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LEON TROTSKY
Para a burguesia, o diabo se chama Trotsky
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Em meio ao rufar de penas nas brigas internas do governo Bolsonaro, entre seus olavistas e a casta dos militares (incluindo os generais da reserva ainda alojados no Planalto), um nome surgiu dissonante: o do revolucionário Leon Trotsky. O russo ganhou as páginas de jornais, postagens em redes sociais e comentários nos convescotes políticos de Brasília. Particularmente, foi usado como utensílio de insulto por Eduardo Villas Boas, ex-comandante das Forças Armadas, contra ninguém menos que Olavo de Carvalho.

Villas Boas não encontrou outra qualificação para o guru do bolsarismo que “Trotsky de direita”. O próprio Olavo, ciente ao menos de que está tão longe de Trotsky quanto um faraó do Egito da revolução socialista, respondeu que a comparação é “pueril”. Outros analistas entraram no debate. Sakamoto corrigiu a analogia, e ligou o guru bolsonarista ao guru do czar Nicolau II, o feiticeiro Rasputin. Reinaldo Azevedo jogou a vara mais longe:

Trotsky foi um líder revolucionário, goste-se ou não dele. Era um prosélito poderoso em favor da revolução e também um homem da ação. Ao mesmo tempo em que escrevia compulsivamente, formava o Exército Vermelho. Olavo de Carvalho não consegue organizar nem as ofensas que dispara a esmo.

Os debates da burguesia e da imprensa brasileira começam a envolver insistentemente o nome de Trotsky, como a sombra de uma concepção de mundo temida pela classe dominante, que dela foge como da peste. Curioso recurso: cada menção de ódio à figura do revolucionário russo (frequentemente polvilhadas de ignorância, vide o atrapalhado Villas Boas) rende novo interesse em setores de massas pela verdadeira história do bolchevique e pelas ideias do comunismo.

Ver aqui: A Netflix e o governo russo se uniram para mentir sobre Trotsky

Internacionalmente, há não muito a Netflix lançou a série "Trotsky", dirigida por Alexander Kott e Konstantin Starsky. Impulsionada pela rede de propaganda estatal russa, a série jorra difamações torpes e falsificações atrozes que deixariam orgulhoso a antiga corte de historiadores stalinistas, um regime que sempre deturpou a figura e a obra daquele que, junto à Lênin, foi o mais importante líder da Revolução de Outubro de 1917 (ver aqui a campanha internacional de intelectuais e organizações políticas contra a série da Netflix).

Antes de voltarmos ao caso brasileiro, é preciso notar que essa conduta da burguesia, na Rússia, no Brasil e em outros lados do globo, é um sinal de grave preocupação, de debilidade e não de fortaleza. Ao mesmo tempo uma homenagem à sua maneira à vitalidade das ideias do marxismo revolucionário. Nos Estados Unidos, um país em que a esquerda foi devastada pelo macarthismo na década de 1950 e onde era uma heresia falar de "socialismo", 44% da juventude entre 18 e 29 anos preferiria viver num país socialista do que num país capitalista. O que concebem como "socialismo" está, por ora, vinculado a um ideário de redistribuição de riqueza e ao estado de bem-estar social, que ganham representação política em figuras tão inofensivas ao imperialismo norte-americano como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortéz (ambos tão solícitos em aceitar a retórica de "ajuda humanitária" com que Trump disfarça sua tentativa de golpe de Estado na Venezuela). Não por isso deixam de preocupar a nata dos magnatas das finanças e dos grandes monopólios dos Estados Unidos, que se reuniram no Milken Institute para debater um tema que parecia estar eliminado do horizonte histórico depois da queda da dissolução da União Soviética: o socialismo derrubará a supremacia do capitalismo em nossa época?

E se esta geração começar a entender que o socialismo não tem nada a ver com Sanders (como nunca teve a ver com Alexis Tsipras do Syriza na Grécia, ou com Pablo Iglesias do Podemos espanhol), e sim com o marxismo revolucionário? E se começar a nutrir simpatias pela figura de um...Trotsky?

