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KARL MARX CAPITAL
O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo: conclusões do primeiro capítulo de O Capital de Karl Marx
Antonio A. Quiozini
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No dicionário Aurélio, fetiche é um “objeto animado ou inanimado, feito pelo homem ou produzido pela natureza, ao qual se atribui poder sobrenatural e se presta culto”, enquanto fetichismo é uma “perversão sexual em que se atribui a um objeto ou a uma parte do corpo o poder de produzir orgasmo, ou de ajudar a produzi-lo”.

No dia a dia, muitos de nós já ouvimos vários tipos de expressões com essas palavras: “fulano tem um fetiche sexual...gosta de transar fantasiado”, “ciclano tem um fetiche com aquela marca de roupa”, “a sociedade é fetichista” e por ai vai. De elemento comum, o uso da palavra nos dá a sensação de algo falso, imaginário ou ligado a algum desejo.

No âmbito dos fenômenos do capitalismo, muitos tendem a ver o fetiche como estratégia comercial: para vender um carro por exemplo, as empresas fazem propagandas em lugares paradisíacos, com casais ou famílias felizes, muita tranquilidade etc. Transmite-se uma mensagem de que o carro vai te proporcionar todas aquelas emoções e sensações. Uma mercadoria, um objeto, passa a ter “propriedades mágicas”.

Dentro da teoria de Marx, porém, o fetiche da mercadoria ocupa um lugar essencialmente distinto em sua investigação e crítica do capitalismo. Análises sistematizadas se encontram no final do primeiro capítulo de O Capital, mas as reflexões sobre o fetichismo das relações econômicas – não só da mercadoria – permeiam toda a obra.

O economista russo Isaak Rubin, chega a falar em uma “teoria do fetiche” que seria “a base de todo o sistema econômico de Marx, particularmente de sua teoria do valor” (RUBIN, 1987, p. 19). Para ele, tanto adversários como defensores do marxismo caíram no erro de trata-la como algo separado e independente de sua análise econômica.

Mas afinal, no que consiste o fetichismo da mercadoria para Marx? Nas suas palavras:

“O misterioso da forma mercadoria consiste simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos” (MARX, 1988, p. 71).

Uma definição um tanto complicada. Mas logo depois Marx nos dá uma pista: “Esse caráter fetichista do mundo das mercadorias provém (..) do caráter social peculiar do trabalho que produz mercadorias” (idem, grifos nossos).

Assim, para captar seu raciocínio, devemos retornar ao início do primeiro capítulo, em que se analisa as particularidades do trabalho (e de seus produtos) em uma economia produtora de mercadorias. Mas antes, é necessário fazer algumas considerações metodológicas.

O método de Marx

Alguns interpretes dizem que a investigação de O Capital segue uma ordem histórica e que seus primeiros capítulos se referem a fenômenos de uma economia mercantil simples, que existiu antes do capitalismo: algo como o sistema de trocas que existiu nas cidades da Idade Média.

Essa objeção nos levaria a conclusão que a análise do fetiche da mercadoria não diz respeito ao capitalismo, já que Marx se debruça sobre o tema no final do primeiro capítulo. Essa interpretação, no entanto, é equivocada.

Mais do que histórica ou cronológica, a estruturação de O Capital segue uma ordem metodológica (ROSDOLSKY, 2001, p. 151), (HARVEY, 2013, p. 41). Marx é o primeiro pensador a tratar da economia política a partir do método dialético, que pressupõem que para se captar a matéria social deve-se percorrer o caminho “do abstrato ao concreto” (MARX, 1982, p. 14).

Isso significa que, nos primeiros capítulos, Marx analisa a sociedade capitalista em seus aspectos mais gerais para se aproximar paulatinamente da realidade. É justamente por isso que Marx inicia sua exposição a partir da análise da mercadoria: “a forma mais geral e menos desenvolvida da produção burguesa” (MARX, 1988, p. 77).

