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DOSSIÊ DIA DA MULHER NEGRA, LATINA E CARIBENHA
Dandara, Aqualtune e Luiza Mahin: Mulheres negras na luta contra a escravidão no Brasil
Odete Assis
Mestranda em Literatura Brasileira na UFMG
Jenifer Tristan
Estudante da UFABC
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A história oficial sempre tentou apagar a enorme resistência protagonizada pelo povo negro, especialmente as mulheres negras, com seu olhar racista e machista. Mas o “único lugar onde os negros não se rebelaram é nos livros de historiadores capitalistas”¹. Desde as guerreiras quilombolas na luta contra a escravidão até as trabalhadoras terceirizadas que hoje se enfrentam com a sede de lucro dos patrões, a força e a determinação presentes na história das mulheres negras constituem uma rica fonte de inspiração para todos nós. Nas breves linhas deste artigo, pretendemos resgatar um pouco da vida de Dandara, Aqualtune e Luiza Mahin, mulheres negras símbolos, tanto no campo quanto na cidade, da luta contra a escravidão no Brasil.

Retomar a vida dessas mulheres constitui um apaixonante desafio. São nomes que fazem parte da história e da cultura negra, diretamente associados à resistência protagonizada pelo povo negro durante mais de 400 anos de escravidão. São grandes lutadoras, símbolos da rebeldia e da ousadia do povo negro. Cada vez que uma mulher ou um homem negro conhece a vida dessas mulheres a luta contra o racismo se fortalece, pois elas constituem parte de uma força social e moral que deve ser conhecida não só pelo povo negro, mas pelo conjunto da classe trabalhadora – brancos e negros, homens e mulheres –, como parte de resgatar a nossa história e fortalecer nossa luta contra as correntes da escravidão assalariada perpetuada pelo capitalismo.

A força que esses nomes carregam até hoje como expressão da luta contra a escravidão e do temor que isso gera na classe dominante talvez seja um dos principais motivos que expliquem a enorme falta de registros historiográficos, documentos e até mesmo pesquisas sobre essas mulheres. No caso de Luiza Mahin, por exemplo, a única “prova” de sua existência são as cartas autobiográficas de Luiz Gama a um amigo. O historiador José João Reis ao falar sobre essa grande mulher chega à seguinte definição: “A personagem Luiza Mahin, então, resulta de um misto de realidade possível, ficção abusiva e mito literário”².

Mas a história de Dandara, Aqualtune e Luiza Mahin transcende a ausência de documentos. Seu registro se encontra na memória do povo negro; ao se contar e recontar suas histórias, permanecem vivas como exemplos de resistência à escravidão, de combate por uma vida digna de ser vivida. Suas histórias percorreram os séculos por meio do imaginário social e da tradição oral, que buscavam complementar os registros históricos de Palmares, da revolta dos Malês e dos diversos levantes negros. Para nós, não é um mero detalhe que a história dessas mulheres negras tenha ecoado por tantos anos como símbolo de subversão, coragem e valentia. E é esse eco que queremos fortalecer com este artigo.

Pensar a vida dessas mulheres é perceber, também, como a opressão de gênero e raça estão intrinsecamente ligadas à exploração do sistema capitalista. Quando retomamos a história delas, conseguimos compreender um pouco mais sobre o que era ser mulher e negra num país para o qual mais de 15 milhões de homens e mulheres foram trazidos, arrancados de seu continente, para servir como mão de obra escrava³.

É por isso que afirmamos que tanto o comércio de escravos – e a consequente espoliação do continente africano de diversas maneiras – quanto a escravidão estão intimamente ligadas, ou melhor, fazem parte do processo do desenvolvimento do capitalismo.4

E que esse sistema se apropriou muito bem do racismo como ideologia que garantia a manutenção das altas taxas de exploração impostas pela burguesia sobre a ampla maioria da população. O revolucionário norte-americano George Breitman explica ao retomar Oliver C.Cox: “Entretanto [Cox] acredita que ‘o antagonismo racial alcançou completa maturidade’ somente no final do século XIX”. Ou seja, o racismo surge para a justificar a escravidão e não acabou com o fim desta. Pelo contrário: ganha novos contornos e na época imperialista, além de garantir taxas mais altas de exploração, também atua na divisão das fileiras da classe operária 5.

