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TRANS RELATOS
Se me queres, queres me trans
Virgínia Guitzel
Travesti, trabalhadora da educação e estudante da UFABC
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Eu vi esta frase estampada num pixo numa rua sem nome, desconheço o endereço, e como eu sentia: sem destino. A frase coloca bem o que nos poderia ser obvio: se eu te atrai, você foi atraído por uma travesti, logo a travestilidade te atraiu. Mas não o é, devido as condições determinadas de nossa existência pela cisnormatividade e pela heteronormatividade, as pessoas buscam diferentes formas de negar sua atração, ou qualquer desenvolvimento afetivo com uma de nós. Mais do que apenas expressões culturais, como hoje é lido pela visão pós-moderna, essa miséria das relações é um reflexo das condições materiais sob bases econômicas de uma sociedade baseada na exploração, que perpetua a ínfima afetividade trans que nos é reservada. Sempre com um ar de exceção.

Mas quando falamos de afetividade, a principal tendência é encarar que é um assunto privado. Que "se trata de um questão de gosto", logo se é indiscutível. Me pergunto então o que a psicologia poderia avançar, ou a psicanálise, para compreender as sensibilidades e traumas emocionais numa sociedade baseada na idealização de um amor cisnormatividade e heterocentrada. Se a ciência estivesse à serviço de nossa libertação, ou ao menos ao combate à esta ordem vigente, poderíamos ter maiores pontes de apoio na luta contra a realidade que a sexualidade das massas trabalhadoras está esmagada pela contradição de tempo, dinheiro e liberdade sexual para realizá-la. Eu, como travesti e trabalhadora encontro-me sob estas contradições. E sem encontrar uma resposta fácil, decidi então voltar a escrever, como desabafo ou relato. Como denúncia vivida buscar genuinamente uma construção coletiva de resistência, também na moral em que queremos conformar de enfrentamento e resistência. Numa sociedade onde o mercado financeiro, através da industria cultural, reforça um modelo de relacionamentos, queremos nós inclusão ao ideal de amor romântico?

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Sempre que escrevo, nesta coluna da minha vida própria, tento dialogar com as pessoas cisgêneras que não carregam em seus corpos, as nossas dores. Fazer-me didática, é parte de buscar ampliar as nossas vozes tão baixas ainda. Assumo que me espanta a conformidade de gênero com que vivem, porque não imagino esta vivência, pois minha identidade é repleta destas contradições e as vezes é mais de caos e conflito, do que de adequação. Mas talvez, seria importante começar a contextualizar a você leitor, qual foi a gota que transbordou estas minhas agonias.

  •  O que houve?

    Nossos olhos se encontraram, num domingo que fazia calor em meio ao Outono. Rolou uma vontade. Ele não parou de olhar e ficou me provocando. Falou pra eu ir com ele embora agora então. A pressa dele que me chantageava, e novamente eu estava submissa ao meu próprio desejo. Chamei ele pra ir na minha casa, porque para a que ele estava eu não me sentiria segura. Ele ofereceu o amigo dele que o acompanhava, mas minhas amigas passaram. E então, decidimos ir só eu e ele. Ele falou pra eu ir na frente, que ele iria atrás. Pensei que fosse essa mania de homem não assumido que quer enganar não sei quem. Acham que estão enganando o mundo todo (e a cisnormatividade). Enquanto eu pagava a conta eu perguntei se ele já havia saído com brasileiras, ele disse que não. Eu perguntei de trans, ele não entendeu - TRAN-GE-NE-RO e nada fazia menor sentido pro jogador colombiano. Eu fui na frente, ele demorou, mas apareceu. Eu me joguei na parede e fiquei vendo ele vir na minha direção enquanto fumava o cigarro. Meu corpo começou a tremer, e eu só esperava que ele não percebesse o quanto estava nervosa. Ele chegou, e começou a andar explicando que tinha que ir embora cedo, se chamava Diego, e que estava de férias pelo Brasil. Eu peguei na mão deles, ele sorriu e fomos indo juntos. Não sei então o que ele falava, mas o beijei sem controlar minha vontade. Ele respondeu rápido e já me puxou e apertou com uma das mãos a minha bunda. Ele beijou me pescoço e colocou a mão por dentro da minha meia calça. A rua completamente vazia, e nós dois parados sem se importar com nada. Então, que ele deu uma volta com a mão, e por dentro da minha calcinha me apertava, enquanto roçava seu pau no meu, e na minha perna deliciosamente. Então que ele veio colocar a não na frente. Ele com o rosto no meu pescoço, eu fechei os olhos, então que ele me tocou e meu pescoço cedeu a boca dele. O alivio dele ter me tocado não durou 3 segundos. Neste terceiro segundo, ele me empurrou bruscamente, indignado e com cara de espanto me questionou "como voy hacer con esto?" aos gritos. Eu me assustei e na minha cabeça tudo já estava péssimo, mas ainda poderia piorar e isso me assustava mais. Eu respondi de idiota o obvio "por trás não sei", como se explicar pra ele como transar com uma pessoa trans fosse simples e pudesse ajudar em algo. Ele resmungou algo que não entendi, e foi indo pra trás, até que se virou e saiu andando. Tão logo começou a correr de volta pro bar. Eu parada, imóvel, e ele correndo. Ele corria com uma pressa de desaparecer. Eu podia sentir o desespero nos seus passos para se afastar de mim. A imagem dele tirando a mão de mim com nojo, com repulsa de que estava já excitado, mostrava que não importava o quanto eu alcançasse uma passibilidade, eu sempre seria abjeta por ser trans".