Se categorias como capital, salário, força de trabalho, mais-valor, lucro, juros etc. estão fora das reflexões nesse primeiro capítulo, não é porque Marx está falando de um passado longínquo, mas porque, para ele, compreender as categorias mais “simples” é um pressuposto para o entendimento dessas categorias mais “complexas” (MARX, 1982, p. 14-19).

A mercadoria já existia em formas pretéritas de produção, mas somente sob o capitalismo ela se torna a forma dominante em que se objetiva os produtos do trabalho humano. Em modos de produção anteriores “a existência dos homens como produtores de mercadorias, desempenha papel subordinado” (MARX, 1988, p. 75) isto é, não produzia-se predominantemente para a troca.

Nos centros urbanos medievais, podemos observar o artesão que era proprietário das próprias ferramentas de trabalho e produzia para o mercado. No entanto, essa produção cobria parcamente suas necessidades e, no melhor dos casos, o ajudava a melhorar sua condição de vida ou recrutar mais alguns aprendizes. Além disso, esse “pequeno modo de produção mercantil” era cercado por um mundo rural dominado por relações servis, em que a maior parte da produção era voltada para a autossuficiência dos feudos.

Fato inegável dessa enorme potencialização das relações mercantis no capitalismo é que o próprio trabalhador se torna mercadoria: como foi expropriado dos meios de produção do trabalho (as ferramentas, instalações, matérias primas, terras etc.) têm que ir ao mercado constantemente e oferecer sua única propriedade, a força de trabalho, em troca de uma quantia monetária que garanta sua subsistência.

Se olharmos atentamente, quanto mais o capitalismo se impõem, mais ele expande as relações de troca e luta para transformar as coisas em mercadorias. Para isso, basta ver a constante tendência à privatização dos espaços, da educação, transporte, saúde etc. Coisas e serviços que eram regulados pela esfera pública entram na esfera da troca e passam a ser administrados pela lógica do mercado.

A “forma mercadoria” se torna tão forte no capitalismo, que ela se autonomiza e adere às coisas que não são produtos do trabalho humano. Marx percebia isso claramente quando dizia que “coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como por exemplo consciência, honra etc., podem ser postas à venda por dinheiro pelos seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria” (idem, p. 91).

Enfim, o modo de produção capitalista só pode existir como produtor de mercadorias. Muitas das confusões surgem em razão dos exemplos utilizados nesses primeiros capítulos, em que Marx nos diz para considerar os diversos produtores de mercadorias como “proprietários dos seus próprios meios de trabalho e das condições de produção”. Essa suposição, dá a entender que ele está falando de uma produção artesanal.

Mas não se trata disso. É importante ter claro, que nesse primeiro capítulo, Marx procura abstrair a divisão técnica do trabalho, ou seja, as especializações das atividades que surgem dentro de um mesmo ofício como, por exemplo, a divisão das atividades dos trabalhadores dentro de uma fábrica. Ele só irá se debruçar sobre a divisão técnica a partir do capítulo XII.

Sua atenção é voltada para a divisão social do trabalho, isto é, a divisão que existe na sociedade em que proprietários privados isolados produzem mercadorias diferentes: uma produtora faz chapéus, um produtor faz cadeiras, outro produtor faz mesas etc. Ele faz isso por uma questão de método, pois se focasse a análise sobre os dois processos ao mesmo tempo, poderia confundir as particularidades de cada um e chegar a conclusões equivocadas.

Em linhas gerais, podemos dizer que desde os primórdios do modo de produção capitalista até ele chegar a sua maturidade, a divisão técnica e social do trabalho caminhavam próximas uma da outra. Avanços na divisão técnica (e na produtividade do trabalho) impulsionavam a divisão social do trabalho e vice-versa. Adam Smith e seus seguidores escreveram rios de tinta para comprovar cientificamente que o desenvolvimento da propriedade privada era a forma necessária e mais adequada para a potencialização do trabalho humano e o consequente crescimento das riquezas.

