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BACURAU
Bacurau: raça, classe e tradição nordestina
Renato Shakur
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

O filme Bacurau dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles retoma debates importantes do cenário político atual e, apesar do filme ter sido concebido há dez anos atrás e ter sido filmado em 2018, discussões sobre o imperialismo, a opressão de um povo trabalhador, a pobreza, a escassez de água e o preconceito de todos os tipos se tornam mais atuais ainda num país do racista, misógeno e xenófobo Bolsonaro.

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O filme Bacurau dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles retoma debates importantes do cenário político atual e, apesar do filme ter sido concebido há dez anos atrás e ter sido filmado em 2018, discussões sobre o imperialismo, a opressão de um povo trabalhador, a pobreza, a escassez de água e o preconceito de todos os tipos se tornam mais atuais ainda num país do racista, misógeno e xenófobo Bolsonaro.

Desde o golpe institucional e a eleição de Bolsonaro vimos mudanças muito profundas no Brasil, sobretudo no que diz respeito às relações raciais no Brasil, o assassinato de Mestre Moa e de Marielle, mas também o número recorde de mortes pela polícia de Witzel contra negros diariamente, são expressões de que se trata de um momento novo da exploração e opressão racial da burguesia brasileira. Um país onde o negro não tem nada a oferecer desde sua luta anti-racista, sua identidade e cultura, já que a negritude e a memória de luta do povo negro não se “encaixam” no estereótipo do “cidadão de bem”, homem heterosexual cis, “pai de família” que deve aceitar todos os ataques como a reforma da previdência e trabalhista, que defende que tudo o que confunda e negue o plano ultraneoliberal de Bolsonaro, como a organização dos trabalhadores, da juventude e movimentos sociais é simples “mimimi”.

Bacurau sem sombra de dúvida expressa, como um povo pobre e trabalhador, oprimido pela miséria e carestia de vida, o racismo e a xenofobia, encontra na cultura e na tradição as armas que os encorajam não apenas a uma luta encarniçada contra o opressor, mas também o espírito de luta para responder nas mesma moeda, com violência, ataques que há muito tempo seu povo sofre. A partir de algumas cenas do filme e de alguns personagens, podemos como essa parte específica da trama se desenvolve, no sentido de percebermos a íntima relação entre a questão negra, a cultura e tradição nordestina de um povo pobre e de luta. (Contém Spoilers).

“Quem nasce em Bacurau é gente”

A trama do filme desde o ínicio se desenvolve deixando bem explícito que o povo de Bacurau se envolve em conflitos remanescentes de problemas estruturais do capitalismo como o abastecimento de água, alimentos, medicamentos, etc. Uma cidade quase esquecida, que “não existe no mapa”, e vez ou outra se defronta com a presença indesejável do prefeito Tony Jr. um populista e entreguista, com aspirações autoritárias (que se desenvolvem ao longo da trama) que faz de tudo para garantir os lucros de seus aliados ianques. Do outro lado, um povo ressentido e com muito ódio de um prefeito que entrega alimentos fora da validade, remédios tarja preta nocivos à saúde e joga livros como se fosse lixo na porta da escola.

Eu diria assim como o menino respondeu para o casal de forasteiros aliados dos estrangeiros degenerados que querem junto ao prefeito e ao imperialismo assassinar o povo de Bacurau, de “quem nasce em Bacurau é gente”, mas de um “tipo social” totalmente diferente, para usar um caracterização do revolucionário Leon Trotski acerca do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo nas semi colônias. Bacurau sofre com a falta d’água, com a pobreza, falta medicamentos, com a exploração típica de cidades do interior do Nordeste, ao mesmo tempo tem acesso a internet e ao “top10” dos assassinatos do Pacote, a tecnologia na escola que o líder comunitário professor Plínio dá aula e de moradores com ipads e iphones,um museu com armas da época do cangaço e com um rifle norte-americano winchester e um pistola austríaca glock; esse desenvolvimento se combina com uma exploração profunda marcada pelas tonalidades de cores negras e fenótipos variados, vítimas do preconceito racial.

São formatos de rosto, tamanhos de nariz, tonalidades de preto do marrom ao retinto, cabelos crespos, lisos e ondulados, que são explicitamente a marca de um povo que tem na pele e no corpo o ressentimento e o ódio de uma burguesia que se construiu sob as pressões externas e a força dos quilombos, dos “bacuraus” pelo Brasil a fora, do povo negro e pobre. As relações raciais em Bacurau contém esse conteúdo explosivo, os problemas sociais que o povo daquela pequena cidade no interior de Pernambuco estão imersos, marcados pelo racismo e opressão, também ajudaram a forjar uma tradição e cultura não menos explosiva e que foi chave para o desfecho da luta em Bacurau.

“Aqui as coisas são diferentes”

No momento em que o casal de forasteiros vão assassinar dois homens da cidade de Bacurau como “queima de arquivo”, um deles se vendo diante de uma morte covarde e injusta avisa com um tom de cautela: “aqui as coisas são diferentes!” Um aviso semelhante está estampado numa placa que indica a distância até a cidade: “Bacurau 17km. Se for, vá na paz.”