Por entender que a luta do povo negro contra o racismo deve
ser parte de uma luta contra esse sistema capitalista é que nos dedicamos a estudar um pouco mais a fundo a vida dessas mulheres negras. Temos pouquíssimas informações sobre elas, mas o pouco que sabemos já é motivo suficiente para perceber como suas vidas sempre foram marcadas por um incansável desejo por liberdade.

O trabalho escravo, que era uma imposição a toda a população negra, representava para as mulheres negras trabalhar com o mesmo ritmo que os homens e sofrer as mesmas punições, ao mesmo tempo em que eram sistematicamente violentadas e estupradas como forma de coerção por suas atitudes e ostentação do domínio dos seus senhores sobre seus corpos e vidas. Apesar de ainda ser desconhecida pela ampla maioria da população, a história do povo negro é uma história marcada pela resistência, na qual as mulheres negras cumpriram um papel fundamental: com fugas, formação de quilombos, envenenamento de senhores, busca por um ritmo de trabalho menos árduo, formação de laços afetivos e comunitários de apoio, entre outros; mas também pela ousadia daquelas que se atreveram a fazer a Revolução Haitiana, a lutar pela liberdade na guerra civil norte-americana ou participar dos milhares de quilombos no Brasil.

Queremos com este texto retomar alguns exemplos da rica e inspiradora história de três mulheres símbolos da resistência e ousadia do povo negro, cujas vidas foram marcadas, profundamente, por um desejo de liberdade que não cabe e nunca caberá nos limites impostos pelas correntes de exploração e opressão desse sistema capitalista.

DANDARA: SÍMBOLO DA FORÇA GUERREIRA DAS MULHERES NEGRAS

Os negros nunca aceitaram passivamente a escravidão, muito pelo contrário. Durante todo esse período buscaram se insurgir das mais diversas formas contra as bárbaras condições de exploração e opressão a que estavam submetidos. Uma dessas formas de resistência se deu pela formação de comunidades negras em locais escondidos e fortificados em meio às florestas, conhecidas como quilombos, onde negras e negros plantavam, produziam e buscavam viver o mais próximo possível da liberdade. No período colonial, o Brasil chegou a ter centenas de quilombos espalhados, principalmente pelos atuais estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas, que constituíram uma das mais importantes formas de resistência no campo contra a dominação da elite branca e escravocrata.
No final do século XVI até meados do século XVII, formou- se, cresceu, prosperou e finalmente foi destruída a maior das comunidades de fugitivos das Américas.6

Em pleno coração do Império colonial português, essa comunidade seria um dos grandes símbolos da resistência negra à escravidão: o Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, na então Capitania de Pernambuco.

Palmares se faz vivo até hoje na memória de todos aqueles que lutaram e ainda lutam contra o racismo e a opressão a que negros e negras estão submetidos como grande exemplo da rica história de um povo que jamais abaixou sua cabeça e buscou, pelas mais diferentes formas, se insurgir contra a dominação colonial.
Implicitamente, as autoridades coloniais reconheciam que Palmares funcionava como um símbolo e era tanto exemplo do que deve ser combatido como, para os escravos, exemplo a ser seguido. Na realidade o processo é o mesmo, só que o caráter de classe interfere na visão que se tem de Palmares.7

Essa resistência foi construída com muita luta, fazendo com que alguns de seus guerreiros e guerreiras deixassem seus nomes marcados na história. Entre eles estavam Aqualtune e Dandara. As histórias que envolvem essas mulheres representam muito mais do que a busca pela conquista de uma liberdade individual. Significam, antes de tudo, a vontade de transformar pela raiz a vida de seu povo e mudar os rumos da história.

1 JAMES, 2016, p. 22.
2 REIS e GOMES, 1996, p. 9.
3 REIS e GOMES, op. cit.
4
http://www.esquerdadiario.com.br/Escravidao-racismo-e-capitalismo
5 BREITMAN in JAMES, 2016, p. 19.
6 GOMES, 2005a, p. 29.
7 GUIMARÃES, 1996, p. 160.