A concorrência obrigaria os proprietários privados a reduzir os custos de suas mercadorias e, por isso, seriam forçados a introduzir constantemente transformações técnicas na produção. Era assim, basicamente, que a burguesia legitimava a propriedade privada. Se prestarmos atenção, esses argumentos aparecem até hoje com roupagens diferentes: para seus ideólogos, o capitalismo é o melhor sistema econômico pois impulsiona o “empreendedorismo”, a “inovação” etc.

Marx não tinha como negar que a divisão técnica do trabalho e inclusive a propriedade privada tinham cumprindo papéis progressivos para a humanidade. Ambas foram uma alavanca decisiva para o aumento da produção de riquezas, potencializando o trabalho de cada indivíduo e abrindo caminho para a introdução da maquinaria no processo produtivo.

Mas Marx tinha muito claro que os economistas burgueses mistificavam a realidade ao explicar esse processo. Nas análises sobre as diferentes formas de extração do mais-valor na Seção V do Livro I, ele demonstra que a burguesia introduziu uma série de modificações no processo produtivo não para que a sociedade produzisse mais e melhor, mas para potencializar a exploração dos trabalhadores que ela comandava.

E mais: quando ele estuda o capitalismo no século XIX, ele percebe que a propriedade privada e as transformações produtivas começaram a entrar em descompasso, ou melhor dizendo, em contradição. A propriedade privada tinha se tornado um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas do trabalho.

Esse é um resultado que Marx nos mostra só no final do Livro I e, ainda que não podemos esmiuçá-lo agora, nos ajuda a entender o nosso problema:

Se Marx também considerasse a divisão técnica junto à divisão social do trabalho nesse primeiro capítulo, ele correria o risco de cair no mesmo erro dos economistas burgueses, que identificavam essas duas variantes da divisão do trabalho como forma de legitimar a propriedade privada.

Se lermos os primeiros capítulos de A riqueza das nações, veremos que Smith não distingue conceitualmente os dois processos. A divisão das atividades dentro de um fábrica de alfinetes e a divisão entre diversos ofícios privados são a mesma “divisão do trabalho” (SMITH, 1996, p. 65-76). Existe uma ligação natural entre ambas. Uma não pode existir sem a outra.

É por isso que Marx supõem que os diversos produtores “são proprietários dos próprios meios de trabalho e das condições de produção”. Não porque ele quer falar de uma economia mercantil simples anterior ao capitalismo, mas porque, se ele considerasse esses produtores como proprietários de máquinas que empregam centenas de trabalhadores, ele teria que lidar com fenômenos da divisão técnica do trabalho que atrapalhariam sua análise, impossibilitando-o, assim, de investigar a produção baseada na propriedade privada em sua “pureza”.

Analisando a mercadoria

Assim, em seu aspecto mais geral, o modo de produção capitalista pode ser concebido como uma série de produtores privados isolados. Podemos também supor – para simplificar as coisas – que cada produtor é dono dos seus próprios meios de trabalho e das condições de produção. O objetivo principal deles não é a subsistência, nem a autossuficiência, mas produção de objetos direcionada para a troca no mercado. É nesse sentido que Marx abre seu livro dizendo: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’” (idem, p. 45).

Estamos frente uma avançada divisão do trabalho, uma “dependência universal” dos trabalhos particulares. Por exemplo: se o produtor A só produz cadeiras, ele precisa buscar no mercado outras mercadorias para satisfazer o restante de suas necessidades (ele não pode comer e beber cadeiras, se vestir com cadeiras), além de continuar o processo produtivo (ele precisa comprar madeira, pregos, ferramentas que se desgastam, etc.).

Marx, logo de cara, nos apresenta a principal contradição desse tipo de organização social: a economia mercantil produz uma cisão nos produtos do trabalho quando os transforma em mercadoria.

Os objetos produzidos tem, por um lado, um valor de uso, “suas propriedades satisfazem necessidades humanas de qualquer espécie” (idem), por exemplo: o valor de uso de uma cadeira é acomodar melhor as pessoas, o valor de uso da camiseta é vestir homens e mulheres, proteger do frio, do sol etc. Por outro lado, esses mesmos objetos são portadores de valor: uma quantidade de trabalho humano indiferenciado que foi necessário para sua produção. Que isso significa?

