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LITERATURA
Quando alguém nos conta histórias do povo
Afonso Machado
Campinas

LITERATURA POPULAR: Vamos a uma conversa imaginária ocorrida em uma possível família proletária brasileira dos nossos dias.

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Quando alguém vem de longe e decide nos visitar numa tarde de domingo, a curiosidade sobre as notícias que o visitante traz não é pequena. Arrumamos a mesa, estendemos uma toalha legal, servimos bolo de fubá, café e se coincidir com a época do nosso pagamento, aquele dinheirinho a mais no bolso, também colocamos sobre a mesa uma garrafa de guaraná e alguns biscoitos. Então o visitante nos conta sobre como andam as coisas na sua cidade, quem morreu, quem é vivo, as dificuldades, os malogros e os sabores do dia a dia. Imaginamos os acontecimentos narrados, que podem inclusive hoje receber o auxílio visual do celular com fotos de ciclano, vídeos de fulano ou ainda de paisagens e objetos que atiçam a curiosidade. Puro prazer! Porem, mesmo que o visitante não queira, os dramas e conflitos da sociedade brasileira não ficam do lado de fora da casa: estes são fantasmas históricos que habitam as notícias de norte a sul trazidas pelo viajante.

Vamos a uma conversa imaginária ocorrida em uma possível família proletária brasileira dos nossos dias. Lá está o visitante: Márcio, um velho marinheiro de 74 anos, veio de uma metrópole brasileira visitar a filha Joana, que mudou-se recentemente para uma cidade do interior com os dois filhos, ambos adolescentes. A notícia de que num determinado hospital de uma cidade brasileira, está faltando medicamentos, ar condicionado, água e até médicos, nos choca e pode ser noticiada de muitas maneiras por uma reportagem. Mas imaginemos o velho marinheiro Márcio, após entrar na casa da filha e distribuir beijos e abraços, reportando este fato ocorrido na sua cidade de origem . Ele se senta, apoia as costas numa cadeira de madeira que range, e trata do citado fato ao mencionar o menino Zequinha, filho da vizinha Dona Maria, que foi levado às pressas de madrugada para o hospital com uma crise de apendicite. Por não ter nenhum transporte público àquela hora da noite, Márcio prontamente pegou o seu carro e levou a mãe e o filho a um hospital público. Apesar dos esforços dos enfermeiros, o local não tem estrutura(vagas, água, medicamentos etc) e o garoto de apenas 7 anos acabou morrendo. O impacto sobre os presentes é indescritível... Todos se lembram da Dona Maria e do Zequinha, e sofrem um bocado com a notícia(todos perderam a fome... O bolo de fubá posto sobre a mesa ficou intocado). Mesmo que esta família nunca tenha ouvido falar em conceitos como luta de classes, seus membros sentem institivamente de que lado eles estão na arena social/política.

Obviamente que a tragédia do Zequinha, somada às privações e dificuldades no dia a dia dos trabalhadores brasileiros, são em si insuficientes para despertar o inconformismo e a luta por mudanças. Mas se alguém como a Dona Joana e seu filho mais velho Miguel, que passa as noites lendo e tendo ideias, decidirem escrever estas histórias e publica-las, eles estarão inseridos num movimento intelectual em que o texto jornalístico e o texto literário podem tornar-se expressões de crítica e resistência. Este tipo de literatura estará inserida na gigantesca luta política da classe trabalhadora. As centenas de milhares de mães como Dona Maria precisam ser autoras e juntas a outros trabalhadores devem desenvolver o hábito de anotar, de relatar sua realidade e suas lutas. Isto em parte já existe, está documentado, como atestam por exemplo os artigos, os contos e as peças de teatro que autores proletários redigiram em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro durante o início do século passado. Hoje, além da necessidade de controlar os meios de produção literária, os trabalhadores devem apropriar-se de documentos históricos para escrever suas versões da história das lutas dos oprimidos no Brasil e no mundo.

Márcio poderia estar entre os outros marinheiros que lá no início dos anos de 1960, durante a era Jango, assistiram ao filme O Encouraçado Potemkin(1925) do cineasta soviético Serguei Eisenstein. O filme teve um enorme impacto entre aqueles marinheiros brasileiros amotinados num Brasil ás vésperas do Golpe de 64: o filme expressa o sentimento de revolta dos marinheiros russos da época do czarismo frente aos maus tratos, frente à opressão. Era exatamente isso que Márcio e seus companheiros sentiam. Se Márcio tiver um entendimento crítico da história, ele irá sugerir conexões políticas entre os marinheiros russos da Revolução de 1905( representados no filme de Eisenstein) com os marinheiros brasileiros liderados por João Candido na Revolta da Chibata de 1910 e ainda com a sua própria geração de marinheiros, que presenciou também um intenso período de agitação política. Naquela tarde de domingo, Márcio narrou estas histórias que misturam num mesmo enquadramento marinheiros rebeldes, alimentando assim a imaginação literária da sua filha e do neto Miguel: após publicarem a história da Dona Maria e do menino Zequinha, eles também podem escrever, a partir de fatos envolvendo marinheiros, sobre épocas de rebeldia no seio do proletariado.

Naquelas agradáveis tardes de domingo, trabalhadores podem conversar e ler sobre muitas coisas. Se a maioria das pessoas se orienta por um mundo de aparências portador de histórias que tratam de bobagens, abramos nossas casas no domingo para aqueles que contam histórias uteis para o povo. Não nos esqueçamos dos biscoitos.

 
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