AQUALTUNE: UMA GUERREIRA ESTRATEGISTA

Aqualtune é um dos principais símbolos da resistência quilombola e da luta pela liberdade do povo negro em nosso país. Filha do Rei Dom Antonio Manimulaza I, mais conhecido como Mani-Kongo 8, foi uma lutadora incansável que
Nas horas de lutar, ela não era a princesa, a filha do rei, com mais importância do que os outros. Era igual às guerreiras mulheres, lutando para defender o reino do Congo.9

Ela teria sido a mãe de Ganga Zumba e a avó de Zumbi, dois grandes líderes negros na luta contra a escravidão 10. Não existem informações sobre sua infância. O que se sabe sobre sua história começa em 1695, quando teria liderado uma grande batalha em defesa de seu povo:
[...] liderou cerca de 10 mil guerreiros congoleses, no que ficou conhecido como “a Batalha de Mbwila”, quando sua tribo foi atacada por outra de nome “Wachagas” – há quem diga que o conflito foi provocado por portugueses interessados em cativos para o comércio de escravos. O fato é que a tribo de Aqualtune perdeu o combate e a cabeça do pai dela, o rei Mani-Kongo, foi cortada e exibida em uma igreja, enquanto sua filha foi presa com seus companheiros e vendida como escrava. 11

Após a derrota de seu povo, Aqualtune teria sido aprisionada e enviada em um navio negreiro para o forte de Elmina, em Gana, onde teria sido batizada por um bispo católico e marcada com uma flor de ferro quente em cima do seio esquerdo. A partir daí teria sido levada para o Brasil, desembarcando no Porto de Recife, vendida como escrava reprodutora e sendo levada, posteriormente, para a região de Porto Calvo, onde seria sistematicamente estuprada e violentada para gerar crianças negras para serem vendidas como escravas, prática muito comum com várias mulheres negras durante os anos da escravidão.

Mais ou menos por volta de 1606, ela teria descoberto a existência de um grupo de negros que, para fugir da escravidão, estabeleceram um “mocambo” na região das montanhas de Pernambuco, conhecida como Palmares. Mesmo estando em estado avançado de gestação, ela decidiu organizar um grupo de escravos com destino a Palmares. Dizem que ao longo desse percurso foram agrupando novos negros e negras que fugiam da escravidão - quando chegaram ao quilombo, eram por volta de 200 pessoas.

Como uma das tradições era manter vivas as raízes africanas, essa guerreira teria sido reconhecida por sua linhagem e se tornado uma das mais importantes lideranças de Palmares. Lá nasceram três de seus filhos: Gana, Ganga Zumba - que mais tarde se tornou chefe do quilombo e, contra a vontade de Zumbi, negociou com a coroa portuguesa 12 - e Sabina, a mãe do grande líder guerreiro Zumbi.

A morte de Aqualtune é controversa. Alguns dizem que ela teria morrido já idosa, durante uma invasão das expedições paulistas à sua aldeia, queimada pelos brancos como parte do projeto de destruição de Palmares. Outros dizem que ela conseguiu fugir e morreu de velhice. Apesar disso, sua história de luta e resistência se destaca como exemplo do que a força feminina e negra é capaz. A história de uma mulher que, mesmo estando submetida às mais duras condições de exploração e violação, jamais desistiu de lutar, tornando-se um dos principais símbolos da liderança e da resistência em Palmares e exemplo para todos nós.

UMA MULHER À FRENTE DE PALMARES

Outro grande símbolo das mulheres quilombolas é Dandara, uma grande guerreira que, ao lado de Zumbi, teria liderado o Quilombo dos Palmares na luta contra as invasões das expedições bandeirantes. Não existem registros sobre qual teria sido seu local de nascimento. Alguns relatos dizem que ela teria nascido no Brasil e se estabelecido no Quilombo dos Palmares desde criança e que, assim como Luiza Mahin, pertencia à nação Nagô-jejê, da Tribo de Mahi, de religião muçulmana13.
Dandara é, na maioria das vezes, apresentada apenas como a esposa de Zumbi, com quem teria tido três filhos - Motumbo, Harmódio e Aristogíton -, o que deixa de lado toda rica história dessa guerreira.

Dentro do Quilombo dos Palmares, Dandara, juntamente com outras mulheres negras, cumpria um papel fundamental na plantação dos alimentos, produção da farinha de mandioca e no cuidado de crianças e idosos. Mas suas atividades não se limitavam a essas tarefas: ela também teria se dedicado à caça, a lutar capoeira e empunhar armas, liderando militarmente as mulheres que faziam parte do exército negro palmarino 14. Uma mulher que se recusou a aceitar qualquer tipo de acordo com os senhores racistas, que cinicamente tentavam cooptar os guerreiros negros, oferecendo terras para que eles deixassem de lado sua luta.