Como os diferentes objetos produzidos são resultados de processos de trabalho distintos – que tem suas especificidades – a sociedade exerce uma tendência a igualar esses diversos tipos de trabalho para que seja possível sua comparação e sua troca. Não se trata de uma abstração intelectual, mas de um mecanismo que nasce das próprias condições objetivas de uma sociedade de produtores privados de mercadorias.

Por exemplo: o trabalho do alfaiate é diferente do trabalho da tecelã de linho, pois fazer casacos e tecer linho são atividades muito distintas. Para ser alfaiate e fazer casacos, minhas matérias de trabalho são tecidos já preparados, linhas para costura etc. Minhas ferramentas são agulhas, fita de medição e tesoura. Além disso, preciso condicionar olhos, mãos e cérebro na arte específica da costura para que o casaco não fique com nenhum buraco, caia bem no meu cliente e ele fique satisfeito. Já para ser tecelã e produzir linho, minhas matérias e ferramentas de trabalho são outras. Ela depara-se essencialmente com o linho depurado e com o tear. Ela ainda precisa ajustar os feixes de fio na tensão correta e desenvolver a habilidade de manejar o pente do tear de maneira a dar uma forma pré-determinada ao tecido.

Entretanto, não existe nenhuma barreira absoluta entre esses dois tipos de trabalho que impossibilitem, por exemplo, a mesma pessoa de exercê-los em momentos diferentes da vida. A capacidade de aprender diversas atividades laborais é algo comum a todos os seres humanos e quanto mais avança a divisão do trabalho, mais os diferentes ofícios se tornam dependentes e perdem sua “áurea” especial. Como diz Marx, “a indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos podem passar com facilidade de um trabalho a outro e na qual o gênero determinado de trabalho é fortuito, e, portanto, é-lhes indiferente. Nesse caso o trabalho se converteu não só como categoria, mas na efetividade em um meio de produzir riqueza em geral, deixando, como determinação, de se confundir com o indivíduo em sua particularidade” (MARX, 1982, p. 17).

Dessa forma, o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho abstrato objetivado em sua produção. Isto é, abstrai-se as peculiaridades de cada espécie de atividade e os trabalhos são comparados pelo “seu tempo de duração”. Por exemplo: se o tempo de trabalho para a produção de uma mesa é de 20 horas e o de uma cadeira, somente 10 horas, então o valor de 1 mesa é igual ao valor de 2 cadeiras.

Antes de prosseguir, cabe aqui uma precisão. Os valores das mercadorias são determinados pelo tempo de trabalho médio socialmente necessário para sua produção. Se, por exemplo, entre três produtores (A, B, C) de mesas, o produtor A despender 20 horas de trabalho para fabricar uma mesa, o produtor B – por trabalhar com ferramentas mais rústicas, por exemplo – despender 30 horas e um produtor C – por desenvolver uma técnica nova e utilizar ferramentas melhores que seus concorrentes – despender 10 horas, o valor da mesa se aproximará tendencialmente a da produtor A (20 horas).

Existe uma diferença entre o valor individual de cada mercadoria e o valor pela qual realmente elas são trocadas no mercado. Como diz Marx, “a mercadoria individual vale aqui apenas como exemplar médio de sua espécie” (idem, p. 48). Isso se dá pela pressão objetiva da concorrência. Nesse exemplo, o produtor A tem uma relativa estabilidade pois o valor individual de sua mercadoria coincide com o valor médio. Se o produtor B for rabugento e não se adaptar às novas técnicas para diminuir o tempo de produção de sua mesa, ele irá se deparar com uma diminuição drástica de seus rendimentos e mais cedo ou mais tarde entrará em bancarrota já que terá que vender a mercadoria pelo seu valor médio (20 horas) enquanto continua a despender 30 horas em sua produção. Já o produtor C, que produz abaixo do valor médio, desfrutará de uma posição privilegiada frente aos outros produtores, pois quando ele vende sua mercadoria, recebe da sociedade uma parcela maior de valor do que realmente despendeu na produção.

