revolucionários que criem as condições e levantem um programa para esta perspectiva.

 
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