Seus sonhos eram permeados por uma ideia: a de que não bastaria conquistar a liberdade apenas para aqueles que viviam em Palmares. Sua luta era para conquistar a liberdade para todos seus irmãos, e a organização nos quilombos era parte dessa estratégia. Dizem que, sob a liderança de Dandara, as senzalas eram arrombadas para libertar os negros escravizados e as plantações de cana eram queimadas, gerando prejuízos aos senhores de escravos. E Palmares ia aumentando sua força e influência, gerando cada vez mais medo e ódio nos patrões.

A cada batalha, Dandara aumentava sua esperança e fé na conquista da libertação do seu povo. A cada nova luta, essa guerreira ia aprimorando seus golpes certeiros contra os inimigos do seu povo, ao mesmo tempo em que desenvolvia seu lado estrategista para a guerra. A vontade de libertar negros e negras era tão grande, que, como se sabe pelas diversas histórias que contam de sua vida, ela teria sugerido que os palmarinos se organizassem para tomar Recife, dando um golpe no coração do império colonial. Um plano que nunca foi levado à frente, mas que teria surpreendido até mesmo Zumbi por tamanha ousadia e ambição 15.

Em 1678, Ganga Zumba, então líder de Palmares e tio de Zumbi,
assinou um acordo com o governo provisório de Pernambuco prevendo a libertação de prisioneiros palmarinos e a permissão para realizar comércio em troca de entregar escravos fugitivos que buscavam abrigo 16. Dandara teria sido uma daquelas que, juntamente com Zumbi, se opuseram fortemente a esse tratado, pois não aceitavam trair seus irmãos ainda não libertos. Após a morte de Ganga Zumba, Zumbi assumiu a liderança de Palmares, resistindo às tentativas de destruição do quilombo.

Em 1694, a expedição de Domingos Jorge Velho buscou destruir Palmares. A luta verdadeiramente épica entre palmaristas e paulistas durou vários dias no meio da serra da Barriga, até o confronto final no Mocambo dos Macacos, a então capital do quilombo. Após uma dura batalha, os palmaristas são encurralados pelas tropas paulistas.

Como Macaco ficava na parte mais alta da Serra da Barriga, alguns palmaristas em fuga acabaram caindo em um abismo. Os que permaneceram como retaguarda da evacuação entraram em combate direto com as forças coloniais. Batalhas sangrentas são travadas. Duram horas e atravessam a noite. Mais de 500 palmaristas terminam presos, a maior parte mulheres e crianças. Outros tantos foram mortos. Inúmeros retiraram-se para a floresta.17

Zumbi foge para mata junto a outros companheiros. Dandara teria sido encurralada pelas tropas de Jorge Velho, e para não ser novamente capturada, decide se jogar da pedreira, preferindo morrer na condição de mulher livre a ser escravizada e torturada pelos seus inimigos.

A história de Dandara é uma grande inspiração para cada mulher. Representa a história de uma guerreira que jamais abaixou a cabeça diante da exploração e opressão de seu povo. De uma lutadora que, mesmo com todas as adversidades, manteve de pé seu sonho de liberdade. Retomar a história e a luta que esse nome carrega é resgatar um pouco do espírito guerreiro que permeou a vida das mulheres negras na luta contra escravidão.

Chegando perto da cidade de Recife, depois de vencer várias batalhas, Dandara pediu a Zumbi que tomasse a cidade. Isso é uma prova da valentia e mesmo de um certo radicalismo dessa mulher. Sua posição era compartilhada por outras lideranças palmarinas.”, in: https://jornalggn.com.br/noticia/ dandara-uma-das-liderancas-femininas-que-lutou-contra-o-sistema-escravocrata

LUIZA MAHIN: HEROÍNA NEGRA E REVOLUCIONÁRIA

Luiza Mahin, da tribo Mahin dos malês 18 (significa muçulmanos em Yorubá), da etnia Jeje. Uma mulher negra arrancada do continente africano, especificamente da Costa da Mina da nação Nagô, onde hoje se localiza Guiné Bissau. Líder de uma grandiosa batalha de escravos, a revolta dos malês na Bahia.