Predominância do valor, atomização da produção

Valor de uso e valor são, portanto, características distintas das mercadorias. Pelo valor de uso o produtor sabe qual necessidade ela satisfaz, pelo valor ele consegue compará-la com outras mercadorias. Mas como se trata de uma produção voltada essencialmente para a troca, o valor de uso se torna preocupação secundária dos produtores e o valor se torna o objetivo principal de sua atividade.

Se alguém vai ao mercado com suas mercadorias e consegue trocá-las, o processo é bem sucedido, isso é tudo o que importa. Pouco importa se ele produz cadeiras, camisas, chapéus etc. O objetivo é produzir coisas que são portadoras de valor. Para o produtor “sua mercadoria não tem nenhum valor de uso direto. Do contrário não levaria ao mercado (...) As mercadorias [para ele] têm que realizar-se, portanto, como valores, antes de poderem realizar-se como valores de uso” (idem, p. 80).

É claro que para o comprador “as mercadorias têm de comprovar-se como valores de uso, antes de poderem realizar-se como valores. Pois o trabalho humano, despendido em sua produção, conta somente na medida em que seja despendido de forma útil” (idem). Se uma cadeira produzida tiver só um pé, ela não possuí valor de uso e, dessa forma, não pode conter valor.

Mas – aqui é o ponto importante – “se o trabalho é útil para outros, se, portanto, seu produto satisfaz as necessidades alheias, somente sua troca pode demostrar” (idem), ou seja, por mais que os produtores imaginem seus prováveis compradores para saber quanto devem produzir, esse cálculo sempre será apenas uma estimativa.

Como escreve Rubin: “Toda empresa isolada, privada, é autônoma, isto é, seu proprietário é independente, está preocupado apenas com seus próprios interesses, e decide o tipo e a quantidade de bens que produzirá (...) a produção é administrada diretamente pelos produtores de mercadorias isolados e não pela sociedade. A sociedade não regula diretamente a atividade de trabalho de seus membros, não determina nem quanto” (RUBIN, 1987, p. 21, grifos nossos).

Nessa sociedade de produtores privados atomizados a produção individual só é regulada socialmente a posteriori e de maneira indireta pela relação entre oferta e procura no mercado. Esse problema fica mais claro, se compararmos a divisão do trabalho que existe na sociedade, com a divisão de trabalho que existe dentro de uma fábrica:

“Imaginemos que um empresário possui uma grande fábrica têxtil, composta por três divisões: fiação, tecelagem e tingimento. Os engenheiros, operários e funcionários são previamente destacados para diferentes seções, segundo um determinado plano. Eles foram vinculados de antemão entre si, por relações de produção determinadas, permanentes, em função das necessidades do processo técnico de produção. Precisamente por essa razão, as coisas circulam no processo de produção de umas pessoas às outras, dependendo da posição das mesmas na produção, das relações de produção entre elas. Quando o gerente da tecelagem recebe o fio da fiação, ele o transforma em tecido, mas não envia tecido de volta a fiação, como equivalente do fio que recebeu anteriormente. Ele o envia à divisão de tingimento, porque as permanentes relações de produção que vinculam os operários da divisão de tecelagem aos operários da divisão de tingimento determinam, de antemão, o movimento seguinte dos objetos, dos produtos do trabalho, que vão das pessoas empregadas no processo anterior de produção (tecelagem) para as pessoas empregadas no processo posterior (tingimento). As relações de produção entre as pessoas são organizadas de antemão, com o propósito de servir à produção material de coisas, e não através de coisas” (idem, p. 28).

O processo é bem diferente quando saímos fora da fábrica e analisamos a divisão do trabalho entre produtores privados isolados. Aqui os produtos circulam não em função das necessidades técnicas da produção, mas em função dos interesses de cada proprietário. Como diz Marx, se o produtor de algodão vende algodão para alguém, pouco lhe importa se o comprador utiliza o algodão para fazer roupas, enfeites ou se ele estoca uma pilha de algodão em casa para tapar os próprios ouvidos.

