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Reforma Universitária de Córdoba: Impactos na América Latina e lições para o tempo presente
Gonzalo Adrian Rojas

Na última sexta-feira, 10 de agosto, organizado pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no marco dos Debates Interdisciplinares, ministrei uma conferência sobre a Reforma Universitária de Córdoba, seus Impactos na América Latina e lições para o tempo presente desde Esquerda Diário.

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Há 100 anos da Reforma Universitária é central explicar seu conteúdo, limites e lições para uma melhor intervenção na luta de classes.

Retomamos alguns dos argumentos apresentados numa mesa debate sobre o tema realizada na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) que se encontram em esta matéria de minha autoria, e desenvolvemos outros, assim como o vídeo completo da referida nesta outra matéria de Kleiton Nogueira.

O movimento da Reforma Universitária de Córdoba de 1918, foi um movimento profundamente subversivo, expressão de um conjunto de contradições econômicas e sociais que vivenciava a Argentina em particular e a América Latina em geral nesses anos. Desde um ponto de vista marxista, realizamos uma análise classista do conteúdo desse movimento no marco da formação econômico -social argentina do período, num contexto marcado por guerras e revoluções no plano mundial. A Revolução Mexicana de 1910, a Primeira Guerra Mundial iniciada em 1914 e a Revolução Russa de 1917.

Do ponto de vista estrutural, os grandes fazendeiros, uma classe social moderna, que se beneficia com a renda diferencial da terra no mercado mundial capitalista, seja pela fertilidade própria da planície dos pampas e os médios de comunicação que comunicavam rapidamente com o porto de Buenos Aires, fortemente vinculada primeiro à Inglaterra e depois aos Estados Unidos, vai perdendo espaço político com a reforma política que significou no país a Lei Saenz Peña 1912. Esta mudança na lei eleitoral permitiu a chegada ao governo do presidente Hipólito Yrigoyen no ano de 1916 integrante da União Cívica Radical (UCR). Independentemente desta mudança política no plano educativo, a Igreja continua tendo peso político muito forte, fundamentalmente nas universidades. Em 1918 na Argentina existiam cinco universidades, a de Buenos Aires, La Plata, Santa Fé, Tucumán e Córdoba, esta última fundada em 1613 e fortemente clerical, expressando em Córdoba um conjunto de tensões da situação política mundial.

A subordinação às grandes potencias eram rejeitadas pelas classes médias, base do radicalismo (que não deve ser entendido no sentido inglês do termo) e por um conjunto de intelectuais que tinham peso e influência no movimento estudantil, tanto na Argentina como em outros países da América. José Ingenieros na Argentina, Raúl Haya de la Torre e Juan Carlos Mariátegui no Perú, Juan Antonio Mella em Cuba e José Vasconcelos no México são importantes exponentes deste tipo de intelectual. Existia um sentimento anti-imperialista forte nas classes médias e na juventude que expressavam alguns destes intelectuais. Especificamente sobre o marxista peruano Mariátegui, indicamos este artigo que escrevemos com Shimenny Wanderley para esta rede de jornais internacional na ocasião dos 90 anos de publicação dos "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana" onde se apresenta sua polémica com o líder da Aliança Popular Revolucionária Americana (PARA), Raúl Haya de la Torre.

A Argentina um país semicolonial, assim como no resto da América Latina, não existia uma burguesia que realize as tarefas históricas da burguesia, e o movimento operário, mesmo com certa força, ainda não era um ator político por duas razões, a primeira que estava composto de uma grande massa de imigrantes que não tinham direitos políticos, e a segunda que por sua ideologia que se dividia num Partido Socialista (PS) reformista, nas trilhas do socialista francês Jean Jaurés e ideologias antipolítica, como o anarquismo ou o sindicalismo revolucionário soreleano.

León Trotsky afirma que quando a burguesia não resolve os problemas da sociedade burguesa e o proletariado ainda não consegue assumir essa tarefa, são os estudantes aqueles que ocupam a cena política.

