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CIÊNCIA
A falácia de reduzir a pessoa a nada mais do que biologia
Juan Duarte

Entrevista com o neurobiólogo Steven Rose.

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Publicada originalmente em Ideas de Izquierda número 7, março de 2014.

IdZ: Desde os anos 70, você vem discutindo contra o determinismo biológico, desnudando sua relação com posições reacionárias nas ciências sociais e com políticas de direita. Em “Not in Our Genes” (1984 - “Não em nossos genes”, inédito no Brasil), por exemplo, com Richard Lewontin e Leon Kamin, criticam a sociobiologia de Wilson e as teses de Richard Dawkins em “O Gene Egoísta” (1976, lançado no Brasil em 2007 pela Cia. das Letras). Passaram-se várias décadas. Qual você acha que é o lugar que ocupa o determinismo biológico hoje, quando muitos neurocientistas falam da “década da mente”?

O determinismo biológico está vivo e com boa saúde. Florescem os comentários sobre os genes. Na Inglaterra, a coalizão de governo conservadora-liberal reabriu o debate sobre o QI (Quociente Intelectual) com o prefeito de Londres afirmando que 16% da população possui coeficientes intelectuais abaixo de 85 e são essencialmente “descartáveis” em oposição aos 2% com 130, e o conselheiro do Ministro da Educação afirmando que o Coeficiente Intelectual é 70% hereditário. Essas afirmações repetem os velhos “maus entendidos” tanto da teoria do QI como da genética, que são claramente conduzidas ideológica e politicamente. Paralelamente, as neurociências são igualmente deterministas, reificantes e buscam localizar tudo – desde o amor romântico até a orientação política e o juízo moral – em regiões do cérebro visualizadas por imagens de ressonância magnética funcional, por suas vez moldadas por forças genéticas. Elabora frases tais como “você não é nada além de um feixe de neurônios” (Francis Crick) ou “Eu Sináptico” (Joseph LeDoux) ou “Você é o seu cérebro” (Eric Kandel) – todos exemplos da falácia mereológica que reduz a pessoa socialmente inserida a nada mais que a biologia –.

IdZ: Em “Seu cérebro amanhã” (2005) você também aponta, em relação às dicotomias mente-corpo ou processo-produto, parafraseando T. Dobhzansky, que “nada na biologia tem sentido exceto à luz de sua própria história”, e que esta está determinada pelo desenvolvimento do capitalismo. Poderia nos dizer como você vê essa relação?

É bem conhecido o fato de que, no Ocidente, no nascimento da ciência “moderna” foi contemporâneo ao ascenso do capitalismo. Os modos de pensamento que até agora o capitalismo exigiu – reducionista, quantificável, individualista – são precisamente aqueles que moldaram as direções do desenvolvimento científico nos últimos três séculos, enquadrando tanto as perguntas que se colocam os cientistas do mundo natural ao nosso redor, como os tipos de respostas estimadas como aceitáveis.

IdZ: Em relação a essas tendências deterministas e dicotômicas, nesse livro você afirma que “houve apenas uma abordagem completamente ocidental em relação à ciência que escapa a essa crítica, a do materialismo dialético marxista”. Em que sentido você acredita que o materialismo dialético marxista tenha sido uma contribuição?

O contraste é em relação ao materialismo mecânico reducionista, que Marx e Engels criticavam, o qual reduz tudo a processos moleculares – veja-se Moleschott ou outro fisiologista do século XIX entre os cientistas da vida e fisiologistas da tradição cartesiana –. Em seu interesse por exorcizar o “fantasma na máquina” eles optaram por um universo determinista ao extremo. Um materialismo dialético reconhece a existência de níveis de organização do mundo material, que as células não podem ser simplesmente reduzidas a moléculas ou os organismos a células, mas sim que novas relações emergentes aparecem em todos os níveis, que dependem mas transcendem os níveis mais baixos (por exemplo, o comportamento da bola em uma partida de futebol está estritamente sujeito às “leis” da física, mas não pode se deduzir as leis do futebol de princípios físicos), estão profundamente localizadas socialmente socialmente em padrões e mudanças na organização social e da cultura.

