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Fragmentação do arquivo Lukács em Budapeste já está em andamento, relata pesquisador
Redação

O conhecido arquivo Lukács, com documentos, livros e arquivos do filósofo marxista húngaro, vem sendo ameaçado de desintegração há alguns anos, tendo estado na mira de grupos de direita e do governo. O pesquisador doutorando Murillo van der Laan, da Universidade Estadual de Campinas, pôde acompanhar de perto os últimos desdobramentos desse caso, onde já começaram os processos para desmantelar o arquivo.

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O conhecido arquivo Lukács, com documentos, livros e arquivos do filósofo marxista húngaro, vem sendo ameaçado de desintegração há alguns anos, tendo estado na mira de grupos de direita e do governo. O pesquisador doutorando Murillo van der Laan, da Universidade Estadual de Campinas, pôde acompanhar de perto os últimos desdobramentos desse caso, onde já começaram os processos para desmantelar o arquivo.

Reproduzimos seu relato que oferece um quadro também da luta atual contra o desmantelamento do arquivo:

"Ainda sobre o Arquivo Lukács, para não esquecer

O Arquivo Lukács já é conhecido por muita gente. É uma raridade da qual Budapeste deveria se orgulhar muito. Situado no antigo apartamento onde Lukács e Gertrúd Bortstieber viveram, conserva seus móveis, seu acervo original, seus manuscritos, suas cartas, além das diversas publicações, em diversas línguas, sobre a vida e a obra de Lukács. Há mais de quarenta anos é um local para pesquisadores de diversas áreas. Marxistas, não marxistas, admiradores e críticos da obra de Lukács. Desde a década de 1990, entretanto, o Arquivo vem sofrendo ataques. Primeiro de maneira sutil, com a não contratação dos antigos pesquisadores que trabalhavam no local. A partir de 2010, entretanto, a situação política da Hungria tornou-se cada vez mais tenebrosa. O governo de Viktor Orbán e de seu partido Fidesz foram responsáveis por ataques a diversos grupos, desde uma perspectiva nacionalista de extrema-direita: um discurso ambíguo e conivente com relação ao antissemitismo e aos ataques à população rom na Hungria; ataques aos intelectuais progressistas e de esquerda; o estranho fechamento do jornal Népszabadság; ataques à Universidade Centro-Europeia; tentativa de reabilitação do governo húngaro de Miklós Horthy, aliado ao nazismo; ataques aos refugiados e aos muçulmanos, à população LGBTQI e um longo etc. Para piorar as coisas, a atual segunda força política na Hungria, o partido Jobbik, apesar de recentemente tentar atenuar seu discurso, surgiu e cresceu com um programa ainda mais à extrema-direita do que o de Viktor Orbán. Para se ter uma ideia da gravidade da situação, grupos paramilitares com ligações com o Jobbik, desfilavam uniformizados pelas ruas de Budapeste até 2009.

Jobbik e Fidesz, a despeito de hoje serem inimigos declarados, foram os responsáveis pela remoção da estátua de Lukács, situada no parque Szent István no ano passado. Nesse difícil contexto, vieram os ataques mais fortes ao Arquivo. Em 2016, a Academia de Ciências da Hungria, responsável pelos livros, manuscritos e pelo acervo de Lukács, decidiu pelo seu fechamento. O imóvel onde está o Arquivo seria devolvido ao quinto distrito de Budapeste; os manuscritos iriam para a biblioteca da Academia de Ciências da Hungria; os livros para o Instituto de Filosofia e, dessa maneira, o material que hoje se encontra reunido seria fragmentado. Há rumores de que essa proposta tenha surgido no mandato do anterior presidente da Academia, József Pálinkás, que possui ligações com o Fidesz de Viktor Orbán. No entanto, o anúncio do desmantelamento veio apenas no mandato do conhecido matemático László Lovász. A despeito de ser considerado mais progressista que seu antecessor, Lovász até aqui não interferiu efetivamente para conter o desmantelamento do Arquivo.

As respostas contra os planos da Academia, todavia, não tardaram. Uma petição assinada por mais de 10 mil pessoas demonstrava a preocupação com o fechamento do Arquivo e, ao mesmo tempo, a Fundação Internacional do Arquivo Lukács foi formada para a defesa de seu legado. A partir dessas resistências, a Academia recuou, por ora, de seu intuito inicial. No momento, ao que parece, um novo contrato foi firmado com o quinto distrito de Budapeste para a manutenção do apartamento até 2024. A Fundação, enquanto isso, irá empenhar-se no levantamento de fundos para a renovação do apartamento. Todavia, o que é crucial, é que os planos de remoção dos manuscritos continuam. No acordo, que é celebrado pela Academia como um entendimento pacífico, apenas os livros ficarão no apartamento. Mesmo que seja um recuo do plano inicial de desmantelamento completo, isso significa ainda que o Arquivo será fragmentado.

Na quarta-feira passada (31/01) consegui chegar em Budapeste e, desde então, tenho ido ao Arquivo. Dois funcionários da Academia Húngara catalogam os manuscritos antes de iniciar a remoção para a biblioteca. Em algumas semanas eles terminarão o trabalho. Enquanto isso, Mari Székely, a única funcionária remanescente do Arquivo, trabalha atendendo pessoas do mundo inteiro, com uma disposição e um conhecimento do acervo impressionantes.

Depois de removidos, o que se diz é que os manuscritos serão digitalizados e, então, disponibilizados na biblioteca da Academia. Não se tem ideia do prazo para isso e se, nesse meio tempo, estarão disponíveis aos pesquisadores. Não há, aliás, um plano concreto da Academia sobre essa digitalização, sobre a disponibilidade dos manuscritos em versão física ou digital, online, etc.

Pelo que pude entender, dentre os que lutam pela conservação do Arquivo, há posicionamentos diferentes sobre o atual cenário. Enquanto alguns entendem que é preciso, no momento, enxergar as dificuldades e reconhecer alguns ganhos frente a situação inicial, outros dão mais ênfase à fragmentação do Arquivo e compreendem esse como mais um passo para o seu desmantelamento definitivo. Entenda-se de uma forma ou de outra, o ataque à memória de Lukács, que obviamente é muito mais grave do que qualquer crítica direcionada a ele, diz respeito ao contexto tenebroso que vive a Hungria. Para a extrema-direita húngara, o “judeu comunista” precisa ser extirpado da memória nacional.

Não se trata apenas de uma questão meramente acadêmica e a solidariedade internacional é, mais uma vez, muito importante. Os apelos a essa solidariedade se repetem, porque os ataques não cessam. Domingo (04/02), por mais de uma hora, uma jovem camarada, pesquisadora da história dos judeus na Hungria, me falou sobre a situação de seu país, sobre os ataques à memória de Lukács e sobre a necessidade de resistência. Mesmo sabendo de toda a complicação da palavra “fascismo”, ela não encontrou outra para definir o atual momento da Hungria: “o fascismo de hoje é diferente daquele do período entre guerras, eles não fazem movimentos bruscos, não prendem as pessoas, não as torturam até que elas morram; eles também não fecham universidades e arquivos em apenas um momento. Eles dão passos pequenos para que, entre um passo e outro da destruição, as pessoas esqueçam da causa. Então, por favor, não se esqueçam de nós.”

 
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