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CHILE
Que tipo de Constituinte e como a impor: um debate com o PC e a Frente Ampla
Juan Valenzuela

Piñera está disposto a recorrer à violência estatal e à suspensão de direitos, com o único fim de proteger a herança da ditadura. Qual estratégia precisamos para conquistar nossas demandas e por fim a esse governo dos milionários?

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Tradução de Gabriele Almeida

A teoria do “inimigo interno”: que democracia?

No domingo (20), Piñera tinha qualificado o conflito do governo contra a rebelião popular como uma “guerra contra um inimigo poderoso”. Agora quer jogar algumas migalhas ao povo, e abranda o tom bélico para ver se com isso a rebelião acalma. Mas nas ruas seguem nos matando. Ao mesmo tempo que mudou seu discurso, se tornou pública a denúncia de um jovem de que o metrô Baquedano estava sendo utilizado como centro de torturas e também se tornou pública a detenção ilegal - nas suas moradias - de três militantes secundaristas das JJCC (Juventude do Partido Comunista do Chile), uma delas dirigente da CONES (Coordenação Nacional de Estudantes Secundaristas)

Ainda que seu discurso modifique as ênfases, ainda que a imprensa tenha mudado sua linha puramente criminalizadora e comece a fazer eco dos horríveis vexames a essas horas impossíveis de ocultar; a preservação do estado de emergência e o toque de recolher - uma perda dos direitos democráticos - significam que, para o governo, o inimigo é o povo.

Por que? Porque não pode tolerar que seja questionada a herança da ditadura, o sistema de AFP (sigla em espanhol para Administradores de Fundo de Pensão, que se refere à capitalização individual previdenciária [NdT]), os baixos salários, os altos custos de água e de luz, os altos preços do transporte público. A “declaração de guerra” de Piñera responde ao desejo de conservar essa herança que constitui o que o Chile é hoje. Os grupos econômicos mais poderosos são os que se enriquecem com esse “modelo” e o governo só tem estado aí para defendê-los.

Em política, muitas vezes se distingue o que são os adversários e o que são os inimigos. Enquanto entre os primeiros há diferenças que são processadas em um “quadro democrático comum”, entre os últimos o confronto é resolvido com a destruição de um dos lados. Se a lógica da “democracia de consensos” que se instalou no Chile da transição se baseou na disputa entre adversários, não é irrelevante que Piñera recorra à figura do inimigo. Já notava El mercurio (um dos principais jornais chilenos [NdT]) a ruptura de consensos básicos para o funcionamento da institucionalidade atual, ainda que desde a ótica da classe dominante.

Com isso, se revela que o regime político atual, com suas instituições, não é mais do que uma muralha que protege os interesses empresariais colocados no Chile neoliberal. Assim que os estudantes, os trabalhadores e os setores populares questionaram essa herança, se desmoronou toda a demagogia consensual de Piñera que, ao assumir seu mandato, falava de retomar a política dos acordos características da “transição”. Como se dissessem: consenso, mas se o “modelo” não te agrada, guerra. Democracia e direitos, mas com limites ditados pelos interesses do capital. Mas se os limites foram impostos em um tempo e um espaço anteriores, em 1980, com a Constituição de Pinochet, sob o terror, não é mais democrático que as centenas de milhares que tem se mobilizado nas ruas, jovens e trabalhadores, e o povo que sofre por essa herança, possa decidir seu destino e questionar dos pés à cabeça essa herança que nos condena a uma vida miserável?

A oposição no regime

Agora, dado o tom bélico que tem primado em Piñera, a “oposição progressista” já mostrou seu servilismo, quando o governo quis mostrar a unidade das instituições da república, com um Iván Flores (Partido Demócrata Cristiano) e um Jaime Quintana (Partido por la Democracia) apoiando-os em sua qualidade de presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente, junto ao presidente da Corte Suprema, Haroldo Brito. As instituições republicanas, unidas no seu desejo de silenciar a rebelião. Do lado de um presidente com as mãos manchadas de sangue.

Suas palavras sobre o estado de guerra geraram uma profunda indignação. Na segunda-feira (21), depois de que Jaime Iturriaga - o general encarregado de gerir o estado de exceção na Região Metropolitana-, desmentiu Piñera em uma coletiva de imprensa realizada pela manhã, apontando que ele não está em nenhuma guerra; este, pela noite, pediu que compreendessem sua raiva, reconheceu ter falado com termos brutos e tratou de marcar com maior ênfase uma diferença entre aqueles que se manifestam pacificamente, de um lado, e os vândalos e delinquentes que roubam, de outro. Agora, o gesto de Iturriaga não implicou o fim dos disparos e dos assassinatos. Escrevemos estas linhas em toque de recolher e continuam nos trazendo notícias de assassinatos e torturas pelo Exército e pela polícia.

