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25 DE OUTUBRO 1917
A arte da insurreição e o gênio de Trotsky em Outubro de 1917
André Barbieri
São Paulo | @AcierAndy
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Estava amanhecendo o dia 24 de outubro. Eu ia de andar em andar, para não ficar quieto em um lugar, para ver se tudo estava em ordem e para levantar a moral de quem o necessitasse. Pelos intermináveis corredores ainda envoltos em sombras [do Smolny], ouvia-se rolarem as metralhadoras arrastadas valentemente pelos soldados, com um estrépito alegre e buliçoso. Era o novo destacamento que havia chamado. Pelas portas se assomavam, com cara de terror, os poucos socialistas revolucionários e mencheviques que haviam permanecido no Smolny. Aquela música não prenunciava nada bom para seus ouvidos. Pouco a pouco, um atrás do outro, se apressaram a deixar o Smolny. Ficávamos como donos absolutos daquele edifício que se dispunha a plantar a bandeira bolchevique na capital e em todo o país”.

Assim iniciava Trotsky um dos capítulos de sua autobiografia, Minha Vida, dedicado a recordar as noites decisivas em Outubro que antecederam a tomada do poder pelo proletariado russo em Petrogrado, em 1917.

Este episódio, que desencadeou sob diversos pontos de vista o evento mais importante da história universal, dando nascimento ao primeiro Estado operário da história – continuando a tradição da Comuna de Paris de 1871 que resistiu em Paris durante dois meses – e que provaria a validez da teoria e da estratégia marxista, muitas vezes se perde na rotina do dia que passa. Deve, em verdade, ser lembrado como motivo de nossa paixão histórica e o sentido de existência daqueles que militamos diariamente para por fim à sociedade de exploração e opressão capitalista.

A insurreição de Outubro não surgiu como desenlace automático da luta de classes, nem como uma resposta espontânea dos trabalhadores russos à tirania da guerra e da fome. Foi preparada e dirigida minuciosamente em seus mais sólidos detalhes como movimento revolucionário das massas.

Uma vez conquistada, com os testes de aço da revolução e da contrarrevolução, a imensa maioria dos trabalhadores organizados nos sovietes – ou conselhos operários e de soldados, principalmente dos dois mais importantes centros industriais do país, Petrogrado e Moscou – para a idéia da tomada do poder da classe operária como única forma de resolver os problemas imediatos impostos pela história, a tarefa dos bolcheviques passava a ser “desencadear os elementos ofensivos da defesa, transformar a defesa em ataque” e combinar a conspiração como parte integrante da insurreição de massas.

A estratégia revolucionária conduz à conclusão do momento insurrecional como necessidade, como condição para desobstruir o desenvolvimento humano e de suas forças criadoras interrompido pela burguesia. Isso não quer dizer que seja automático encontrar o ponto em que se deva passar “das palavras aos fatos” e transformar a energia e a vontade revolucionária de operários e soldados, temperadas por anos, numa força ofensiva para destruir o Estado burguês. A teoria e a estratégia dão a solidez de granito para a tarefa; mas esta capacidade de percepção é uma arte. O homem – poderíamos chamar de artífice da revolução – que arquitetou o plano de Outubro foi Leon Trotsky.

Segundo as palavras do estudioso militar norteamericano Harold Walter Nelson, Trotsky aproveitou brilhantemente uma combinação favorável das circunstâncias (a ira das massas contra a guerra e contra o Governo Provisório de Kerensky que a mantinha, a debilidade militar deste governo, a segregação no Exército russo e a crescente disposição dos camponeses em por fim à guerra, a recém conquistada hegemonia dos bolcheviques nos sovietes operários) para diminuir a quase zero a possibilidade de fracasso da insurreição.

Esta obra-prima de um verdadeiro gênio militar, que criaria anos depois das ruínas do exército czarista derrotado na Primeira Guerra o poderoso Exército Vermelho, mostra a importância de levantar um marxismo com predominância da estratégia e orientado a fazer a revolução no século XXI. A “arte da insurreição” constitui um elemento fundamental para a fusão da teoria marxista com as novas gerações de trabalhadores e jovens que despertam depois da crise mundial.