Justamente a Reforma Universitária expressa a contradição entre o avanço da ciência, regimes políticos mais flexíveis e certos avanços sociais, com a decadência das “casas de altos estudos”. Existia uma contradição entre ciência e religião, sendo que nas universidades não era aceito Charles Darwin e se mantinham disciplinas de caráter medieval como “Direito para com os servos”. Estas contradições, não são só locais, se apresentam também de forma desigual e combinada em cada país.
O Manifesto Liminar é claro:

“As universidades tornaram-se assim o verdadeiro reflexo dessas sociedades decadentes que se esforçam para oferecer o triste espetáculo da imobilidade senil. É por isso que a Ciência, em frente a estas casas silenciosas e fechadas, passa silenciosamente ou vai mutilada e grotesca ao serviço burocrático”

A Reforma Universitária de Córdoba

Diferenciamos três etapas no movimento da Reforma Universitária, os quais expressam diferentes avanços na consciência do movimento estudantil.

A primeira etapa se inicia no final de 1917, onde os estudantes realizam um abaixo assinado dirigido ao Ministério de Instrução Pública reclamando uma democratização do sistema de cátedras, a liberdade de cátedra.

As demandas não são satisfeitas e em 1918 o movimento surge com mais força, se realizam assembleias de base, mobilizações de rua e surge uma forma organizativa muito relevante que será a criação do Comitê Pró-reforma no dia 10 de março de 1918, desde onde posteriormente se criará a Federação Universitária de Córdoba (FUC). Este comitê declara a greve geral até que sejam atendidas as demandas pelas autoridades correspondentes e tem um acatamento massivo por parte dos estudantes que não iniciam as aulas no dia 1 de abril de 1918.

A greve tem como objetivo a intervenção do governo, coisa que o Presidente Hipólito Yrigoyen realiza já que os estudantes fazem parte de sua base social, sendo nomeado José Matienzo como interventor.

A primeira etapa do movimento se fecha, se realiza uma primeira reforma do estatuto que permitiu ampliar a base docente que intervinha nas eleições das autoridades universitárias. Os estudantes entendiam que se ingressavam professores mais jovens, de ideologia liberal, existia a possibilidade de escolher autoridades universitárias não católicas nos diferentes níveis, na perspectiva que professores sem privilégios seriam aliados. Confiavam na institucionalidade surgida dessa reforma do estatuto.

A segunda parte do processo de luta se realiza no dia 15 de junho de 1918, que se reuniria a Assembleia Universitária para escolher ao novo reitor. Enquanto os estudantes defendiam um liberal, Enrique Martínez Paz, foi eleito Antonio Nores, candidato das oligarquias docentes, tendo até docentes liberais que votaram pelo candidato conservador e clerical, o que gerou uma ruptura dos estudantes com uma fração dos docentes.

Como caraterística da etapa temos a ação direta, a violência estudantil, quebra de janelas e móveis para impedir o funcionamento da assembleia universitária, enfrentamentos com a polícia e a elevação das reivindicações por parte dos estudantes, elaboração de projeto de lei por parte do Congresso dos estudantes, que incluía o governo tripartite e paritário e a docência livre, a liberdade de cátedra.

A greve se inicia em Córdoba, mas logo se nacionaliza, e o ponto mais alto deste período é a publicação do Manifesto Liminar de Córdoba, escrito por Deodoro Roca, onde aparecem os elementos ideológicos da Reforma Universitária. Temos como caraterísticas o americanismo, internacionalismo, já que juventude de Córdoba se dirige aos homens livres de América do Sul, aparecendo como uma declaração romântica pela independência dos Estados latino-americanos. Isto se expressa desde o título: “Manifesto liminar da Reforma Universitária. A juventude argentina de Córdoba aos homens livres da América do Sul”.

Um dos limites do movimento é que acreditavam na independência como uma questão nacional sem ter em consideração o caráter das burguesias latino-americanas, não consideram que as próprias burguesias são um empecilho à essa independência e que esta tarefa fica nas mãos da classe trabalhadora.

Outra caraterística relevante desta etapa é a adesão à luta da Federação Operária de Córdoba (FOC), máximo organismo sindical local, fato central.

