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CULTURA
Poesia contemporânea: Lubi Prates e a dura tarefa de Um Corpo Negro
Gabriela Farrabrás
São Paulo | @gabriela_eagle

A coluna de poesia contemporânea volta para falar do corpo-poesia-obra negro de Lubi Prates lançado no último ano.

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fotografia de Mayara Barbosa

O que é um corpo negro? Devorei o livro de estreia de Lubi Prates como quem teme e anseia. Ao terminar eu sabia que queria escrever sobre, mas sabia também que tinha medo de tatear essa obra. Guardei, voltei a ele, li e reli. Decidi deixar de lado na esperança que o temor se dissipasse e chego até aqui despreparada, apenas com a vontade.

Escrever este texto é para mim, uma felicidade em vários aspectos; pela força do seu texto, pelo denso corpo que o livro compõe, pelas soluções e provocações estéticas e temáticas nas quais a autora investiu. Mas não se iludam: é uma felicidade de pessoas negras, portanto, ela vem alquebrada, banzeira, atravessada pela dor que organiza nossas subjetividades; é uma felicidade guerreira.

  •  Livia Natalia, no prefácio do livro -
  • Um corpo negro colocou pra mim uma questão que já carrego há muito tempo comigo: Como se construir negro no próprio corpo com tanta história apagada, com tanta tentativa de embranquecimento, com tanto medo de ser negro (mesmo que já saibamos que somos negros desde sempre)?

    Os poemas não nos darão essa resposta, mas compartilharão uma caminhada, como já aponta Lubi na apresentação de seu livro intitulado “tornar-se negro/negra, um processo” - e não se sentir só é importante nessa jornada.

    “hoje, estamos em 2017. conforme se aproximava a data de lançamento deste livro, mais crescia em mim a percepção de que este livro não terminaria. ele era o resultado de um processo que precisaria ser interrompido para acontecer. isso porque é assim que eu enxergo o processor de tornar-se negro/negra: sem antes, sem depois. acontece no aqui, no agora, moldado pela sociedade, mesmo quando resisto e vou contra ela.” - Lubi Prates

    Há outras perguntas e o livro também será uma tentativa de responder o que é esse corpo negro formado por violências, por um passando além Atlântico, por um passado jogado no mar, um corpo que tem que ser em si um território já que foi (fomos) arrancado de seu território.

    A poesia de Lubi Prates me remete desde que tive contato com ela a musica (também poesia) de Luedji Luna; duas mulheres negras que trazem em sua mala tudo o que é ser negro, uma mala de mão que pesa tanto, uma mala que precisa ser carregada porque não há lar pra se deixar tudo o que vem dentro dela, uma mala que precisa ser carregada porque somos sempre imigrantes.

    É sintomático que tradicionalmente em sociedade só nos referimos a nós usando a palavra corpo quando não há mais vida; tudo parte de uma lógica de negar o próprio corpo, de negar que esse corpo é nosso, que temos direito a ele, que podemos amá-lo como ele é. Antes de começar o livro Lubi nos traz um poema de Alzira Rufino que diz em um dos versos: “este corpo carrega a realidade”. Aqui o corpo não é apenas o corpo - o que já é muito - é também o poema em si, o poema como corpo. E quando se trata de um corpo negro é ainda mais belo nos referirmos a ele como “um corpo negro”, um corpo belo por ser um corpo nosso sobre o qual devemos ter o direito desde a auto declaração até a que seja um corpo que ama e é amado. Tenho diferenças políticas com setores do movimento negro que declaram que negros devem apenas se relacionar com negros - mas não é nessa questão que entraremos; o fato é que um corpo negro que ama um corpo negro ama a si mesmo, se reconhece capaz de tudo, de toda a luta necessária, de toda sua potência. Acho que esse é o grande presente dessa obra trazer esse corpo negro pro centro da poesia como tema e também como o sujeito, a poeta, capaz de produzir tamanho feito.

    O livro traz as dores, o “desamparo”, os “escombros”; mas ele também traz uma força de quem diz “não tenham pena de mim” e o leitor que sentir pena do que se passa nesse corpo negro se sentirá envergonhado e culpado. Apesar de trazer essa dor a poesia de Lubi não é dramática ou trágica, é cotidiana - sobre o racismo cotidiano -, é pessoal, fala pouco pra falar muito, fala do micro pra falar do macro.

    Lubi Prates nasceu em 1986, em São Paulo, é poeta, editora e tradutora, se planta como uma poeta negra pronta pra colocar “um corpo negro” no centro da roda sem pedir licença. Abaixo reproduzimos três dos poemas e uma leitura minha da poesia de Lubi (além dessa que acabo de fazer), essa grande poeta que deve ser lida e investigada.

    1.

    para este país

    para este país
    eu traria

    os documentos que me tornam gente
    os documentos que comprovam: eu existo
    parece bobagem, mas aqui
    eu ainda não tenho esta certeza: existo.

    para este país
    eu traria

    meu diploma os livros que eu li
    minha caixa de fotografias
    meus aparelhos eletrônicos
    minhas melhores calcinhas

    para este país
    eu traria
    meu corpo

    para este país
    eu traria todas essas coisas
    & mais, mas

    não me permitiram malas

    : o espaço era pequeno demais
    aquele navio poderia afundar
    aquele avião poderia partir-se

    com o peso que tem uma vida.

    para este país
    eu trouxe

    a cor da minha pele
    meu cabelo crespo
    meu idioma materno
    minhas comidas preferidas
    na memória da minha língua

    para este país
    eu trouxe

    meus orixás
    sobre a minha cabeça
    toda minha árvore genealógica
    antepassados, as raízes

    para este país
    eu trouxe todas essas coisas
    & mais

    : ninguém notou,
    mas minha bagagem pesa tanto.

    Ele não me viu com a roupa da escola, mãe?

    Marcos Vinicius da Silva, 14 anos,
    assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro

    e ainda que
    eu trouxesse

    para este país

    meus documentos
    meu diploma
    todos os livros que li
    meus aparelhos eletrônicos ou
    minhas melhores calcinhas

    só veriam
    meu corpo

    um corpo
    negro.

    2.

    tudo aqui é um exílio

    apesar do sol
    das palmeiras
    dos sabiás,

    tudo aqui é
    um exílio.

    tudo aqui é
    um exílio,

    apesar dos rostos
    quase todos negros
    dos corpos
    quase todos negros
    semelhantes ao meu.

    tudo aqui é
    um exílio,

    embora eu confunda
    a partida e a chegada,

    embora chegar
    apague
    as ondas que o navio
    forçou no mar

    embora chegar
    não impeça
    que meus olhos
    sejam África,

    tudo aqui é
    um exílio.

    3.

    quem tem medo da palavra
    NEGRO
    quando ela não ultrapassa
    as páginas do dicionário e
    do livro de História?

    quem tem medo da palavra
    NEGRO
    quando ela está estática ou
    cercada por outras palavras
    nas páginas policiais?

    quem tem medo da palavra
    NEGRO
    se transforma em:
    moreno mulato
    qualquer coisa bem perto de
    qualquer coisa quase
    branco?

    quem tem medo da palavra
    NEGRO
    se quando eu digo
    faz silêncio?

    quem tem medo da palavra
    NEGRO
    que eu não digo?

    quem
    tem
    medo
    da
    palavra
    NEGRO

    quando ela não faz pessoa:
    carne osso e fúria?

     
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