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ESTADOS UNIDOS
Somos os 99%? Está mais para 70%
Wladek Flakin

"Nós somos os 99%!" é um slogan que surgiu no movimento Occupy em 2011 e inspirou pessoas ao redor do mundo. Essas quatro palavrinhas expressam nosso desprezo pela desigualdade inerente ao sistema capitalista global. Mas será que representam uma estratégia para mudança?

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Em 15 de maio de 2011, dezenas de milhares de jovens conhecidos como “indignados” saíram às ruas da Espanha, dando início ao movimento 15-M. Os jovens exigiam “democracia real já”, opondo-se à casta política corrupta que, segundo eles, “não nos representa.” Esses jovens têm sofrido com anos de crise econômica, medidas de austeridade e empregos precários. Uma vez que os partidos da ordem e os sindicatos não estavam fazendo nada a respeito da crise, eles decidiram tomar a luta em suas próprias mãos.

Esse mesmo sentimento foi parte de um ciclo global de protestos, aparecendo alguns meses antes na Praça Tahir, no Cairo, e alguns meses depois no Zuccotti Park, na cidade de Nova Iorque. Esses protestos pretendiam representar o povo – ou 99% dele.

A ideia dos 99% representava uma consciência de classe incipiente que não existia nos EUA em décadas. Tal ideia implica que uma ínfima minoria da população lucra da miséria da vasta maioria, e conquistou a imaginação de dezenas de milhares de jovens e trabalhadores. Os movimentos Occupy e Indignados representam, portanto, um fenômeno progressista. Mas este fenômeno também tem suas limitações. Como marxistas, temos de pensar nas armadilhas de uma estratégia que visa unir inteiramente 99% da população.

O desejo de representar todos já levou a algumas cenas bizarras. No verão de 2011 em Barcelona, mais de 10 mil pessoas reuniram-se na Praça Catalunya – uma das maiores assembleias do movimento 15-M – para debater o caminho a seguir. A esmagadora maioria dos presentes apoiava a demanda pela autodeterminação das nacionalidades oprimidas (que só fez se tornar mais candente nos últimos seis anos). Mas um grupo de cerca de 40 nacionalistas espanhóis eram contrários a essa demanda. Em nome do “consenso” entre “os 99%”, o movimento não levantou essa demanda absolutamente popular. Os líderes do movimento inclusive receberam policiais em seus palanques, pois esses também seriam supostamente parte do “povo”.

Esse problema existiu desde o início do capitalismo: Em uma economia de mercado, os meios de produção são propriedade de um número infinitesimamente pequeno de capitalistas, aos quais os marxistas nos referimos como a burguesia. Esta classe social vive do trabalho da vasta maioria, que não é proprietária de meios de produção e, consequentemente, precisa vender sua força de trabalho para sobreviver; referimo-nos a este grupo como o proletariado. Mas a burguesia não governa diretamente. Um complexo regime (que frequentemente inclui mecanismos democráticos, constitucionais e parlamentares) cria incontáveis segmentos entre os dois polos principais da sociedade capitalista. Se as condições fossem tão simples que 1% ou 0,1% da população (como sugeriu o economista liberal Paul Krugman) dominasse o resto, então, uma revolução social seria absurdamente fácil!

Uma analogia de 1930

Fazendo uma analogia: Em 1930, o uma vez revolucionário Partido Comunista da Alemanha (KPD) já tinha sido tomado pelos burocratas stalinistas sob a direção de Ernst Thälmann. Diante do crescimento explosivo dos nazistas, esses dirigentes stalinistas começaram a copiar os slogans fascistas. Ao invés de um revolução proletária, convocavam à “revolução popular”.

Leon Trotsky, o líder exilado da Revolução Russa que dirigiu a luta contra o stalinismo, criticou duramente essa ideia:

