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LITERATURA E REVOLUÇÃO
Os 50 anos da publicação de Literatura e Revolução, de Leon Trotski, no Brasil (Parte 2).
Afonso Machado
Campinas
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Dentro da cabeça de um intelectual brasileiro de esquerda do final dos anos 60, borbulhavam imagens perturbadoras: gorilas armados prendendo a rapaziada, corpos retorcidos por choques elétricos, bombas de napalm atiradas por jatos do Exército dos EUA sobre as selvas do Vietnã, militantes negros colocando as elites brancas na parede, o corpo morto( e os olhos vivos) de Che Guevara, jovens cabeludos exorcizando os fantasmas da educação burguesa através do rock, passeatas , cartazes, gente maluca, amor e sangue nas ruas de muitas cidades( de muitos países). Não era difícil encontrar pessoas de esquerda que pensavam intensamente a dimensão cultural da Revolução. São nas brechas deste debate que a publicação de Literatura e Revolução, de Trotski, chega com tudo no Brasil de 1968.

A obra de Trotski dialoga de modo conflituoso com uma conjuntura em que problemas nacionais e situações internacionais confundiam aquela geração arretada. Revoluções, golpes de Estado, conflitos de rua e reviravoltas culturais eram realidades históricas estampadas na primeira página dos principais jornais da época.

A palavra Revolução, imersa muitas vezes na tática da guerra de guerrilhas, distanciava-se em vários casos das lições bolcheviques e mergulhava em equívocos históricos que passavam pela liderança campesina e pelo nacionalismo. Portanto o debate estético na esquerda vinha, em parte, influenciado por deformações políticas, trazendo em mãos uma régua muito pequena e imprecisa para medir tanto o problema político central(a complexa situação ideológica do operariado intimidado pela ditadura) quanto as novas informações artísticas internacionais que expressavam a rebeldia da juventude.

As turbulências de 1968 exigiam clareza quanto aos fundamentos da crítica marxista. Neste sentido é de grande utilidade política revisitarmos o importantíssimo prefácio O Marxismo E A Questão Cultural, que Moniz Bandeira escreveu para o livro. Segundo Moniz: (...) “ Estes problemas – a que os fundadores do socialismo científico não dedicaram especial atenção- os bolcheviques tiveram de enfrentar após a tomada do poder em 7 de novembro de 1917(24 de outubro). O torvelinho da Revolução envolveu, de uma forma ou de outra, os escritores, poetas e artistas. A torre de marfim desmoronou. A indiferença da arte pura pela participação política manifestou seu verdadeiro sentido de classe “(...). Enquanto que a Revolução russa derrubou a torre de marfim dos literatos, a partir de uma transformação radical nas bases materiais, no Brasil esta mesma torre havia sido questionada e não derrubada por artistas e intelectuais durante o governo Jango(basta nos lembrarmos do empenho do Centro Popular de Cultura, por exemplo). Diante dos erros políticos(e logo culturais...) de uma esquerda imersa no espectro stalinista, notamos que ela não conseguiu lidar politicamente/militarmente com o Golpe de 64. Entretanto, se a Revolução socialista ainda era o projeto a ser contemplado para o país(e não iria demorar muito para vários militantes se entregarem de corpo e alma à luta armada) o livro de Trotski conduz a uma análise precisa do papel revolucionário da arte: (...) “Os problemas que Trotski levantou em Literatura e Revolução continuam, assim, na ordem do dia. A literatura e a arte serão o espelho ou o martelo, ou, a um só tempo, espelho e martelo. Realista ou abstrata, refletirá, não menos pela forma que pelo conteúdo, a necessidade do homem que deseja sua emancipação, a angústia do povo que luta para se libertar “(...).

Antes de entrarmos no mérito da publicação de Literatura e Revolução no Brasil de 68, façamos uma breve exposição sobre a sua gênese. Infelizmente a tradução da obra no Brasil corresponde a uma pequena parte do livro originalmente publicado: a obra de Trotski é gigantesca, conta com cerca de 400 páginas(é possível tentar garimpar em algum sebo uma edição em castelhano da versão integral de Literatura e Revolução, publicada pelo pessoal da Razón Y Revolucion ) . Ainda que corresponda a uma pequena parte da original, a edição que chega ao Brasil em 68 (e que foi reeditada em 2007) abarca as qualidades fundamentais de uma crítica marxista que compreende a contribuição revolucionária da arte a partir de suas especificidades, de suas leis que não poderiam estar subordinadas às vontades imediatistas do Partido revolucionário.

É conhecido o título “ Nem só de política vive o homem... “, que Trotski deu a um ensaio publicado no Pravda em julho de 1923. O título é sugestivo por expor que as necessidades da vida social não se restringem a uma ação que se faz a partir de órgãos políticos, a partir de estruturas centralizadas de poder. Ele próprio, o segundo homem da Revolução de Outubro e general do Exército Vermelho durante os duros anos da guerra civil, sabia da importância vital que a arte , a literatura, a ciência e a filosofia tinham para o desenvolvimento humano/intelectual dos trabalhadores.