A arte da insurreição em 1917

A grande lição da revolução russa é que a tomada do poder, a insurreição das massas exploradas e oprimidas, libera uma enorme quantidade de energia social que deve ser canalizada e conduzida pelos trilhos que levam ao triunfo da revolução.

Cabe destacar que Petrogrado era uma cidade ocidentalizada. Com pouco mais de 1 milhão de habitantes, uma quarta parte correspondia a trabalhadores assalariados, em sua grande maioria industrial metalúrgicos – o complexo metalúrgico de Putilov tinha entre 15 e 20 mil trabalhadores. Os bairros operários de Ovukhovsky, Putilovsky, Baltiisky e Trubotchnyi, além do famoso bairro de Viborg, evidenciavam uma genuína cidade capitalista moderna. De fato, já em 1911, 54% dos trabalhadores russos trabalham em fábricas com mais de 500 assalariados, enquanto as cifras correspondentes nos Estados Unidos eram de 31%.

A insurreição de Petrogrado, através da ocupação de todos os pontos estratégicos de comunicação e abastecimento da capital e a posterior tomada do Palácio de Inverno, constituiu a prova da necessidade de planificar com clarividência a ofensiva para conseguir um objetivo determinado. A audácia de Trotsky residiu em sua capacidade de aproveitar o Segundo Congresso dos Sovietes como antesala preparatória da insurreição. Como afirmou Isaac Deutscher, a sutileza e a perspicácia tática de Trotsky impedia que seus inimigos soubessem com certeza o que sucederia nos dias seguintes.

Ante o possível ataque alemão à cidade imperial, a 9 de outubro de 1917 se constituiu o Comitê Militar Revolucionário, sob a iniciativa de um jovem socialista revolucionário de esquerda, Lizimir. Este Comitê ficou sob as ordens de Trotsky. A função deste organismo foi organizar a guarnição que tomaria conta da capital, estabelecendo contatos com as tropas do Báltico, da fortaleza de Kronstadt e a marinha finlandesa; contabilizar os recursos humanos disponíveis e as munições; e elaborar um plano de defesa. Imediatamente gozou da autoridade de ser um organismo do Soviete de Petrogrado.

Deste modo, de 10 a 17 de outubro, Trotsky se encarregou de transformar a tarefa de defesa da cidade na insurreição proletária. Ante a notícia de que o Governo Provisório queria abandonar a cidade, o Comitê se pronunciou contrário à decisão do governo e declarou a obrigação das tropas estacionadas na capital de defender a cidade até as últimas conseqüências, exortando o Comitê Executivo a convocar o II Congresso dos Sovietes. Trotsky fez um chamado a rádio a todos os sovietes da Rússia para que enviassem delegados a Petrogrado. Se Kerensky era impotente para garantir a realização do Congresso, isso seria feito pelo Comitê Militar Revolucionário.

O Comitê conquistou a confiança das guarnições de Petrogrado, incluindo os reticentes soldados da Fortaleza de Pedro e Paulo, cárcere dos revolucionários durante décadas. Finalmente, o Soviete deu instruções para que as guarnições obedecessem exclusivamente as decisões do Comitê Militar. Os regimentos e as guardas vermelhas ficaram sob a direção indiscutível de Trotsky.

Nas vésperas da realização do II Congresso, a 23 de outubro o Comitê Militar colocou em marcha o plano de defesa da cidade. Ocuparam-se na madrugada as posições estratégicas da cidade, como a Central de Correios e Telégrafos. De todos os distritos da cidade se lançam destacamentos armados, batendo às portas ou entrando sem bater e ocupando militarmente os edifícios públicos. Em quase toda a parte os trabalhadores os esperam ansiosos.

Nas estações de trem, o Comitê Militar Revolucionário enviou comissários nomeados especialmente para vigiar a chegada e partida de trens, principalmente os que transportam soldados.