Agora o novo giro: a revolução popular ao invés da revolução proletária. O fascista Strasser diz que 95% da população está interessada na revolução, consequentemente, esta não é uma revolução de classe mas uma revolução do povo. Thälmann canta em coro. Na realidade, o operário-comunista deve dizer ao operário fascista: é claro que 95% da população, se não 98%, é explorado pelo capital financeiro. Mas essa exploração é organizada hierarquicamente: existem exploradores, existem sub-exploradores, sub-sub-exploradores, etc. Somente graças a essa hierarquia é que os superexploradores mantém em sujeição a maioria da nação. Para que a nação seja verdadeiramente capaz de se reconstruir em torno de um novo núcleo de classe, a nação deve ser reconstruída ideologicamente, e isto só pode ser feito se o proletariado não se dissolver dentro do “povo,” dentro da “nação,” mas, ao contrário, desenvolver um programa de sua própria revolução proletária e obrigar a pequena burguesia a escolher entre dois regimes. O slogan da revolução popular ilude a pequena burguesia, assim como as amplas massas de trabalhadores, reconcilia-os à estrutura hierárquica-burguesa do “povo” e retarda a sua liberação. Mas sob as presentes condições na Alemanha, o slogan de uma “revolução popular” apaga a demarcação ideológica entre o marxismo e o fascismo e reconcilia parte dos trabalhadores e a pequena burguesia à ideologia do fascismo, permitindo-lhes pensar que não são obrigados a fazer uma escolha, pois, em ambos os campos, é só uma questão de uma revolução do povo. Em um conflito com um inimigo sério, esses revisionistas miseráveis pensam antes de mais nada em como imita-lo, como repintarem-se nas cores dele e como conquistar as massas através de um truque espertinho e não de uma luta revolucionária.

(Leon Trotsky: Thälmann e a “Revolução Popular”)

Nem de esquerda nem de direita?

Em todo o mundo, os velhos regimes políticos estão decaindo, e novos partidos estão tomando a dianteira, tanto à esquerda quanto à direita. A Frente Nacional francesa está na extrema-direita, enquanto o Podemos, no Estado Espanhol, seria uma esquerda social-democratizante. Ambos, todavia, alegam não ser “nem de esquerda, nem de direita”. A despeito de suas diferenças ideológicas, ambos acreditam que os conceitos de “esquerda” e “direita” tornaram-se anacrônicos. Para a FN, o verdadeiro conflito é entre patriotas e globalistas, enquanto o Podemos vê uma luta entre a casta política e a democracia.

Muitos desses novos partidos dizem representar “o povo.” Mas, na sociedade capitalista, “o povo” é dividido em classes antagônicas. Os patrões diminuem nossos salários para aumentar seus lucros – e nós fazemos greves para termos melhores salários, diminuindo seus lucros. Cada ganho nosso é uma perda para eles e vice versa. Não temos interesses em comum. Então, quem pode alegar representar os interesses desses dois campos beligerantes? Qualquer um que se refira a um “interesse nacional” sobreposto e divorciado da análise de classe inevitavelmente defende os interesses da maioria da nação, isto é, da burguesia.

A pequena burguesia

Os marxistas referimo-nos aos estratos sociais entre os dois polos da sociedade capitalista como a pequena burguesia. Em seu sentido estrito, esse termo refere-se às pessoas que têm meios de produção, mas em uma escala tão limitada que não podem viver do trabalho de outros. Um membro da pequena burguesia pode ser o dono de uma loja ou um prestador de serviços. Mas, em um sentido mais amplo, o termo envolve todo tipo de estrato intermediário, incluindo profissionais de todo tipo, militares, burocratas estatais, técnicos, gestores, administradores médios – mesmo que formalmente trabalhem em troca de um salário.

O revolucionário belga Victor Serge definiu assim esses estratos:

pessoas medíocres, mais ou menos exploradas mas altamente privilegiadas dentro do sistema de exploração, e participantes desse sistema. A inteligência técnica é simultaneamente organizadora da produção e da exploração; é, portanto, levada a se identificar com o sistema e a conceber o modo de produção capitalista como o único possível. A pequena burguesia, educada, confortável e mantida em uma posição de subordinação pela burguesia, é frequentemente ameaçada pelo empobrecimento e, consequentemente, tende ao socialismo; é, entretanto, inclinada a se iludir fatalmente. Mais culturalmente cultivada que o proletariado, mais numerosa e mais ideologicamente avançada que a burguesia propriamente dita, a pequena burguesia sente que é sua vocação dirigir a sociedade. As ilusões democráticas do século XIX nasceram desse estado de espírito e, por sua vez, ajudaram a nutri-lo. O socialismo da pequena burguesia é um socialismo de administradores; liberal, confuso, individualista, ora utópico, ora reacionário. A cultura pequeno-burguesa é capitalista, fixada na defesa da velha ordem e em uma educação de massas conformada aos interesses das classes proprietárias. A mentalidade pequeno-burguesa tende, sobretudo na política, a separar a ação da palavra; a palavra é concebida como um antagonista da ação ou como um falso substituto desta [...] As mais bravas almas das classes médias russas, que simpatizavam com a revolução muito antes desta tornar-se realidade, pensavam que se devia confina-la à revolução burguesa que abriria uma era de sólidas reformas. A revolução proletária aparecia para eles como uma invasão bárbara, um colapso rumo à anarquia, uma blasfêmia contra a ideia da própria revolução. [...] As classes médias queriam que a revolução burguesa inaugurasse uma república democrática na qual constituíram as classes administrativas e em que o desenvolvimento capitalista procederia sem entraves [...] O utopismo dessa classe também foi chocado pela realidade da revolução: a realidade áspera, sangrenta, tão diferente do idílio romântico com que costumavam sonhar. Os operários e soldados tinham uma abordagem bem diferente aqui, acostumados como estavam a viver em uma realidade áspera e sangrenta, suportando a penúria em toda a sua nua brutalidade, educados na escola da recessão e da guerra imperialista.