As vãs tentativas de falsificação de figuras revolucionárias como Trotsky através de campanhas midiáticas como a da Netflix revelam o receio da burguesia internacional de que estejamos às portas de grandes choques da luta de classes e do retorno da ideia da revolução (Alan Schwartz, chefe da Guggenheim, dixit). Seria preciso afastar a juventude das grandes ideias e das personalidades que prepararam a derrubada do sistema capitalista (faz parte da mesma operação a depredação do túmulo de Karl Marx no Highgate em Londres). Trata-se de uma interpretação própria do conceito de "crises orgânicas" do marxista italiano Antonio Gramsci: surgem novas formas de pensar e sentir não apenas à direita, mas também à esquerda, ante a crise capitalista e o esgotamento do ciclo neoliberal, e de uma geração que está mais próxima da queda do Lehman Brothers que da queda do Muro de Berlim. As escaramuças ideológicas já estão a pleno vapor.

De volta ao Brasil, com muito menos sofisticação andam as escaramuças dos representantes do golpismo tupiniquim. Villas Boas se serve de um recurso político que não prima pela novidade: para degradar os grandes revolucionários, é costume da classe dominante estabelecer paralelos simétricos com figuras repulsivas que sempre foram os principais agentes dos interesses capitalistas. Igor Gielow, editor da Folha de São Paulo, compara a "brutalidade de Trotsky com a de Stalin", repetindo uma estúpida fábula adorada pelos historiadores liberais, índice do estreito limite mental a que atingem os "melhores" pupilos da anêmica intelligentsia burguesa.

Olavo de Carvalho é uma excrescência da extrema direita tanto quanto fruto intelectual da sociedade burguesa em decadência, que no Brasil apodrece ao som da ópera bolsonarista. Basta a metade da massa cefálica, já reduzida, de um Olavo de Carvalho para por de lado a analogia de Villas Boas. Mas ela nao deixa de ter interesse como indício psíquico. Villas Boas encontra na ala ideológica do governo o que considera como "trotskismo de direita", não apenas para tentar infantilmente deformar a personalidade de Trotsky, mas por identificá-la com aquilo que ameaça as "instituições consolidadas" da sociedade burguesa. Para a burguesia, o diabo se chama Trotsky.

Lutador incansável contra a política contrarrevolucionária da burocracia stalinista, sua violência torpe em colaboração com as burguesias mundiais, Trotsky foi o principal dirigente revolucionário a defender, no período entre 1924 a 1940, as bandeiras dos marxismo revolucionário com as quais, junto à Lênin, deu lugar ao maior acontecimento da historia humana em meio às catástrofes da Primeira Guerra Mundial. Contra a violência sangrenta do imperialismo e do stalinismo, tratava de reorganizar e dirigir, ombro a ombro com a vanguarda da classe trabalhadora, as fileiras do partido mundial da revolução socialista, que se materializou na IV Internacional criada em 1938 e fundada no que de melhor deu o marxismo e a experiência do movimento operário mundial (condensada nas lições dos quatro primeiros Congressos da Internacional Comunista, de 1919 a 1922). A teoria da revolução permanente de Trotsky, em seu carater de grande estratégia e teoria-programa do comunismo, foi a principal arma contra a "teoria" do socialismo em um só país, que sintetizava a partir de 1924 um programa de colaboração de classes da burocracia stalinista, cuja mediocridade era feita sob medida para preservar seus privilégios conquistados em base à usurpação do poder político dos trabalhadores. O artifício de comparar Trotsky a Stalin equivale a identificar os esforços teóricos e políticos do marxismo pela revolução mundial, com o trabalho reacionário de destruição dos processos revolucionários ao redor do globo. Deixamos esse expediente a figuras como Gielow e seus amigos depauperados intelectualmente.