As coisas lá realmente são “diferentes”, não apenas porque o povo de Bacurau tem uma moral elevada para combater seus inimigos de classe, com os rechaços ao prefeito, a auto-organização através de assembleias, os próprios “herois” da cidade (Lunga e Pacote) , mas também porque aquele povo havia, ao longo de anos de opressão, forjado armas distintas para os enfrentamentos de classe. Sua história é atravessada por experiências que ajudaram a forjar uma cultura e uma tradição que o povo de Bacurau as utilizam no sentido de conformar um sentido de comunidade, de pertencimento de um classe e no encorajamento para a luta física.

Não é atoa que o violeiro que vira e mexe aparece construindo a trilha sonora em cada cena, também é o personagem que toca em marcha fúnebre, as canções do velório da matriarca negra da cidade; é também ele em seu repertório musical e artístico, enquanto repentista que tenta coagir aqueles forasteiros, inclusive, ridicularizando o casal com versos, um ritmo e uma poesia que apenas a cultura tradicional de seus antepassados poderia dar. Vale também lembrar sobre o papel que cumpre a semente alucinógena que os habitantes de bacurau tomam para enfrentar seus inimigos, e divagar sobre sua história. Se foi trazida de séculos em séculos atrás por povos indígenas em rituais de caça ou adoração ou até mesmo se é um herança dos quilombos da região e se a semente alucinógena não é parte de uma “cultura africana” trazida e ressignificada a partir da escravidão negra.

A própria memória do cangaço, estampada nas paredes do museu de Bacurau, em imagens de cangaceiros degolados e de crianças “fantasiadas” de pequenos cangaceiros, fazem parte dessa tradição. Reinventada através das memórias de um povo que, contraditoriamente, passa essa tradição através do “top10” das mortes de Pacote que é exibido para crianças e adolescentes no carro-telão do DJ Urso e com o extâse compartilhado entre a comunidade, por conta do retorno triunfante e acalentador de Lunga e seus capagagas negros à Bacurau. Uma tradição que pode remontar os tempos da escravidão e dominação colonial, passando por um nordeste da literatura sanitarista da fome, miséria e doença de Jeca Tatu e de Virgulino Lampião e seu bando até Bacurau, que tem um povo de luta que aprendeu a ressignificar sua cultura e tradição através das necessidades de combate ao inimigo, um lugar “onde as coisas são diferentes”.

Um Bacurau anti-racista e anti-Bolsonaro

Mesmo depois de acabar com seus inimigos iaques e os degolar e desvendar o plano imperialista que os ligava até o prefeito Tony Jr., o povo de bacurau não se sente vingado, pois parecem prever que ainda há mais lutas e batalhas pela frente. Mas, aquele povo tem muito o que se orgulhar. Em primeiro lugar, porque a medida que iam tomando consciência das batalhas que precisam dar para não serem exterminados definitivamente do mapa, vão consolidando um espécie de “duplo poder” na cidade. Muito embora, as relações raciais aparecem de maneira contraditória, homens e mulheres negras se prostituem, Pacote, Lunga e seus capangas negros que são criminosos são idealizados através de um apelo, por parte dos diretores, à reivindicação do banditismo social através do cangaço, etc., são essas mesmas relações que conferem um sentido excepcional à Bacurau.

Bacurau também é, pela própria contradição, por conta dos interesses imperialistas na cidade, de Tony Jr. provavelmente ligado aos grandes latifúndios e o agronegócio (e por isso quer tirar a cidade definitivamente do mapa, para expandir seus negócio), a própria miséria e a escassez de água e recursos básicos, uma cidade composta por um povo que carrega em sua cor, em seus traços fenótipos e na alma, as marcas de um exploração perversa. Seu anti-racismo está, sobretudo na força de uma classe resignada em não abaixar a cabeça aos seus exploradores, a responder a violência com o mesmo grau de violência, mas também no orgulho em ter uma matriarca negra (interpretada por Lia de Itamaracá), um líder comunitário negro e que defende os interesses de seu povo, uma serie de negros e negras, nordestinos e nordestinas que quando se viram confrontados com seu inimigo de classes dariam, nada mais nada menos, que suas vidas em combate, como Pacote, Lunga e seus capangas negros. Ao mesmo tempo em que se vê cabelos blacks e coloridos de uma geração mais jovens de negros e negras da cidade, em nada a identidade negra em sua reivindicação do orgulho racial com os cabelos naturais são um "choque cultural" para as gerações mais velhas. Bacurau através de seus personagens cria uma sociedade com dimensões anti-racista em que o cabelo crespo não é só parte da reivindicação cultural de seus habitantes,ms também está longe dos preoceitos raciais provenientes do capitalismo.

Frente a ameaça que Bolsonaro e seus aliados racistas representam para os negros, mas também para as mulheres, LGBTs, à juventude e à ciência, o filme Bacurau que reflete a importância da cultura e tradição nordestina num resistência coletiva contra seus exploradores nacionais e internacionais, sem sombra de dúvida transmite um conteúdo anti-bolsonarista. No entanto, toda essa trama que envolve cultura, relações raciais e luta de classes está aquém de um programa e uma estratégia consequente para enfrentar Bolsonaro e seus aliados. Mas, ainda assim, precisamos ter em nossas mentes a memória viva de um Bucurau para mostrarmos nas ruas, nos locais de trabalho e estudo que com nós “as coisas também são diferentes”.

 
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