A terceira etapa é a tentativa dos estudantes de virar o jogo em favor dos estudantes, mudando a metodologia de ação. Os estudantes tomam a universidade e a colocam sob seu controle, nomeiam professores, representantes, empregados, organizam as atividades curriculares e bancas de exames. Se fecha o período com a vitória dos reformistas intervindo mais uma vez o Ministério de Instrução, o qual muda os estatutos da universidade e até 1921 foram mudados de todas as universidades.

A Reforma Universitária de Córdoba, uma verdadeira rebelião estudantil, teve um forte impacto na América Latina, centralmente no Peru e Cuba. No plano regional, a reforma expressa a luta da juventude contra a velha ordem. No Peru com a universidade Gonzalez Prada e em Cuba com a concepção socialista vinculada à classe trabalhadora numa perspectiva revolucionária. Os papeis de Mariátegui e Mella são centrais.

A crítica a universidade fechada em si mesma tem como objetivo ligar a universidade às problemáticas sociais da classe trabalhadora. Pela reforma existem até hoje as políticas de extensão universitária. Isto se expressa no apoio dos estudantes à relevante greve geral de 1919, conhecida como “A semana trágica” através da Federação de Santa Fé e a de Córdoba. Mesmo sendo uma minoria do movimento estudantil que participa ativamente deste apoio é qualitativamente importante. Tanto no Peru como em Cuba se propõem produzir conhecimento a serviço da classe trabalhadora. A Universidade Popular González Prada no Peru tem como objetivo intervir nos conflitos operários sob a base da “justiça social” e a José Martí em Cuba procura formar uma classe operária com uma mentalidade culta nova e revolucionária. Em momentos em que no Brasil a esquerda em geral entende que deve se negar a elevação da consciência da classe trabalhadora se adaptando a ideologia dominante, o objetivo de Mariátegui e Mella era também o do comunista italiano Antonio Gramsci, mais renascentismo, elevar a consciência da classe trabalhadora sem rebaixar o programa ao nível do senso comum.
O Manifesto liminar conclui:

“A juventude não pede mais. Exige ser reconhecido o direito de exteriorizar esse pensamento próprio nos corpos universitários através de seus representantes. Está cansada de suportar tiranos. Se foi capaz de fazer uma revolução nas consciências, não pode se ignorar a capacidade de intervir no governo da sua própria universidade. A Universidade de Córdoba, através de sua Federação, cumprimenta os companheiros de toda a América e incentiva a colaboração no trabalho de liberdade que começa.”

Em relação a vigência e atualidade da Reforma Universitária, é central debater a necessidade de mudar a estrutura universitária. Um grupo de professores ainda tem privilégios, por isso é preciso democratizar a universidade, a qual não funciona em termos sequer de Revolução Francesa, uma pessoa um voto, senão de Ancien Regime, de forma aristocrática. Questões democráticas mínimas como co-governo com maioria estudantil, eliminar a figura do reitor e contratação dos terceirizados sem concurso público, aparecem como necessidades urgentes. O objetivo de vincular a universidade aos problemas da sociedade também é relevante e atual, que se manifestava em termos de Deodoro Roca, não já de um Mariátegui, abrir as portas da universidade ao povo e a classe trabalhadora, ou a conclusão de Julio Antonio Mella, que tira uma conclusão socialista da reforma universitária com a necessidade de vincular a universidade à classe trabalhadora numa perspectiva revolucionária, anticapitalista. A crítica ao conhecimento fragmentado da realidade frente ao pós-modernismo ambiente das universidades também é atual, ao qual devemos opor uma visão científica e de totalidade.

Em síntese, é preciso construir um novo movimento estudantil que tome como experiência a Reforma Universitária de 1918, mas que como o Maio Francês de 1968 ou no Cordobazo de 1969 na Argentina, se vincule à classe trabalhadora, e além de criticar a estrutura universitária, critique a sociedade de classes desde uma perspectiva autônoma dos patrões, dos governos, do Estado e das reitorias, para assim pensar uma universidade pública gratuita e a serviço da classe trabalhadora e dos setores populares.

 
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