Chama a atenção que um dos argumentos de Piñera a favor do estado de exceção e ao toque de recolher seja a “defesa da democracia”. Se a democracia é o “governo do povo”, é surpreendente que para Piñera defendê-la seja balear o povo. Na realidade, mais que democracia, Piñera - assim como Macri na Argentina, parece defender uma “plutocracia”: um governo dos ricos.

O parlamento sustentando o poder executivo

Na segunda-feira, Piñera introduziu uma agenda social que acaba de apresentar, a que finalmente divulgou por consenso com os partidos que concordaram em se reunir (Unión Demócrata Independiente, Renovación Nacional, Evópoli, Partido Demócrata Cristiano, Partido por la Democracia, Partido Radical Socialdemócrata). O PS (Partido Socialista de Chile), o FA (Frente Amplio) e o PC (Partido Comunista) também apostam em estabelecer diálogo e negociar, mas, especialmente no caso dos últimos, trataram de não fazer isso sem antes pressionar para que acabe o estado de emergência. Uma pressão que sequer levam até o final. Pelo Colégio de Professores e o FA se falou inclusive de uma “greve legislativa”, mas rapidamente virou sessão no Congresso, o que em última instância convém ao governo, que pode canalizar em uma agenda legislativa o descontentamento das ruas e, desse modo, salvar a si mesmo.

Gabriel Boric, na sua conta de twitter, considerou interessante algumas das propostas da “agenda social” de Piñera - que não afeta em nada a herança neoliberal - e se abriu a analisá-las no Congresso. Não apenas isso: tanto o FA como o PC deram aval ao executivo ao participar das sessões do Congresso. Se fosse coerente, bastaria que tirassem a milícia das ruas através de um “plano de desmilitarização” para que ele e seus camaradas esfriem a cabeça e avaliem o doce e o amargo dos pronunciamentos de Piñera e se coloquem a pactuar projetos de lei. Se assume que isso seria com Piñera no poder. Mas nem sequer há coerência nisso. Camila Vallejo disse que não se trata de ser “contra o governo”. Uma declaração contundente de que o PC está contra os milhões que nas ruas querem derrubar Piñera e seu regime assassino. Mas isso serve também para o FA: Por acaso Boric não ouviu o clamor popular pelo fim de seu governo? Por acaso este Congresso não mostrou diversas vezes que legisla para os ricos e milionários?

A Constituinte que o PC e o FA defendem está em sintonia com a preservação desse regime herdado de Pinochet e, inclusive, em formulações como a de Vallejo com a presença de Piñera! Como vai existir um novo poder constituinte, sem derrubar os poderes constituídos?

Piñera ainda quer diminuir o número de parlamentares no atual Congresso e torná-lo ainda mais restritivo do que é. De qualquer forma, isso não é uma expressão da vontade popular, mas sim um dos enclaves institucionais da herança da ditadura. Faz parte de um regime que mantém instituições como o TC (Tribunal Constitucional do Chile) que podem anular uma lei do congresso ou anular um projeto de lei se considerar que não está em conformidade com a Constituição de 1980, elaborada em plena ditadura. Faz parte de um regime em que o presidente da república tem a capacidade de tomar a decisão de suspender os direitos democráticos. Ou seja, as ofertas de Piñera não são apenas meras migalhas: além disso, se essas migalhas fossem deliberadas no Congresso, elas resultariam em nada, como já vimos tantas vezes. A oposição dos partidos da antiga Nueva Mayoría e o FA se adaptam a essas regras do jogo.

O governo dos trabalhadores e a consigna de Assembleia Constituinte Livre e Soberana

Nós que militamos no Partido de Trabajadores Revolucionarios acreditamos que só um governo de trabalhadores baseado em organismos de auto-organização poderá garantir a realização plena das nossas aspirações. Acabar com as AFP (Administradoras de Fundos de Pensão), com o negócio de luz e de água, com os aumentos no transporte público, com o negócio da saúde, implica mexer em interesses poderosos, os interesses dos capitalistas que moldaram o Chile neoliberal. O que está acontecendo no país mostra que essa gente não vê problema em derramar sangue quando se trata de defender seus interesses. Em 1973, a mão da classe dominante não tremeu na hora de reprimir os trabalhadores, estudantes e setores populares, instaurando uma ditadura contra revolucionária que liquidou a organização operária e a esquerda.