Se ele produziu em maior ou menor quantidade que as necessidades sociais é algo que ele só descobre no mercado. Se a necessidade por aquele produto for menor, ele terá que baixar o preço de cada mercadoria individual para torna-la mais atraente. Se acontece o contrário – ele descobre que as necessidades são maiores – ele poderá aumentar o preço individual de cada mercadoria para compensar a relativa escassez (Não confundir preço com valor. O preço é a quantia monetária pela qual se troca a mercadoria. O valor é quantidade de trabalho socialmente necessário despendido em sua produção).

Esse processo que para os economistas burgueses é “natural”, se mantém por um “equilíbrio instável” e mostra sua faceta irracional constantemente nos momentos de superprodução, quando os produtores chegam a queimar ou enterrar determinado tipo de mercadoria (que poderiam satisfazer necessidades humanas, pois eram portadoras de valor de uso) para regular os preços de acordo com seu interesse.

A produção social é regulada de maneira inconsciente e através de coisas, movimentos de mercadorias estabelecidos de maneira independente da sociedade, pois são resultado de uma infinidade de produções e necessidades pulverizadas. Esse processo espontâneo e inconsciente faz com que os produtos do trabalho adquiram trajetórias e movimentações próprias, alheias a que os produtores imaginaram.

Marx chamou esse processo de fetiche da mercadoria, pois ao se mover assim, sem controle, alterando seus preços constantemente, parece que as mercadorias tomam vida própria (como um fantasma), despertam de sua existência inanimada e dizem para a colega: “qual a proporção em que vamos nos trocar agora?”. Seus possuidores, espantados, não podem fazer nada e aguardam a decisão da conversa para saber como finalizar a troca.

Não é isso o que acontece numa sala da bolsa de valores quando os responsáveis pelas compras e vendas de ações (não esqueçamos que essas são também mercadorias) ficam com os olhos atentos nas mudanças repentinas das cotações? Não sentimos algo parecido quando estamos em frente à televisão e vemos o crescimento do índice de inflação? Afinal, quem está decidindo que o preço das mercadorias vai subir? Parece que as mercadorias decidiram por si mesmas e os institutos de pesquisa só estão se esforçando para entender o desejo delas, mas “não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles assume a forma fantasmagórica de um relação entre coisas” (idem, p. 71).

Crítica a economia política: a necessidade de superação do modo de produção capitalista

A descoberta de que existem relações humanas por trás desse processo, ou seja, que as mercadorias enquanto valores “são apenas expressões materiais do trabalho humano dispendido em sua produção” (idem, p. 72) e que os preços oscilam em torno desses valores é anterior ao próprio Marx. Economistas clássicos como Willian Petty, Adam Smith e Ricardo já haviam construído seus modelos explicativos a partir dessa ideia. Isso, porém, não foi suficiente para que eles superassem as ilusões fetichistas.

Presos às perspectivas de sua classe, os economistas burgueses naturalizaram as relações de produção capitalistas. Tratavam o valor, dinheiro, preço, lucro, juros etc. como formas que tinham uma existência própria e que caminhavam junto à humanidade desde sua aurora. Ao dessacralizar as formas anteriores de produção, sacralizaram as formas burguesas.

Marx mostra que antes do capitalismo, ou em modos de produção que coexistiam ao seu lado, a sociedade produzia e distribuía o trabalho entre seus membros de maneira distinta. No feudalismo, por exemplo, uma das relações de produção dominantes, a corveia (trabalho gratuito do servo nas terras e instalações do senhor), não revestia a ‘forma valor’. O tempo de trabalho do servo media-se como o tempo de trabalho que produz mercadorias (horas, dias etc.) mas nem por isso seus produtos se tornavam mercadorias. Não existia nenhuma contrapartida econômica nessa atividade, pois se tratavam de relações de dominação baseadas na dependência pessoal, em que os que trabalhavam, prestavam serviços e entregavam produtos que eram claramente especificados.

