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CHINA
A Nova Rota da Seda chinesa, e a Europa partida ao meio
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy

Com a influência econômica, vem a influência geopolítica: a China começa a conquistar o apoio de potências do ocidente europeu para seus grandes projetos estratégicos, deixando os Estados Unidos de Donald Trump em estado de alerta. Já não se trata apenas da ameaça de um cisma entre “oriente e ocidente” europeu, nas palavras do ex-ministro das finanças alemão Sigmar Gabriel: Xi Jinping está selando relações diplomáticas de primeiro escalão com países como Inglaterra e Itália.

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Imagem por Bruno Portela

Se tivesse tido mais tempo, o almirante imperial chinês Zheng He, que no início do século XV levava a “Frota do Tesouro” do imperador Yongle por toda a orla do Oceano Índico até a África, teria talvez alcançado suas mercadorias a um porto europeu. Quase 500 anos depois, a China definitivamente alcançou a Europa, e impõe sua influência econômica em partes importantes do Velho Continente.

Com a influência econômica, vem a influência geopolítica: a China começa a conquistar o apoio de potências do ocidente europeu para seus grandes projetos estratégicos, deixando os Estados Unidos de Donald Trump em estado de alerta. Já não se trata apenas da ameaça de um cisma entre “oriente e ocidente” europeu, nas palavras do ex-ministro das finanças alemão Sigmar Gabriel: Xi Jinping está selando relações diplomáticas de primeiro escalão com países como Inglaterra e Itália.

O primeiro choque veio com a aceitação da Itália em participar do megaprojeto Belt and Road Initiative (ou a “Nova Rota da Seda”). Foi o primeiro país do G7 (grupo dos sete países mais industrializados do mundo) a se integrar ao projeto que busca ligar 80 países da África, da Europa e da Ásia por meio de obras de infra-estrutura (rodovias, portos e ferrovias) promovidas por Pequim. Recentemente, o governo britânico permitiu que a chinesa Huawei, a maior companhia de telecomunicações do mundo, operasse seus sistemas de tecnologia 5G, negando que a companhia representa perigo para a segurança nacional (anos atrás, a Inglaterra havia sido o primeiro país europeu a se integrar no Banco Asiático de Investimento e Infra-estrutura, dirigido pela China). Ambos os movimentos desagradaram Washington profundamente.

Mas o incômodo veio para ficar. No fórum sobre a Nova Rota da Seda, que contou com representantes de mais de 100 países, Xi Jinping falava a uma plateia povoada de membros da União Europeia, entre incrédulos, preocupados e voltados aos negócios. Entre as principais figuras europeias, estava o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, ao lado do primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, e do presidente suíço, Ueli Maurer. Alemanha, França, Espanha e Reino Unido preferiram enviar ministros à cúpula de Pequim.

Alarmado com a adesão da Itália, o prestigioso Washington Post anunciava fazia o paralelo histórico com o viajante italiano da Idade Média, “Sete séculos depois que o lendário explorador e comerciante veneziano Marco Polo embarcou em sua odisséia pela China, os emissários de Pequim estão estabelecendo sua cabeça de praia na Itália”. Digamos, de passagem, que a China não vem apenas a comércio.

O memorando de entendimento assinado pela China-Itália inclui 29 acordos comerciais avaliados em 20 bilhões de euros. Ainda que o investimento chinês na península itálica siga sendo menor que em outros países europeus (Pequim investiu 90 bilhões de euros no Reino Unido, e 45 bilhões na Alemanha, nos últimos 15 anos), este novo acordo foi apresentado com as pompas da estratégia, e com grande vantagem para os chineses. Mergulhada numa das maiores dívidas da União Europeia, a Itália não teve outra alternativa senão entregar os portos de Trieste e Gênova em troca da modesta exportação de laranjas da Sicília ao gigante asiático.

A China tem forte presença nos portos europeus do Mediterrâneo: tem pesados investimentos no grego Pireu, nos espanhóis Valência e Bilbao, nos franceses Le Havre e Marselha, no holandês Rotterdam, e em Malta. Já possuía virtual controle sobre o porto italiano de Vado Ligure. As novas aquisições portuárias compõem o quadro das várias cabeças de dragão da China nos portões da Europa.

Ao mesmo tempo, a China oferece renovar o fluxo financeiro para a Itália através do Banco Asiático de Investimento e Infra-estrutura, em um momento em que o país ingressou oficialmente em “recessão técnica” depois de dois meses com crescimento negativo, com uma dívida pública que alcança 130% do PIB. Estes resultados fizeram com que a chegada de Xi Jinping a Roma fosse tomada por sentimentos contraditórios no interior do governo italiano, composto pelo Movimento 5 Estrelas, de Luigi Di Maio, e pela extrema direita Liga, de Matteo Salvini. Salvini, mais próximo de Donald Trump, desenvolveu as preocupações de Washington com o acordo, anunciando receios de “colonização chinesa”; Di Maio, por outro lado, foi o principal defensor do estreitamento das relações com Pequim. O pacto com o diabo chinês só preserva a situação de “visconde partido ao meio” do governo italiano.