Por isso, em termos estratégicos, consideramos de importância vital a auto-organização operária que, ao se desenvolver, pode ganhar capacidade de confrontar esses poderes efetivos. O estado tem mostrado cada vez mais ser uma maquinaria para defender os interesses dos capitalistas. Se a classe trabalhadora e os setores oprimidos pelo capital desejam garantir seus interesses e evitar que o que os empresários dão em um dia, seja tomado no dia seguinte, se faz necessária a construção de um Estado próprio, não separado da vida dos trabalhadores, como ocorre com o Estado burguês que, em sua forma democrática, reduz a participação dos trabalhadores ao sufrágio nas eleições a cada três ou quatro anos. Um Estado baseado em conselhos de delegados de todas e todos os trabalhadores, revogáveis, enraizado nos principais centros de produção e bairros operários e populares. Como dizia Lenin, um Estado do tipo da Comuna de Paris de 1871 e que tomou forma na Revolução Russa de 1917.

É porque temos essa perspectiva que nos combates da luta de classes buscamos desenvolver a coordenação dos setores operários, populares e da juventude. É a luta que estamos travando agora, com o Comitê de Resguardo e Emergência organizado pelos docentes organizados no Colégio de Professores em Antofagasta, que vem convocando importantes setores de trabalhadores da cidade e respondendo às urgências da luta; com a organização entre trabalhadores da saúde e moradores do setor que impulsionamos pelo Sindicato do Hospital Barros Luco, que protagonizaram cortes e marchas combativas; e com o Cordão Santiago Centro que impulsionamos desde o Sindicato GAM, no qual participam artistas, estudantes, trabalhadores e vizinhos.

Avançar em uma perspectiva de auto-organização é uma questão que está completamente posta na atual situação do Chile. O movimento passou a um momento superior com a entrada inicial da classe trabalhadora, de portuários, professores e mineiros. Com a realização de assembleias massivas em colégios e universidades. Está completamente colocada a questão de coordenar essas iniciativas e transformá-las em um fator que aprofunde o movimento e lhe dê mais chances de vitória.

No entanto, entendemos que a maioria dos trabalhadores ainda não pensa que poderá surgir um novo Estado a partir de sua auto-organização, um governo dos trabalhadores. Por isso, consideramos que ao mesmo tempo que desenvolvemos a coordenação e a auto-organização, para que a classe trabalhadora seja sujeito do seu próprio destino, levantamos a consigna de Assembleia Constituinte Livre e Soberana.

Para conquistar uma nova “Constituição” e um “novo pacto social” como pensam certos integrantes do FA e do PC? Nada disso. No nosso ponto de vista, a Assembleia Constituinte é a instância mais democrática que pode se dar nos marcos de um Estado capitalista. Essa consigna para nós anda de mãos dadas com a supressão da figura da presidência da república e de todas instituições antidemocráticas que atuam no regime tais como o TC ou o Senado, algo que só pode ser imposto com os métodos da luta de classes e sobre as ruínas do regime. Ao contrário do que pensa a direita: que é melhor diminuir a quantidade de membros do Congresso, nós acreditamos que um Assembleia Constituinte deve eleger um deputado a cada 20 mil habitantes maiores de 14 anos. Deve suprimir os privilégios de renda, reduzindo os salários parlamentares ao que ganha um professor por jornada completa. Todos os cargos públicos devem ser revogáveis por seus eleitores e os juízes também precisam ser eleitos e revogáveis. Também deveria se instalar uma Câmara Única, legislativa e executiva ao mesmo tempo, para que todos aqueles que elaboram as leis tenham a responsabilidade de implementá-las (contra a armadilha da “divisão dos poderes”).

Acreditamos que uma Assembleia assim não deve ter nenhuma restrição para abordar o conjunto de problemáticas que configuram o Chile herdado da ditadura: a entrega de recursos - com a água ou o cobre - aos grandes capitais nacionais e estrangeiros, os salários baixos, os contratos precários, o sistema de AFP, sem se deter a nenhum limite, nem sequer a sacrossanta propriedade privada.

Não acreditamos que os capitalistas simplesmente cedam seus privilégios e seu poder por uma deliberação democrática. Mas conquistar uma instância assim ajudaria enormemente a politização e o fortalecimento da classe trabalhadora e das massas populares. Essa experiência “parlamentar” dos trabalhadores e setores populares, que enfrentará a resistência da burguesia, pode levar à conclusão sobre a necessidade de um governo de trabalhadores que rompa com o capitalismo para implementar todos as mudanças socioeconômicas profundas do Chile.

Hoje está posta a questão de derrubar o governo de Piñera e substituí-lo por uma Constituinte que assuma funções legislativas e provisoriamente executivas. O desejo de ver Piñera fora do governo é massivo. Mas não só isso. A força está se formando. A classe trabalhadora entrou em cena. Manter a greve geral até que caia Piñera é o que abrirá essas perspectivas que vão permitir que a classe trabalhadora avance em realizar suas aspirações, por tanto tempo adiadas.

 
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