Enquanto os periódicos burgueses clamavam furiosamente pela violência, os saques e rios de sangue que correriam com a insurreição, os soldados, marinheiros e operários das guardas vermelhas, executando as ordens vindas do Smolny, sem disparar um tiro e sem derramamento de sangue, iam ocupando todos os prédios públicos.

Trotsky propagandeou e “legalizou” o armamento das guardas vermelhas e da guarnição de Petrogrado para defender a cidade de um possível ataque alemão e garantir a realização do II Congresso dos Sovietes, a 24 de outubro de 1917. Com isso, preparou as condições para transformar uma tática defensiva em uma manobra ofensiva (um rápido golpe fulminante ao que restava do aparato estatal burguês) o que lhe permitiu tomar o poder na capital imperial sem disparar um único tiro. Dito de outra maneira, a insurreição de Petrogrado constituiu a expressão máxima da combinação de manobras de posição (defesa) com a guerra de movimento (ataque). Isto fez com que Harold Nelson definisse o plano de Trotsky como “praticamente inexpugnável: por trás de uma defensiva tática, ele escondia uma ofensiva estratégica”.

Entre 24 e 25 de outubro as guardas vermelhas e a guarnição de Petrogrado tomaram a cidade. O único edifício que ainda não fora tomado era o Palácio de Inverno. Enquanto os delegados debatiam e tomavam decisões no II Congresso, o cruzeiro Aurora bombardeou o Palácio com balas de festim. A rendição das últimas sombras políticas da burguesia encasteladas no velho prédio estava garantida. Os bolcheviques contaram com 2/3 dos delegados no Congresso, que somados aos socialistas revolucionários de esquerda resultavam 75% da representação soviética.

A tomada do poder político estava consumada. Era o triunfo da revolução de Outubro. Seu maestro, Trotsky. Segundo Deutscher, em seu retorno da clandestinidade em Viborg, Lênin “reconheceu Trotsky, sem reservas, como um companheiro monumental numa ação também monumental”.

Uma contribuição chave para o marxismo na época imperialista

Uma das maiores contribuições de Trotsky ao marxismo foi ser o teórico (e prático) da insurreição proletária, ou seja, da tomada do poder político. Seus escritos enfatizaram como as posições conquistadas da classe operária devem servir ao combate que – dirigido por um partido revolucionário – concentre num ponto determinado a tensão de todas as forças para desferir um golpe mortal no Estado burguês. Trotsky analisou caso a caso distintos processos revolucionários e os momentos históricos de desagregação do poder burguês, definindo as situações precisas da articulação entre a preparação defensiva e a ofensiva da classe operária, para tomada do poder ou para conquistar novas posições preparatórias visando a batalha decisiva: a insurreição revolucionária de massas e a tomada do poder.

A não preparação e utilização das posições conquistadas para fortalecer a classe trabalhadora como sujeito político independente para a revolução é a base do fracasso de distintas correntes da esquerda que vislumbram posições na democracia burguesa como “fins em si mesmas”. Enquanto revolucionários, devemos pensar, pelo contrário, cada posição em função de sua utilidade para o combate e no fragor das lutas atuais, em meio à crise mundial, desenvolver a tarefa apaixonante de dotar os trabalhadores da ferramenta política que destruirá o capitalismo.

Como diz Trotsky, “O marxismo se considera como expressão consciente de um processo histórico inconsciente. Mas o processo ‘inconsciente’ em sentido histórico-filosófico só coincide com sua expressão consciente nos pontos culminantes, quando as massas, pelo impulso de suas forças elementares, arrebentam as comportas da rotina social e dão uma expressão vitoriosa às necessidades mais profundas da evolução histórica. A consciência teórica mais elevada que se tem de uma época, em um determinado momento, se funde com a ação direta das camadas mais profundas das massas oprimidas, afastadas de toda teoria. A fusão criadora do consciente com o inconsciente é o que se chama comumente inspiração. A revolução é um momento de impetuosa inspiração da história”.

 
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