Os alarmes soaram, e a Europa adormecida parece ter acordado com um dragão na janela.

A ilusão do “supra-estado” da União Europeia

A última vez que os líderes da União Europeia mantiveram conversas estratégicas sobre a China havia sido durante o massacre da Praça de Tiananmen em 1989. Os 12 membros da união decidiram, naquele então, impor sanções ao que consideraram como “repressão brutal” pelo governo de Deng Xiaoping.

Quase 30 anos depois, a cúpula da União Europeia em Bruxelas se reuniu para, de modo um tanto desesperado e tardio, buscar arquitetar uma política comum diante da ameaça chinesa no que respeita à guerra comercial com os EUA, à segurança cibernética e à política industrial. No Financial Times, um dignitário da UE classificou a situação de maneira sóbria: “Enquanto estivemos absorvidos em nossas crises pelos últimos 10 anos, o PIB da China decolou e Trump foi eleito. Entramos sem saber num jogo diferente”.

A China já é a segunda parceira comercial da União Europeia (a UE é a primeira parceira comercial do governo chinês); em 2018, a China foi responsável por 20% das importações europeias, e por 10% das exportações do continente. A Europa tem grandes investimentos no “Reino do Meio”: companhias como a BASF, o Carrefour e a Siemens tem grande presença no país. A alemã Volkswagen foi a companhia automotriz com mais veículos vendidos na China nos últimos 20 anos, responsável por 39% da suas vendas no ano passado. A novidade é que o grau de investimentos chineses na Europa decolou nos últimos anos, pondo em risco ativos estratégicos dos principais países do continente, como a participação da China no Deutsche Bank (principal banco alemão), e a compra da fábrica de produção de robôs de alta tecnologia, KUKA.

O preço da hipnose europeia foi o alarme de assitir a China utilizar sua influência em expansão para ditar os termos do comércio e da diplomacia no Velho Continente. Para contrarrestar essa tendência, a União Europeia confeccionou seu próprio documento de estratégia, que catalogou a China como “rival estratégico”. Um movimento semelhante já havia sido adotado pela patronal alemã, que comanda a UE, no documento da Bundesverband der Deutschen Industrie (Federação das Indústrias Alemãs): define o gigante asiático como “competidor estratégico que utiliza todas as alavancas para ganhar supremacia tecnológica sobre seus parceiros comerciais”. Em 2018, foi Trump quem definiu a China como “competidora estratégica”, orientando o eixo da política externa norte-americana aos “conflitos entre as potências”, e abrindo uma guerra comercial contra a China.

Especialmente diante desse quadro, os governos imperialistas europeus voltam a sentir com força a ilusão de considerar a União Europeia como um “supra-estado”: pulverizado de fronteiras nacionais, interesses estatais e aduanas, as contradições do Velho Continente estouram por todos os poros desde o início da Grande Recessão em 2008, e tornam demasiadamente difícil uma conduta comum. A agonia da crise do Brexit, com as idas e vindas no processo de saída do Reino Unido da UE, é um sintoma patente das divisões internas no bloco europeu.

Outra dificuldade a uma “postura única” sobre a China é a política de Trump. Na área comercial, o protecionismo trumpista (sintetizado no “America First”) vai no sentido oposto do multilateralismo neoliberal das potências europeias. Ademais, Washington também ameaça a Europa com represálias tarifárias, tornando a ideia de uma frente única comercial transatlântica contra a China algo quase inimaginável.

Isso faz com que haja distintas posições políticas entre os estados europeus, e não uma única, no que respeita à ameaça chinesa.

A Itália não é o único estado que busca estreitar laços com Pequim. Portugal é um dos 13 países da UE que assinou memorandos de entendimento em apoio à Nova Rota da Seda. Antonio Costa, primeiro-ministro português, descreveu como “muito positiva” a experiência com os investimentos chineses. Além disso, a China tem profundas relações diplomáticas e econômicas com os países do Leste europeu. Estes países se reúnem no chamado “Sixteen plus One”, que agrupa dezesseis nações da Europa central e oriental com dívidas vultosas que as colocam numa situação de dependência com Pequim. Alguns governos temem que estes países terminem em situações como a do Sri Lanka que, incapaz de cumprir os pagamentos, teve de ceder a Pequim o controle do porto de Hambantota por 99 anos. Na Ásia, os efeitos da “armadilha da dívida” já fizeram com que países como a Malásia e as Maldivas cancelassem acordos comerciais com a China. Isso, entretanto, não foi capaz de diminuir a força do empuxo chinês.