Um grande exemplo de força e de luta, uma mulher insurreta que deixa como legado a negação de viver submissa, a forte ideia de que as mulheres negras também fazem história e a necessidade de lutar contra as elites dominantes e pela liberdade.
Ninguém sabe exatamente como foram seus dias, quando nasceu, quando exatamente chegou ao Brasil na condição de escrava e nem ao menos qual foi seu fim. O único registro de sua existência são as cartas de Luís Gama, seu filho, a Lucio de Mendonça 19.

Luís Gama foi um dos principais abolicionistas do império. Era filho de um homem muito rico, fidalgo, que herdou a herança da família de origem portuguesa, uma das principais da Bahia. Em quatro anos perdeu todo o dinheiro com pesca, caça e jogos, ficando extremamente pobre e vendendo seu filho como escravo com dez anos de idade. Luís Gama foi para o Rio de Janeiro e viveu em uma casa onde foi muito bem tratado, mas só de passagem. Passou por situações difíceis, como ir de Santos a Campinas a pé com apenas 10 anos. Para ser vendido, foi quisto e recusado por muitos, pois era baiano e os escravos da Bahia traziam rumores de insubordinados.18

“A origem desse termo tem sido objeto de disputa. Braz do Amaral, por exemplo, sugeriu que derivasse de ‘má lei’, que seria como os católicos consideravam o Islã, em oposição à ‘boa lei’, da religião católica. Assim, Braz enfatizava que o termo era pejorativo e, portanto, recusado pelos muçulmanos. Mas enfatizou um erro, pois ‘malê’ não parecia possuir tal carga negativa, pelo menos nesse período. Mais razoável, o historiador norte-americano R.K. Kent associou o temo malê com malãm, a palavra haussá tomada do árabe mu´allim, que significa ‘clérigo’, ou ‘mestre’. Nina Rodrigues, primeiro estudioso competente dos malês, sugeriu que o termo derivava de Mali, o poderoso Estado muçulmano da Costa do Ouro. Contudo, a explicação que nos parece mais sensata e direta é apresentada por Pierre Verger, Vincent Monteil e Vivaldo da Costa Lima, que associam o termo malê a ìmàle, expressão iorubá para muçulmano”REIS, 2003, pp. 175-176

Aos dezessete anos, conhece um estudante que fora morar na casa do seu senhor e que o ensina a ler e escrever. Em 1848, já sabendo ler, escrever e contar, Luís Gama foge como escravo 20, tendo a seu favor poucas provas da sua condição e com certo conhecimento. Torna-se um homem livre depois de responder à justiça por insubordinação. Foi um grande autodidata que conseguiu provar sua liberdade, se tornar advogado e colocou em exercício sua profissão a serviço da libertação de outros negros, tornando-se um importante abolicionista por ser o único advogado ex-escravo.

Segundo Gama, sua mãe teria vindo da Costa da Mina, no continente africano, na condição de escrava. Trabalhava como escrava de ganho21 nas ruas e no comércio. Supostamente, Luiza Mahin foi quituteira e essa condição permitia que pudesse conversar com as pessoas na cidade, fazer circular informações, indo de porta em porta para vender a mercadoria. Mas essas idas e vindas para a cidade permitiam-na articular a revolta dos escravos, organizar rebeliões, incitar os escravos a lutar e se rebelar contra seus senhores. Mahin tem sua existência documentada pela primeira vez na autobiografia escrita por Luís Gama em 1880 para seu amigo Lúcio de Mendonça, poeta e advogado abolicionista da época. Antes disso, havia sido citada no poema Minha mãe22, escrito por Luís em 1861.

Éramos dois — seus cuidados, Sonhos de sua alma bela;
Ela a palmeira singela, Na fulva areia nascida.
Nos roliços braços de ébano. De amor o fruto apertava,
E à nossa boca juntava
Um beijo seu, que era a vida.

Quando o prazer entreabria Seus lábios de roixo lírio, Ela fingia o martírio
Nas trevas da solidão.
Os alvos dentes, nevados. Da liberdade eram mito, No rosto a dor do aflito, Negra a cor da escravidão.

As vidas da mãe e do filho se encontravam entrelaçadas, pois as dificuldades e experiências vividas por Gama carregam sempre o imaginário de sua mãe. O fato de ser destemida, insubordinada e valente é sempre ressaltado pelo advogado com muito orgulho.