    Diego - aqui sendo real o nome, não muda o fato que nunca será identificado - estava frustrado porque sentiu-se atraído por mim. Ficou enojado em saber quem eu era, e ele não seria o único a rejeitar-me por não corresponder a expectativa que ele mesmo criou. Quantas outras trans não vivenciaram este momento, onde a cisnormatividade nos invisibiliza a tal ponto que sequer se passa pela cabeça dos homens que nossa genitália não será "obviamente" correspondente à estas normas que para eles é obrigatória? Somos obrigadas a nos apresentar como trans, assegurar esta percepção sobre nós? Para manter nossa segurança, as vezes parece que sim. Como se pudessemos ainda ser responsabilizados por qualquer violência que sofremos, como se trata-se de "um golpe", um "engano", uma ideia que ganhou muita força com a justificativa legal norte-americana de assassinatos de pessoas trans, se o seu ex-companheiro declarar que foi enganado da sua identidade de gênero. Mas afinal, a repressão sexual que está tão explicita na vida de Diego que apesar de estar excitado, por conta de seu conservadorismo sexual, não se permitiu se relacionar comigo: a repressão sexual que sentimos nos nossos corpos, não apenas pela rejeição, mas pela violência e o transfeminicidio, que não surpreendentemente acontece muitas vezes após o alcance do prazer masculino, desmistifica a tese de "engarmos" os nossos parceiros.

    Então que ainda que identidade de gênero e sexualidade pertençam a categorias independentes, estão se relacionando constantemente, seja pela pressão cisnormativa para se vivenciar determinadas experiências sexuais (o que faltava para o Diego era uma xxt?) é preciso adequar seu corpo, aceitando esta conformidade cisgênera. Ou a possibilidade de destranscionar para tentar buscar relações homoafetivas, ou a busca pela castração hormonal para impedir novos anseios que possam ser frustrados pela transfobia no âmbito da afetividade. Todas, me parecem, saídas extremamente violentas para as vivências trans, marcadas pelos castigos secretos dos quais estão diversas instituições "democráticas" por trás em sigilo.

    Quando penso nesta reflexão, me vem Néstor Perlongher em Sexo y revolución: "A genitalização está destinada a remover do corpo sua função de reprodutor do prazer para convertê-lo em instrumento de produção alienada, deixando à sexualidade apenas o indispensável para a reprodução. É por isso que o sistema condena com especial severidade todas as formas de atividade sexual que não sejam a introdução do pênis na vagina, chamando de "perversões", desvios patológicos, etc. Para aprisionar o ser humano ao trabalho alienado é necessário mutilá-lo reduzindo sua sexualidade aos genitais".

    Mas se vivemos num país que ao mesmo tempo que nos assassina em escalas recordes, também estamos em primeiro lugar das pesquisas de pornografia, não se trata aqui de "falta de desejo", mas de falta de afetividade. Assim como se pode ver racismo na hiperssexualização dos corpos negros, não se pode crer que a transfobia se expressaria apenas pela rejeição. Se trata em primeiro lugar, de um lugar concreto que ocupamos na sociedade, sendo 90% de nós presas a prostituição compulsória, estarmos repetidamente sendo colocadas como realizadores de fetiches e prazeres, e não como seres humanos. A desumanização da travesti, e das pessoas trans em geral, é fruto não de uma imaturidade da sociedade brasileira, ou apenas seu conservadorismo, mas da reprodução capitalista da vida, que nos torna mera mercadoria. Tão descartável quanto objetificada à serviço do prazer do outro.