Trotsky teorizou sobre as grandes mudanças na consciência e no estado de ânimo das massas que, sob o impulso das transformações materiais, davam origem a momentos em que dezenas de milhões de seres humanos rompiam as comportas do conservadorismo tomavam para si as rédeas de seus próprios destinos. Em História da Revolução Russa, Trotsky afirma que "É preciso buscar as mudanças na consciência coletiva por trás dos acontecimentos. Rechaçamos as referências sumárias à espontaneidade do movimento, que muitas vezes não explicam nada e nunca ensinam nada a ninguém. As revoluções ocorrem segundo certas leis. Isto não significa que as massas em ação sejam conscientes delas, e sim que as mudanças na consciência das massas não são acidentais, mas estão sujeitas a necessidades objetivas que se podem explicar de maneira teórica, o que fornece um fundamento que possibilita fazer prognósticos e lutar pela direção do processo".

Uma das maiores contribuições de Trotsky ao marxismo foi ser o teórico (e prático) da insurreição proletária, ou seja, da tomada do poder político. Seus escritos enfatizaram como as posições conquistadas da classe operária devem servir ao combate que – dirigido por um partido revolucionário – concentre num ponto determinado a tensão de todas as forças para desferir um golpe mortal no Estado burguês. Trotsky analisou caso a caso distintos processos revolucionários e os momentos históricos de desagregação do poder burguês, definindo as situações precisas da articulação entre a preparação defensiva e a ofensiva da classe operária, para tomada do poder ou para conquistar novas posições preparatórias visando a batalha decisiva: a insurreição revolucionária de massas e a tomada do poder.

Como diz Trotsky, em sua autobiografia Minha Vida, “O marxismo se considera como expressão consciente de um processo histórico inconsciente. Mas o processo ‘inconsciente’ em sentido histórico-filosófico só coincide com sua expressão consciente nos pontos culminantes, quando as massas, pelo impulso de suas forças elementares, arrebentam as comportas da rotina social e dão uma expressão vitoriosa às necessidades mais profundas da evolução histórica. A consciência teórica mais elevada que se tem de uma época, em um determinado momento, se funde com a ação direta das camadas mais profundas das massas oprimidas, afastadas de toda teoria. A fusão criadora do consciente com o inconsciente é o que se chama comumente inspiração. A revolução é um momento de impetuosa inspiração da história”.

E a mesma dialética na apreensão dos grandes processos históricos presidia sua percepção sobre os momentos de transformação em que setores de massas de jovens e trabalhadores se tornam mais abertos às ideias do socialismo revolucionário.

Podemos não estar tão longe desse momento. O ex-comandante Villas Boas sugere que as ideias de Trotsky (que de alguma forma abstrusa e exótica encontra no escritor da Virgínia) contribuem para minar a "coesão da sociedade brasileira". A despeito do caos cerebral que leva a tamanhas confusões, o militar fareja resquícios de algo real: a expansão da influência das ideias revolucionárias é o principal antídoto contra o projeto de país bolsonarista (que de coeso não tem nada), assim como a concepções reformistas que levam água ao moinho do projeto petista, de administração do capitalismo neoliberal decadente.

Em um encontro significativo entre Hitler e o embaixador francês Coulondre em agosto de 1939, às vésperas do estouro da Segunda Guerra Mundial, o segundo diz que, em caso de guerra, "o verdadeiro vencedor será Trotsky", sabendo que guerras são parteiras de revoluções em nossa época. Stalin, grande colaborador do imperialismo no papel de coveiro de revoluções em boa parte do século XX, estava longe de ser identificado como um perigo de ruptura sistêmica. As burguesias imperialistas deram ao espectro da revolução um nome próprio: seu diabo se chamava Trotsky. Décadas depois, a burguesia renova seu uso. Poucas coisas exemplificam melhor o orgulho de fazer parte dessa tradição que apavora os capitalistas e prepara conscientemente um novo porvir.

 
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