A inteligência e a perspicácia teriam sido para Luiza Mahin, assim como para seu filho, a alternativa encontrada para superar os obstáculos impostos pela escravidão, bem como para se tornar livre. 23

Luiza Mahin foi uma revolucionária destemida que dedicou toda a sua vida à luta pela liberdade. Seu filho afirma que ela teria sido uma rainha antes de chegar ao Brasil na condição de escrava; sabia ler e escrever muito bem, chegando a ser mais inteligente do que seus senhores, o que é uma característica importante dos malês, já que muitos escravos eram letrados.

A REVOLTA DOS MALÊS E O PAPEL DAS MULHERES

A Revolta dos Malês acontece entre os dias 24 e 25 de janeiro de 1835 e é fruto de um acúmulo de debates feitos entre os malês em seus encontros, onde compartilhavam de sua doutrina religiosa – o islã -, mas também descarregavam as tensões e debatiam sobre os problemas de opressão e exploração vividos.
Segundo Reis, os malês eram fundamentalmente da religião do Islã, ou seja, muçulmanos, eles se reuniam para aprender a ler e escrever em árabe, as casas de africanos libertos abrigavam encontros malês para rezas, refeições rituais, celebrações do calendário islâmico e, naturalmente, conspirações. 24

A maioria dos adeptos ao Islã baiano não eram ferozes separatistas, como quiseram retratá-los diversos estudiosos da rebelião de 1835... Além de ideologia religiosa, outras linhas de integração e solidariedade coletivas teciam o comportamento dos africanos. 25

As motivações da revolta eram, fundamentalmente, a luta em defesa da libertação da condição de escravos, a liberdade religiosa e o fim da opressão.

Ser parte do Islã era, para a elite escravocrata, um grande ato de rebeldia, era a negação de sua subordinação: as religiões de matrizes africanas eram proibidas. Com isso também as ideias de revolta começam a amadurecer e o desejo de tomar o poder vai ganhando força. As mulheres africanas eram parte das revoltas organizadas pelos malês, mas não assumiam posições de comando pela ideologia e prática conservadoras acerca do papel das mulheres. “O Islã Negro, tanto na África como talvez principalmente na Bahia, foi obrigado afazer concessões a um setor feminino” 26.

Essa é a prova do caráter revolucionário que tinha cada mulher que, mesmo assim, participou ativamente das revoltas, ou mesmo da força que ganha o fato de Luiza Mahin se tornar conhecida por ter sido uma importante liderança dos Malês. Mulheres como Teresa defendiam seus companheiros de luta e jamais os denunciariam. Outra das mulheres que lutavam ao lado dos malês foi Emereciana - rumores afirmam que ela foi vista distribuindo os anéis de identidade da “sociedade malê” -, assim como as negras Edum, Maria Chagas e Maria da Conceição, acusadas de fornecer comida aos rebelados, inclusive na noite do levante. Entre mulheres libertas e escravas existem muitos exemplos de apoio aos revoltosos 27.

A tensão entre os malês e a sociedade baiana era ainda maior por professarem uma religião, nesse contexto histórico, exclusivamente africana e que podia unir os escravos e libertos. Por não ser uma religião de raiz étnica, mas de caráter universal, o islamismo tinha também o potencial, nem sempre realizado, de unir africanos de várias origens, retirando dos escravistas a vantagem política da divisão entre eles. 28

As mulheres cumprem um papel fundamental com a comida e nas ruas, como escravas de ganho, faziam chegar informações e notícias não só em Salvador, mas em todo o recôncavo baiano. Muitos negros estavam nas fazendas, mas no momento certo seriam alertados a se juntarem à revolta que ia ganhando corpo e força.

A história do povo negro em todo o território brasileiro é de fugas, revoltas, Rebeliões, insurreições. A condição de escravidão e submissão nunca foi aceita, nunca existiu de maneira pacífica. Por todo o tempo, as histórias de insurreições permeavam a tradição oral, os boatos e os sonhos dos escravos em se ver livres. Foram décadas de experiências, relatos e exemplos insurrecionais, e a Revolta dos Malês é uma expressão particular de toda essa resistência.