Os resultados da penetração chinesa na Europa chegara ao ponto de gerar uma ala no interior do imperialismo alemão que defende a criação de “campeãs regionais”, mega-empresas que, em distintos ramos da economia, façam frente às gigantes chinesas. Peter Altmeier, atual ministro da economia da Alemanha, foi favorável às negociações entre a alemã Siemens e a francesa Alstom para conformar um monopólio de trens que fizesse sombra à chinesa CRRC, a maior companhia de equipamentos ferroviários do mundo. No caso da Alemanha, a abordagem é mais suave que a dos EUA: o país tem 5000 empresas na China, e um Investimento Estrangeiro Direto de 76 bilhões de euros. As cadeias de produção alemãs são muito interligadas com as exportações à China, o que dá um caráter “sui generis” à relação dos dois (a Alemanha é mais dependente da China que os EUA). No marco da surpreendente queda no índice de produtividade industrial da Alemanha, qualquer disputa mais feroz seria nociva para Berlim.

Somados os dividendos da Europa com o atraso na abordagem da “questão chinesa”, chegam a uma situação limítrofe esmagados entre o avanço do gigante asiático e o protecionismo trumpista, o que pode significar movimentos mais agressivos de autodefesa das potências europeias, em primeiro lugar da Alemanha.

Contradições do dragão chinês

O notável é que a China abriga enormes contradições internas, econômicas, políticas e sociais, e tem grande dificuldade em operar a transformação de seu padrão de crescimento adotada nos últimos 30 anos, passando de ser uma economia que exporta manufaturas de baixo valor agregado para uma economia de produção de alta tecnologia com pujante mercado interno. Sua dependência das exportações ainda é enorme, e sua produção de alta tecnologia ainda é pequena (a China importa quase a totalidade dos semicondutores que utiliza).

Ademais, a China experimenta ruídos de queda na economia. O crescimento econômico chinês desacelerou à menor taxa anual desde 1990, com um PIB de 6,4% no último trimestre de 2018, o menor desde o estouro da crise financeira global. São três trimestres consecutivos de desaceleração. Esses e outros dados levam especialistas econômicos a identificar os riscos de uma “aterrissagem dura” da China, com pouca margem de controle pelo governo do Partido Comunista Chinês, já que o mecanismo de estímulo à economia com incentivos estatais não são mais tão eficazes quando o país não necessita tanto assim de obras de infra-estrutura. Investidores estrangeiros também recuam de aumentar investimentos na China por receio das tarifas impostas por Trump. Esses fatores explicam as recentes concessões que o governo chinês veio fazendo aos EUA (como comprar duas toneladas de soja das fazendas norte-americanas), uma vez que a guerra comercial tem efeitos assimétricos, e afeta mais a China do que os EUA.

Mas a fotografia não é mais a mesma, em comparação com os últimos 10 anos. A China avança seus traços imperialistas, e em primeiro lugar com a Belt and Road Initiative. O que há alguns anos era apenas um projeto de construção de infra-estruturas em países vizinhos, se converteu em uma política expansiva que abrange distintos continentes em obras de transportes, gasodutos, oleodutos, construção de centrais energéticas, acordos comerciais de exportações e importações, investimentos financeiros e atividades comerciais. A ambição da China vai além: também busca construir fortes conexões marítimas – denominadas de Rota da Seda Marítima do Século XXI – no Mar da China Meridional, no Pacífico Sul e no Oceano Índico. Também está prevista uma nórdica “Rota da Seda do Gelo”.

A China ainda cresce economicamente, mesmo desacelerando, e investe uma proporção cada vez maior do PIB em investigação técnico-científica, desenvolvimentos espaciais e capacidade militar. As novas facetas da potência chinesa, se é verdade que enfrentam enormes dificuldades, também encontram símbolos gráficos de sua força: um país dependente de exportações de baixo valor agregado controla o sistema de telecomunicações de um país imperialista do nível da Inglaterra, algo inédito na história mundial.

Rupturas do equilíbrio instável – usando a categoria de Leon Trotsky – não estão descartadas na área da economia, da geopolítica e inclusive na arena militar. Trata-se de uma característica da época, que se torna mais Em seu sumamente interessante La actualidad de China, Rafael Poch-de-Feliu compara as situações da Europa com a da Ásia, afirmando que:

Na Ásia oriental, os estados nacionais tem uma tradição historicamente anterior à dos estados europeus, mas suas relações nos últimos quinhentos anos foram diferentes, mais estáveis, e muito menos guerreiras que a clássica situação europeia, onde a norma foi estados nacionais competindo uns com os outros sob o denominador comum de uma tendência geral a sua expansão geográfica”.

Podemos dizer com segurança que, em nossa época de crises, guerras e revoluções, não há possibilidade de que a China atinja por “vias pacíficas asiáticas” o status de potência imperialista.

 
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