No caso ainda de comunidades de famílias camponesas autônomas que “produzem para seu próprio uso cereais, gado, fio, linho, peças de roupa etc.”, esses diversos produtos, eram resultado de atividades diferentes dentro seu trabalho familiar, “mas não se relacionam entre si como mercadorias”, isto é, existe uma divisão do trabalho entre os indivíduos do grupo mas “as forças de trabalho individuais” são apenas partes do trabalho coletivo da família (idem, p. 75) ou seja, se algum membro dessa comunidade é responsável pela criação do gado, não faria nenhum sentido que ele exigisse uma soma de dinheiro ou de outras mercadorias para entregar o gado à sua família.

Mas Marx combate as falsificações dos economistas burgueses não para defender um regresso à formas pretéritas de organização social. Ainda que essas formas de produção “são extraordinariamente mais simples e transparentes que o organismo burguês”, elas “baseiam-se na imaturidade do homem individual” ou em “relações diretas de domínio e servidão”, tais formas “são condicionadas por um baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e relações correspondentemente limitadas dos homens dentro do processo material da produção de sua vida, portanto, entre si e com a natureza” (idem).

Sua crítica visa mostrar, antes de tudo, que a ‘forma mercadoria’ não é a única possível dos produtos do trabalho, que a ordem capitalista nem sempre existiu e é apenas um estágio historicamente transitório da produção social.

A burguesia, que na pena dos seus teóricos mais radicais prometeu uma sociedade onde os indivíduos poderiam se realizar plenamente, se libertando das restrições dos estamentos e do obscurantismo religioso, substitui uma relação de mistificação da realidade por outra, onde os homens defrontam-se com os produtos de seus trabalhos como coisas que não lhe pertencem, que estão fora do seu controle e que acabam dominando-o.

Marx nos convida, então, a imaginar a primeira fase de uma sociedade comunista, “uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção comunais, e despendem suas numerosas forças de trabalho individuais conscientemente como uma única força social de trabalho” (idem, p. 75) e cujo tempo de trabalho teria uma “distribuição socialmente planejada” que regulasse “a proporção correta das diferentes funções no trabalho comum e, por isso, também na parte a ser consumida individualmente do produto comum” (idem).

Nessa nova forma de organização da produção “as relações sociais dos homens com seus trabalhos e seus produtos de trabalho continuam aqui transparentemente simples tanto na produção quanto na distribuição” (idem) só que agora, não mais baseada sob formas de servidão e dominação de qualquer espécie.

Marx nos revela que o capitalismo substituiu relações de produção marcadas pela dependência pessoal e religiosa (como a escravidão da Antiguidade e a servidão no feudalismo) por relações de produção dominada por coisas, e por isso, conclui que “o processo de produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob seu controle consciente e planejado” (p. 76)


É evidente que faltam muitos resultados que só a investigação dos capítulos e livros seguintes podem demonstrar. A própria análise dos pressupostos materiais para a construção da sociedade comunista só se desenvolve a partir do estudo da “Maquinaria e Grande Indústria” (Cap. XIII, Livro I), do capital bancário e do papel do crédito nos últimos capítulos no Livro III.

A crítica à fetichização das relações de produção tampouco se limita a análise da mercadoria. Trata-se antes, de um fio condutor da investigação de Marx: nos próximos capítulos descobrimos que dinheiro, capital, juros, renda da terra etc. parecem também ter “propriedades mágicas”.

Nas anotações finais, recolhidas e organizadas por Engels, Marx ainda dirá: o “reino da liberdade” só pode começar “onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação à finalidades externas” e tem como premissa “que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a Natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana” (MARX, 1988b, p. 255)

Nesse primeiro capítulo, Marx analisou as categorias mais simples da economia capitalista. Conceitos como capital, salário, mais-valor, lucros, juros etc. estavam ainda fora do seu campo de observação. Muitos críticos viram nisso uma contradição: “como Marx poderia analisar corretamente a mercadoria, valor e as relações de troca sem considerar a exploração, a divisão da sociedade em classes? Esse método leva a resultados falsos” dizem alguns deles.