IdZ: Você também disse que o marxismo é “uma tradição potencialmente fértil”. Em que sentido crê que isso é significativo hoje?

Na ciência, pelas razões apontadas acima. Na vida e na política porque, ainda que vivamos em tempos radicalmente diferentes, com as transformações na produção globalizada, a destruição das classes operárias organizadas, pelo menos nos Estados pós-industriais, a tradição marxista enfatiza as grandes contradições na sociedade, de classe, gênero, raça, e assim acaba com os eufemismos da ideologia burguesa.

IdZ: Em “A radicalização da ciência” (1976) e em “Ciência e Sociedade” (1970), com a socióloga da ciência Hillary Rose, indicam a necessidade de desenvolver uma “economia política da ciência” a partir do marxismo, e traçam uma caracterização crítica apontando a tendência à mercantilização da ciência em vários níveis. O que dessa caracterização se mantém hoje?

Isso está discutido particularmente no último livro que escrevi junto com Hillary Rose, “Genes, Cells and Brains: the Promethean promises of the new biology” (Genes, Célular e Cérebros: as promessas Prometéicas da nova biologia). Em uma economia neoliberal globalizada, a tecnociência se tornou mercantilizada, e desempenha um papel central na mercantilização de quase todo aspecto de nossa vida cotidiana, incluindo informação sobre nosso corpo e nossa genética.

Entrevistou e traduziu ao espanhol: Juan Duarte.
Tradução para o português: Fernando Pardal.

Steven Rose

Formado em Bioquímica e Neurobiologia em Cambridge nos anos 1950, foi parte de um significativo setor de cientistas de primeiro nível que, impactados pelos grandes fatos históricos como a autocrítica do PC nos anos 50 pelos crimes do stalinismo, a invasão soviética à Hungria, a Guerra Fria e – sobretudo – a guerra do Vietnam, se aproximaram das ideias do marxismo e das lutas operárias e populares, participando delas ao mesmo tempo que questionavam o papel da ciência na sociedade capitalista. Tal como o paleontólogo Stephen Jay Gould e o geneticista Richard Lewontin, entre outros, suas contribuições são fundamentais para uma crítica da ciência no capitalismo, e em particular dos desenvolvimentos reducionistas e deterministas biológicos que justificam diferentes formas de opressão. Junto a Hillary Rose publica “Ciência e sociedade” em 1969, e “A radicalização da ciência” em 1976. Em 1984, junto a Richard Lewontin e o psicólogo Leon Kamin, publicam “Não em nossos genes”. Racismo, genética e ideologia”, a partir do qual empreende uma importante crítica ao reducionismo e o determinismo biológico da sociobiologia, e os usos da genética e do evolucionismo em autores como Edward Wilson e Richard Dawkins, utilizando elementos da teoria marxista. Também publica “Alas, poor Darwin. Arguments Against Evolutionary Psychology” (2000) que complica importantes críticas aos usos reducionistas do evolucionismo na psicologia, e “Trajetórias de vida: biologia, liberdade, determinismo” (2004). Em “Seu cérebro amanhã” (2008) desenvolve uma crítica às neurociências atuais expondo sua própria síntese alternativa. Mas recentemente publicou, também junto com Hillary Rose, “Genes, Cells and Brains: the Promethean promises of the new biology” (2012), submetendo à crítica a biotecnologia, a medicina regenerativa e as neurociências no marco do capitalismo neoliberal. Academicamente fez importantes contribuições ao campo neurobiologia de aprendizagem e da memória, e é professor emérito da Open University de Londres. Nos últimos anos foi um dos principais impulsionadores do boicote científico ao Estado de Israel em defesa do povo palestino.

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