(Victor Serge: O Ano Um da Revolução Russa)

A pequena burguesia é mais ideologicamente avançada e numerosa que a “grande” burguesia, por isso reivindica a democracia. Mas também é mais educada e privilegiada que o proletariado – e sabota o seu próprio programa democrático com seus apelos contra o “populacho”, isto é, contra o autogoverno das massas trabalhadoras.

Isso cria uma contradição paralisante: enquanto, via de regra, os partidos pequeno-burgueses definem-se como “democráticos”, tais partidos são invariavelmente construídos de uma maneira autoritária, vertical e burocrática.

O Podemos é um exemplo perfeito disso. É um partido dirigido por acadêmicos que cresceram nos anos 1980 acreditando no capitalismo dinâmico do Estado Espanhol. Esses acadêmicos sentem que, devido ao seu elevado nível educacional, cabe a eles a direção da sociedade – mas os políticos corruptos obstaculizam suas carreiras, e é por isso que esses acadêmicos gritam por “democracia”. Ao mesmo tempo, querem garantir que o poder político esteja nas mãos dos “especialistas”, isto é, eles mesmos.

Isto aparenta ser uma contradição. A formação política “democrática” dirigida por Pablo Iglesias tem um regime interno mais burocrático até que os partidos de direita. A posição de Iglesias como “Secretário Geral” lhe dá poderes ilimitados dentro do partido. As instâncias dirigentes são compostas inteiramente por apoiadores seus – às plataformas de oposição é negada qualquer representação. A ideia plebiscitarista de que decisões importantes podem ser tomadas através de votações online dá poder político àquelas figuras que têm fácil acesso à mídia burguesa – são elas que podem “enquadrar” a discussão na TV e decidir que questões se pode pôr em votação em primeiro lugar.

A pequena burguesia é um estrato social que pensa que quer revolução mas inevitavelmente estremece de horror diante de suas consequências. Exigem democracia da grande burguesia, mas continuam antidemocráticos em relação aos trabalhadores. Por isso, “revolucionários” pequeno-burgueses bem sucedidos são integrados ao regime burguês.

A classe trabalhadora

A classe trabalhadora, em contrapartida, compõe 60%, 70% ou 80% da população de um país capitalista avançado. É difícil definir um número exato. Segundo as estatísticas oficiais, quase 50% da população estadunidense está envolvida em tempo integral no trabalho assalariado. Mas a classe trabalhadora também inclui quem trabalha meio período, assim como os familiares dependentes. Não são só as pessoas que trabalham em uma linha de montagem e que não fizeram faculdade, que é como o termo é comumente usado no discurso político estadunidense. Friedrich Engels escreveu no Manifesto Comunista que o proletariado inclui todo aquele que não possui meios de produção e, por conseguinte, precisa vender sua força de trabalho em troca de um salário. O proletariado também inclui aqueles que dependem da venda da força de trabalho para sobreviver, mas não são capazes de fazê-lo atualmente, ou seja, os desempregados. Inclui pessoas de todas as profissões, todas as nacionalidades, gêneros e status legal. Mas não inclui os cães de guarda do capital (os policiais). E não inclui as pessoas que exploram o trabalho de outras, mesmo que continuem pobres.

Como marxistas, acreditamos que a classe trabalhadora é o centro do projeto da liberação humana. Marx se referia ao proletariado como uma “classe universal,” uma classe que não possui nada e só pode conquistar sua própria liberação através da liberação de todos. O proletariado é a única “classe consistentemente revolucionária” sob o capitalismo – a única força social com interesse material em terminar com toda forma de exploração e opressão. Isso não significa que o proletariado seja imune ao racismo, machismo, homofobia e outras formas de opressão. Pelo contrário, os trabalhadores são doutrinados pela ideologia burguesa a cada segundo de suas vidas, entretanto, só podem melhorar suas próprias condições quando as vidas de seus companheiros trabalhadores são melhoradas da mesma maneira. Os trabalhadores têm um interesse material em terminar com o racismo, o machismo e a homofobia, quer tenham consciência disso, quer não.