Os interesses culturais do marxista russo continuavam a ser claramente políticos. A luta pelo poder operário fazia com que Trotski buscasse a sua significação histórica através do desenvolvimento cultural. Enquanto teórico da Revolução permanente, Trotski compreendia que a luta política adquire uma proporção específica na cultura, que precisa completar ao longo da construção histórica, os objetivos políticos emancipadores da própria Revolução. Em outras palavras, a cultura deve aprofundar no âmbito do cotidiano o sentido permanente da Revolução. Neste sentido a arte educa a sensibilidade revolucionária , combatendo o conservadorismo no dia a dia, construindo novas formas de sentir e participando ativamente(no sentido internacionalista) de uma nova sociedade. Entretanto, Trotski subestimou as necessidades de elaboração da arte revolucionária dentro do Estado operário: ele via pela frente décadas de luta revolucionária no plano internacional. Para ele a cultura só poderia se desenvolver quando o governo transitório do proletariado estivesse prestes a desaparecer, o que representaria o sucesso político mundial da classe operária no poder.

De fato, não se poderia esperar um profundo desenvolvimento cultural num contexto em que luta revolucionária só gera formas desenhadas com labaredas. Mas mediante o refluxo da Revolução mundial no início dos anos 20, como não dedicar especial atenção aos problemas culturais da União Soviética? É neste sentido que Bukharin afirmou que Trotski subestimou a durabilidade da ditadura do proletariado e sua problemática cultural. Porém, apesar do refluxo revolucionário, Trotski conseguiu formular um poderoso ponto vista marxista sobre a arte: durante o governo de transição, os movimentos artísticos ligados à Revolução necessitam de liberdade para experimentar/criar e o proletariado de tempo para assimilar a produção artística do passado. Este espaço de liberdade dentro da Revolução seria incompatível com a mentalidade estreita de uma burocracia que ao frear o desenvolvimento internacional da Revolução, castra também a arte ao converte-la em mera propaganda estatal.

Cabe mencionar o terreno hostil em que Trotski defendia suas ideias sobre cultura. A burocracia que levaria Stalin ao poder e as correntes artísticas mergulhadas em um superficial esquerdismo aprontavam uma concepção normativa de cultura, em que o fetiche em torno da imagem estereotipada do trabalhador russo, abria alas para o nacionalismo e o culto à personalidade do futuro ditador da URSS. É sob este pano de fundo histórico que Trotski, após recusar o cargo de Vice premier em 1922, resolve tirar férias para se concentrar em suas atividades literárias. O autor, cujo apelido “a Pena “ exprimia a trajetória de um hábil escritor e notável crítico literário, pretendia redigir a princípio um prefácio à edição de uma obra que continha seus escritos sobre literatura. Aquilo que seria um prefácio adquiriu sustança, revelando um trabalho de longo alcance sobre a situação da literatura russa após a Revolução de Outubro. No ano seguinte, Trotski retoma o projeto e conclui a obra que levou o título de Literatura e Revolução (1923). O livro veio a público num momento político em que a burocracia soviética ensaiava um golpe digno dos triunviratos dos tempos da República romana(a coisa ficou feia mesmo no final dos anos 20).

Não poderíamos nos limites deste texto expor toda complexidade política e cultural que revestiu o livro de Trotski na União Soviética dos anos 20. O nosso foco reside na contribuição de Trotski para se compreender as relações entre arte e revolução, uma questão candente no Brasil de 1968, quando a obra é tardiamente publicada. De um modo geral podemos afirmar que Literatura e Revolução colabora com o debate sobre arte revolucionária em 68, na medida em que a obra apresenta problemas como:

1- O desenvolvimento desigual da cultura na história dos países
2- O fator da herança artística para o proletariado
3- A complexa relação entre o marxismo e movimentos artísticos que, mesmo sem serem manifestações que nascem em torno do proletariado, tornam-se elos importantes para a construção da arte revolucionária

A primeira questão coloca-se, no contexto soviético, como fruto de uma formação histórica em que a literatura russa deu-se num país composto em grande parte por operários e camponeses analfabetos. A necessidade educacional do proletariado era análoga a um cenário literário composto por escritores que não aceitam a Revolução e por aquelas tendências estéticas que, ligadas em diferentes níveis ideológicos à tomada do poder em Outubro, geraram uma arte de transição. Como observou Irving Howe , o início e os capítulos finais de Literatura e Revolução são um assalto teórico às concepções do Proletkult: para Trotski a arte que expressa a Revolução de Outubro não poderia ser proletária, e ainda estava muito longe de ser socialista. Porém, dentro da arte de transição existiriam componentes estéticos que contribuiriam para o desenvolvimento histórico da arte da Revolução(este era sobretudo o caso do futurismo russo).

O que aconteceria se contextualizemos estes problemas apontados por Trotski, na realidade histórica específica do Brasil dos anos 60? Naquele momento, em que manifestações artísticas de combate haviam sido apartadas da realidade do proletariado, o debate estético da esquerda estava isolado dentro de uma “ classe média radical “. Ao passo que a ditadura militar abria alas para a intensificação da cultura de massa, a crítica marxista não poderia ignorar seus efeitos ideológicos na população. Movimentos importantes como o Cinema Novo e o tropicalismo, na maioria das vezes incompreendidos por uma esquerda ainda marcada pela herança política e cultural do stalinismo, merecem uma reavaliação histórica em que suas contribuições estéticas sejam analisadas segundo o ponto de vista marxista. Como veremos na parte 3 deste artigo, o livro de Trotski traz a possibilidade de uma outra leitura sobre as relações entre arte e revolução no contexto brasileiro.

 
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