Seis meses após a revolta foi feita uma lei que proibia e punia com pena de morte quem participasse de revoltas, pois o grande medo das elites era que o Brasil pudesse, assim como o Haiti, ter uma grande revolução negra vitoriosa, que declarasse independência dos brancos da elite e, assim, construíssem um Estado apenas de negros. Naquele momento o nível de politização era alto, as discussões aconteciam a todo instante e a Bahia cheirava a conspiração contra a classe dominante 29.

Entre alguns mortos e muitos feridos, a revolta conquistou a liberdade de centenas de negros. A batalha armada na cidade se enfrentou com as tropas de Salvador, invadiu igrejas, se enfrentou com a ordem vigente. A revolta mostrou que os malês tinham capacidade de se organizar e estavam dispostos a dar sua vida em busca da liberdade.

Nesse marco surge a história de Luiza Mahin como um grande mito, como exemplo do papel das mulheres na luta contra a classe dominante e em defesa da liberdade de todos. Ela teria sido uma mulher que rompeu com o patriarcado do islã e liderou uma revolta, exemplo para as mulheres negras e ao conjunto do povo negro e a classe trabalhadora em todo o país e no mundo por suas características que sobressaem o imaginário.

MAHIN E A REVOLTA DA SABINADA

Segundo Luiz Gama, em 1837, depois da Revolução do doutor Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856, em 1861, na corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que a conheciam e que me deram sinais certos de que ela, acompanhada por malungos desordeiros em uma “casa de dar fortuna”, em 1838 fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que esses “amotinados” fossem mandados para fora pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores.30

Segundo a história contada sobre Luiza Mahin, ela não teria sido mais vista após a Revolta da Sabinada, que contou com a participação efetiva dos negros. Sobre isso, decorrem três hipóteses. A primeira é que Luísa Mahin teria sido morta pelo Estado como punição pela sua participação na Revolta dos Malês. A segunda hipótese é que ela teria sido capturada e deportada para o seu país de origem, também como punição pela sua participação na revolta. E a terceira hipótese é que Luiza Mahin teria conseguido fugir e ido ao Rio de Janeiro escondida para que não fosse novamente capturada depois das revoltas de que participou, mas sempre em busca de seus ideais. E somente anos após a revolta, por volta da década de 1980.

As feministas negras empregaram suas vozes através da escrita e oralidade para marcar definitivamente a memória e materialidade de Luiza no imaginário coletivo. As mulheres negras transformaram Luiza Mahin e foram transformadas por ela, pois a partir de referenciais positivos como insubordinação, a independência, a capacidade de liderança, a inteligência e tantos outros puderam repensar a si próprias; articular a mobilização e empreender suas lutas. 31

MULHERES NEGRAS TÊM, SÃO E FAZEM HISTÓRIA

É nessas mulheres lutadoras, revolucionárias, sonhadoras insurretas que devemos nos inspirar. Esses exemplos de rebeliões e construções de quilombos são parte da busca pela identidade e liberdade que permeiam a história dos negros no Brasil, em especial das mulheres negras como Dandara, Aqualtune e Luiza Mahin, que romperam com o cerco do esquecimento.

A classe dominante e o mito da democracia racial como ideologia de classe para tentar passar por cima dos anos de exploração e opressão do povo negro também passam por cima do referencial de luta que sobre essas terras passaram. A conexão África-Brasil deixou fortes traços de resistência, do qual as mulheres negras são parte intrínseca. Como resquício desse passado escravagista, ainda hoje o capitalismo faz com que os negros ocupem postos de trabalho precário, recebendo menores salários, sendo que as mulheres negras recebem 60% a menos que um homem branco32.
Se no período colonial só as mulheres escravas se encarregavam das
tarefas domésticas, hoje as mulheres negras ocupam postos de trabalho terceirizados ligados à limpeza e à cozinha.

O governo Temer, um governo que deu um golpe na classe trabalhadora em 2016, aprovou a terceirização irrestrita 33, ou seja, para todos os tipos de trabalho, garantindo maior exploração, chegando a condições de trabalho análogas à escravidão. É com o espirito dessas guerreiras que temos que lutar pela anulação da lei da terceirização e pela incorporação imediata de todos os trabalhadores terceirizados, sem necessidade de concurso público 34.