    Se queremos entender o transfeminicidio, e como chegamos a tal barbaridade é porque se naturaliza toda essa cadeia de violências que parte da expulsão de casa, a evasão escolar, os assédios morais e sexuais nos locais de trabalho e estudo, o desemprego estrutural e a prostituição compulsória as identidades trans, a patologização e a ausência de estudos científicos sobre hormonização e saúde para os corpos não-cisgeneros, as péssimas condições de (sobre)vida que somos submetidas. Tudo isso sem mencionar os castigos secretos que a justiça, o Congresso Nacional, a mídia e as diversas instituições burguesas, com destaque a polícia com toda sua violência homofóbica garantem diariamente. Se é sob esta mira que vivemos permanentemente, como não afetar isto em nosso afetividade?

    É nessa busca de refletir minha vida como parte desta realidade geral, e minhas relações afetivas como parte das limitações que não são apenas as pessoas trans, que busco encontrar um equilíbrio entre a minha atuação militante e meu modo de vida. Afinal, quantas de nós muitas vezes não nos sentimos descartáveis por nos submetermos ao nosso próprio prazer e este constituído socialmente pode tornar-se uma imposição perigoso sob o nossos corpos e nossas potencialidades de prazer? Porque temos de arcar com as consequências de quem somos sozinhas? Como não encarar de forma submissa a vivência afetividade atrelada as exceções e não a regra? Como não se sentir vitimizante com uma argumentação que é compreendida como uma suplica para relação afetivas? Mas talvez o mais forte em mim hoje seja pensar como não reduzir os grandes objetivos das nossas paixões coletivas de transformação do mundo com o ideal romântico, que nos reforça que independente de quão militantes e revolucionárias, não se tem afetividade instantaneamente? Isto é, o abismo que a luta revolucionária, que nos engrandece muito além das relações amorosas, e a consciência e realidade das massas, onde o determinismo biológico e a ideologia burguesa cisnormativa prevalecem.

    Parece que ao escrever, eu só consigo colocar mais problemáticas, algumas já tão exploradas pelo movimento transfeministas, outras que individualmente por muitas amigas travestis, e outras que ainda só reconheço em mim. Mas, se expor sempre parece difícil, ainda mais numa cultura capitalista de "não se deve errar ou aparentar ser frágil". Mas justamente, parto de outro angulo. Quero externalizar este combate que travo comigo mesma, sobre quem somos, e que papel desempenhamos na sociedade. Travestis não são frágeis ou fortes naturalmente. Somos este embate cotidiano, na busca da nossa libertação. No campo de batalha. Quanto mais desfazemos estas separações entre a vida e a política, mais podemos avançar sob uma perspectiva revolucionária. Senão com todas as respostas, ao menos com as perguntas que nos produzam ódio, amor e revolução.

    Ela não atrai. Neguem a ela qualquer afetividade para ver se se mantem. Manteve. Mas se se é ela por dentro e por fora só estranheza, se é ela por dentro, e por fora lhe negam a mão, se é ela por dentro, e por fora duvidas e olhares curiosos. Se é ela por dentro, por fora outros olhares silenciadores. Se é ela por dentro, por fora risos aonde passa. Se é ela por dentro, mas no banheiro lhe estranham. Mas se é ela por dentro, mas por fora o corpo transcionou e parou, retrocedeu, voltou a inicial batalha, agora já ciente que a rua não tem saída e correr não vai derrubar o muro que impede a fuga.

    Se por dentro mulher, mas por fora muito mulher para os gays e mulher insuficiente para os heterossexuais. Mas se por dentro ela, por fora "aquilo". Se por dentro ela, mas por fora não dizem. Se por dentro ela, mas no espelho as lagrimas voltam a confirmar sua angustia. Se por dentro sufoca-se, por fora silencio. Se por dentro destrói-se, por fora poesia. Se por dentro aceitou a derrota, por fora foi derrotada. NÃO! Não aceita!

    Se é ela por dentro, por fora não existe outra. Se é ela por dentro, por fora combate. Por dentro engole o choro, pra fora grita. Pra fora, histérica. Se por dentro ela não deitou, por fora ninguém a deita. Se por dentro ela nunca quis ser cis, por fora ela escolhera o que poderia ser, e é. Se por dentro ela, por fora dela, não vão defini-la. Se por dentro ela aprendeu a amar-se, por fora também ira aprender. E ensinar, quem ama-la, amara seu corpo, amara-la trans.

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