Para responder a esse questionamento é preciso ter claro, antes de tudo, que Marx não abandona os conceitos trabalhados no primeiro capítulo e novas determinações desses conceitos vão sendo paulatinamente descobertas enquanto Marx muda e/ou amplia seu “foco” do decorrer da investigação.

Quando, por exemplo, ele estuda o capital e o processo de acumulação ainda no Livro I, descobrimos que na economia capitalista o objetivo principal não é a produção de valor simplesmente, mas produção/extração do mais-valor, isto é, da parcela não paga do trabalho da classe operária. Isso, ao mesmo tempo, não invalida a conclusão de que a produção capitalista é, por excelência, produção de valor, já que o valor de uso e as necessidades humanas continuam a ter papel secundário.

Para analisar os conceitos em sua “pureza”, isto é, em sua essência, Marx abstrai uma série de “interferências” que aparecem na superfície dos processos econômicos e que “turvam” a vista do observador. Vimos isso concretamente no início do texto, quando ele “ignora” momentaneamente a divisão técnica para conseguir entender as particularidades da divisão social do trabalho. Justamente por não seguir esse método, os economistas burgueses caíam em uma série de construções inconsistentes e não conseguiram penetrar nos mecanismos internos dos fenômenos mais complexos.

Longe de ser contraditório, o método de Marx mostra aqui toda sua potencialidade. Destrinchando somente as contradições da mercadoria, chega ao final do primeiro capítulo nos convencendo da necessidade de superar o capitalismo! Ele nos transmite uma imagem forte: a sociedade produtora de mercadorias é “uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção” (MARX, 1988, p. 76).

Uma imagem que nos remete imediatamente a situação atual: em nosso país, governo e oposição tentam nos convencer que os salários devem ser diminuídos, que o desemprego vai aumentar e que os direitos serão cerceados “pelo bem da economia”. Mas afinal, quem faz a “economia”? Não são os próprios trabalhadores? Então eles devem ser punidos pela sua própria criação, “pela economia”, ou melhor dizendo, “pelo bem da economia”!

Lá fora, o povo grego é colocado de joelhos e humilhado (por Merkel e pelo próprio Syriza) paga pagar uma “dívida” que a grande maioria nem sabe de onde vem e que têm “propriedades mágicas”: quanto mais se paga, maior ela fica! Na China, trilhões de dólares “desaparecem” da bolsa em uma semana...como um fantasma.

Em todo O Capital, Marx trava uma luta constante contra a naturalização das categorias econômicas. Ele tenta nos mostrar que por trás delas existem relações humanas e, mais precisamente, relações de exploração. Podemos dizer que esse é seu principal objetivo, pois sem uma compreensão histórica, que captasse o movimento das diferentes formas e relações de produção em seu devir, não se poderia compreender o capitalismo, nem muito menos buscar superá-lo.

A leitura do primeiro capítulo já nos mostra, portanto, que separar sua teoria econômica dessa perspectiva é necessariamente mutilá-la. A expropriação da burguesia, a transformação da propriedade privada em propriedade social e o planejamento econômico são as únicas formas de superar as “forças cegas” das relações fetichistas.

Para Marx, a Crítica da Economia Política deve arrancar “as flores imaginárias dos grilhões” não para que a humanidade “os suporte sem fantasias ou consolo”, mas para que ela possa destruir os grilhões e “apanhar a flor viva”, pois – assim como a religião – o fetiche da mercadoria, é apenas “o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em torno de si mesmo” (MARX, 2005, p. 146).

Referências bibliográficas

HARVEY, David. Para entender O Capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.


. O capital: crítica da economia política. Vol. I. Livro I. São Paulo: Abril, 1988.


. O capital: crítica da economia política. Vol. V. Livro III. São Paulo: Abril, 1988b.


. “Para a crítica da economia política”. In: Os economistas. São Paulo: Abril, 1982.
ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
RUBIN, Isaak. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Abril, 1996.

 
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