Mesmo com as contradições de seu tempo, essas mulheres lutaram ombro a ombro com os homens por saberem que sem eles sua luta pela liberdade era mais fraca, impossível de ser conquistada. Lições como esta devem ser conhecidas por toda a classe trabalhadora para que juntos, mulheres e homens, negros e brancos, possamos aprender com o passado e lutar hoje ombro a ombro para garantir igualdade salarial.

Por uma sociedade igualitária, livre de preconceito e exploração, os quilombos eram parte de tentar construir, paralelamente à opressão colonial, uma sociedade com outras regras, onde fosse possível viver livremente. Com o fim da escravidão, o medo das revoltas negras ainda era grande e a lei de terras foi criada para impedir que os negros tivessem como construir suas cidades, suas formas de organização ou mesmo seus quilombos na cidade, e até hoje ainda precisamos lutar para garantir a titulação das terras quilombolas.

Resgatamos toda essa rica e inspiradora história das mulheres negras por acharmos que deve ser conhecida por todos, pois essas mulheres são patrimônio moral de toda a classe trabalhadora. Cada negra e negro que se apropria do que foi a luta pela liberdade, cada trabalhador que entende que essa experiência faz parte dos elos de continuidade da história dos explorados no Brasil fortalece o combate ao racismo e a esse sistema que o perpetua.

O racismo construído historicamente pelo capitalismo 35, que também se apropria do machismo 36 para garantir a exploração de uma classe sobre a outra, é o que nos mantém ainda hoje na condição de escravos assalariados. Nosso objetivo não é que este texto seja meramente um livro de história, mas sim uma arma na luta pelo fim do racismo, da opressão e da exploração, que só virá com o fim do capitalismo.
Em tempos de retirada de direitos, onde a elite branca ainda é permeada pelas ideias escravocratas, com Estado e judiciário racistas, esses exemplos devem servir como fonte inesgotável de desejo por um mundo melhor, de ódio às classes dominantes, anseio pela subversão da ordem para a construção de um mundo onde não haja mais opressão e exploração, um mundo sem classes.

19 https://www.correioims.com.br/carta/lances-doridos/

20 Idem.

21 Escravos que trabalhavam no comércio, faziam favores, vendiam coisas. Mas o dinheiro arrecadado com o trabalhado era passado ao senhor de escravos e uma pequena quantia ficava com o escravo que executou a tarefa. Muito longe de ser um salário, vale como uma certa remuneração.

22 GAMA, 1904, pp. 75-76

23 LIMA, 2011.

24 REIS, op. cit., p. 216

25 Idem

26 REIS, op. cit., p. 131

27 REIS, op. cit., p. 301

28 REIS, op. cit., p. 248

29 “Esse momento da história africana na Bahia parece ter sido riquíssimo em experiência humana, um período repleto de discussões, inovações, mudanças ideológicas e culturais. Guardadas as devidas proporções, não seria exagero denominá-lo um período de efervescência revolucionária.” REIS, op. cit. p. 249

30 GAMA, op. cit.

31 LIMA, op. cit.

32 Esse dado foi retirado da pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, divulgada em 2017, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), disponível em http:// www.ipea.gov.br/retrato/

33 A lei da terceirização foi aprovada para todos os postos de trabalho (meio e fim), mas nos governos anteriores onde o PT governou por 12 anos (Lula e Dilma), aumentou-se em 13 milhões os postos de trabalho terceirizados, dando espaço para a sua aprovação agora.

34 Número de mulheres negras na terceirização

35 “O racismo é um fenômeno capitalista. Nos séculos anteriores ao capitalismo industrial e imperialista, a ideologia racista surgiu como justificativa junto com a utilização de milhões de homens e mulheres transportados nos navios negreiros para trabalhar sob os piores castigos e torturas como mão de obra escrava, foi um dos pilares da acumulação primitiva de capitais, gérmen do próprio capitalismo. O comércio de escravos esteve no centro dos vários processos que marcaram a transição entre o que se conhece como feudalismo e o capitalismo”. ALFONSO e PABLITO in JAMES, op. cit., p. 90.

36 “Da nossa parte, seguimos defendendo que apesar de não ter surgido com o capitalismo, a opressão às mulheres adquire sobre este modo de produção traços particulares, convertendo o patriarcado em um aliado indispensável para a exploração e a manutenção do status quo.” D’ATRI, 2017, p.38.

 
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