Um partido dos 99%?

Para transformar a sociedade, é preciso um programa operário que vise a destruição do Estado burguês e a expropriação dos meios de produção. Os trabalhadores terão de criar uma república socialista baseada na democracia dos conselhos, em que a produção seja sujeita a uma planificação democrática. Tais são os alicerces de uma sociedade sem opressão. Esta não desaparecerá automaticamente – o que exigirá uma luta constante tanto antes quanto depois da revolução – mas a revolução estabelecerá as bases desse processo.

É por isso que a ideia de um “partido dos 99%”, proposta por algumas figuras da esquerda estadunidense, é tão sem sentido. Um partido dos 99% seria incapaz de resolver qualquer uma das contradições centrais da sociedade burguesa. Tal partido seria incapaz de pôr fim aos baixos salários e à exploração, pois os pequenos proprietários – que claramente pertencem aos 99% - precisam nos explorar para lucrar. Tampouco seria capaz de pôr fim ao racismo, uma vez que os policiais – também parte dos 99% - dependem do racismo para fazerem seu “trabalho.”

O que precisamos é de um partido operário que lute pelos interesses da nossa classe, o que significa um partido dos 60% ou 70%. Esse não será um partido que organiza todos os assalariados. A classe trabalhadora é gigantesca – hoje, mais da metade da população mundial vende sua força de trabalho em troca de um salário, sem contar os dependentes e desempregados – e sofre todo tipo de divisão. Existem trabalhadores cuja consciência é extremamente atrasada e que apoiam o racismo e o machismo (e, assim, prejudicam seus próprios interesses de classe). Existem trabalhadores que sabem qual é o seu papel na história da sociedade humana e, portanto, lutam pela unidade de todos os trabalhadores.

Precisamos unir os trabalhadores mais conscientes, aqueles que podem dirigir nossa classe na batalha contra os capitalistas. Os marxistas nos referimos a esse setor como a vanguarda. Só esse setor mais avançado, unido em um partido, pode organizar a classe baseado nas lições dos últimos 200 anos da luta operária contra o capitalismo. Como escrevem Emilio Albamonte e Matías Maello:

para a classe operária o elemento essencial da maturação de seus interesses está determinado por sua experiência histórica acumulada e educação no próprio processo de luta de classes, uma continuidade que só pode ser sustentada por sua vanguarda organizada, já que sob as condições do capitalismo nunca, e ainda mais em momentos de retrocesso, pode ser patrimônio da classe de conjunto.

(Emilio Albamonte e Matías Maello: Nos limites da “restauração burguesa”)

Precisamos lutar confiantemente por nosso próprio programa, o programa da classe trabalhadora. Este programa tem muito a oferecer a todos os estratos oprimidos, à pequena burguesia, que é constantemente esmagada pela competição com a grande burguesia e, às vezes, atirada em uma pobreza maior que os próprios trabalhadores. Mas essas camadas intermediárias só podem se libertar organizando-se detrás do partido proletário.

Lutamos por um governo operário a fim de transformar a sociedade. Tal governo não governará sonete segundo os interesses dos trabalhadores, mas segundo os interesses de todo o povo explorado e oprimido, incluindo a maior parte das classes médias. Tal governo lutaria pelos direitos de todos os grupos oprimidos, mesmo que não pertençam diretamente à classe trabalhadora. Mesmo pequenos capitalistas que tenham a cor “errada” podem sofrer violência policial diariamente, discriminação, perseguições e deportações.

Nossa estratégia precisa basear-se no reconhecimento de que mais de 1% da população irá se opor à transição ao socialismo. Não serão apenas os grandes capitalistas, mas também seus bandos armados (a polícia), os pequenos capitalistas e muitos outros estratos intermediários. É por isso que precisamos de uma revolução em primeiro lugar – para nos livrarmos dos mecanismos do poder burguês. Quando um político socialdemocrata como Bernie Sanders oferece um programa contra a “classe bilionária”, subentende-se que ele supostamente poderia juntar pequenos e médios capitalistas contra os grandes. Essa é uma ilusão perigosa, pois os capitalistas reconhecerão seus interesses conjuntos como uma classe dominante tão logo sintam-se ameaçados.

Para vencer, precisamos de uma organização independente e confiança em nossas próprias forças de classe. Nós podemos oferecer novas vidas aos pequenos proprietários arrasados pela crise, e a qualquer policial com consciência, e trata-los como trabalhadores normais em um mundo operário – mas só se lutarmos por um partido operário revolucionário.

 
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