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ASSÉDIO NA USP
Tricô e a luta das trabalhadoras
Marcello Pablito
Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.
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Em várias matérias já denunciamos a condição de trabalho nos restaurantes universitários da USP. Anos de sobrecarga de trabalho e assédio moral deixaram centenas de trabalhadores doentes, em maioria mulheres. Quase a metade dos trabalhadores dos bandejões tem algum tipo de restrição médica causada pelo ritmo alucinante de trabalho, os movimentos repetitivos e péssimas condições. Os que não adoeceram ainda, em um curto período tendem a adoecer.

Leia mais: 45% dos trabalhadores dos bandejões da USP estão doentes

Para garantir mais de 10 mil refeições diárias aos estudantes da universidade vale tudo. Sem contratações há anos, o quadro funcional só diminui e não há qualquer perspectiva de novas contratações, ao contrário estão terceirizando cada vez mais os bandejões. Para manter o serviço funcionando, as chefias se valem de todo tipo de assédio, perseguições e racismo. Além da dor física a depressão faz parte dessa dura rotina. Há relatos de trabalhadores que contam que as chefias chegam ao ponto de ficar perseguindo como uma sombra os trabalhadores dentro do bandejão chegando a ir no banheiro atrás dos funcionários e até a dar ordens enquanto eles fazem suas necessidades fisiológicas. Como argumento para proibir o tricô das trabalhadoras uma das chefes diz cinicamente que é para evitar esforços repetitivos quando sabem que muitas das trabalhadoras repetem milhares de vezes os mesmos movimentos não por causa do tricô mas pelo ritmo de trabalho exaustivo nos bandejões.

Saiba mais: 3 horas na pele de um trabalhador do bandejão

Agora as chefias do restaurante universitário da Física querem impedir que as trabalhadoras façam tricô e crochê no intervalo do seu recesso (intervalo na jornada de trabalho).

É um ataque aos mínimos espaços de respiro que os trabalhadores têm mas em especial as mulheres que são a maioria nos bandejões. Numa sociedade machista em que os trabalhos domésticos como a alimentação da família recaem sobre as mulheres não se trata de uma coincidência que na cozinha a maioria sejam mulheres e muitas negras. Não é coincidência também que este seja um tipo de trabalho que aprisiona os trabalhadores o dia inteiro no interior das salas cheias de louça, das salas de bandejas, refeitórios e outros lugares onde pelas normas sanitárias os trabalhadores tem o uso de celular limitado, assim como outras formas de contato com o mundo exterior. Tampouco é coincidência a quantidade de trabalhadores negros, empurrados pela necessidade aos trabalhos mais precários.
Em alguns bandejões como o da Física os trabalhadores não tem nenhum local de descanso digno. Os “bancos de descanso” se situam em meio aos latões de lixo reciclável e o local de descanso “oficial” foi construído generosamente pela patronal ao lado de um motor de aquecimento de água, cuja trilha sonora atormenta até mesmo os poucos minutos de descanso sob as caixas de papelão usadas como cama.

Há muitos anos as trabalhadoras tem como hábito o tricô e o crochê nos poucos intervalos. É a hora em que os corpos cansados descansam e produzem peças maravilhosas para aquecer suas famílias e amigos ou para dar mais vida um pouco de cor a esse mundo tão cinza. Um momento importante de confraternização no meio da caótica rotina. Sobre isso uma das trabalhadoras do bandejão e uma das “mestres” em tricô conta:

“Eles não falam porquê não podemos fazer nosso tricô. As poucas alegrias que temos nos intervalos, depois de uma rotina pesada querem tirar. É nosso tempo para relaxar, conversar, tricotar, onde trocamos dicas e técnicas e usamos nossa criatividade. Eles querem a gente de cabeça baixa a qualquer custo e tirar o que ainda sobra de humano na gente.”

O tricô e o crochê são técnicas milenares. O tricô remete ao Egito antigo e sua técnica é costumeiramente passada pelas mulheres, seja de mãe para filha, seja nessas rodas de mulheres. São também momentos de reflexão, onde entre um ponto de tricô e outro se fala da vida, da política do país, das dores depois do trabalho, da família e ás vezes onde se bolam a preparação das lutas.

Diversos estudos apontam a prática como auxiliar no combate à depressão e ansiedade. Ao produzir peças belíssimas com as próprias mãos deixam a dor por um momento de lado e dão um pouco mais de humanidade a um trabalhado extremamente alienante, repetitivo que embrutece os trabalhadores dentro de uma universidade onde se diz que é um lugar do livre pensamento. Livre pensamento para quem? Se até mesmo exercer uma simples atividade criativa incomoda tanto as chefias que sempre estão prontas a tentar colocar os trabalhadores no "seu devido lugar" tratando-os como burros de carga que não pensam e apenas mais um número que vai entrar nas estatísticas de atendidos pelo INSS. Não!! Por trás e dentro desses uniformes há uma vida inteira, amores, dores, risadas, há um cozinheiro que nas horas vagas lê obras de literatura, há uma auxiliar de cozinha que faz marmitas para moradores de rua com a sua família, há um professor de História frustrado com a situação da educação do país, há uma mãe feliz da vida por sua filha ter passado no vestibular de Veterinária da USP, há exímios mecânicos de automóveis ou um sambista que gosta de levar alegria em todos os lugares que toca, há a vida de mulheres guerreiras muito machucadas pelas feridas dessa sociedade miserável que tanto nos limita e oprime mas há também a fibra e a força de guerreiros que nascem das cinzas como uma Fênix para defender a beleza que ainda nos resta nessa vida.

Não são apenas cozinheiras e auxiliares de cozinha (com muito orgulho) são inúmeras personalidades criativas e não apenas uma peça nas engrenagens do sistema. A proibição do tricô mira na moral dos trabalhadores. Chefias assediadoras para impor mais sobrecarga não suportam nenhuma alegria no ambiente de trabalho. As chefias tentam se aproveitar da desmoralização com a derrota da greve do ano passado na USP e a aprovação da reforma trabalhista para avançar para arrancar até as últimas conquistas dos trabalhadores. Essa é uma pequena mostra de onde os patrões querem chegar com a aprovação da reforma trabalhista que pretende acabar com qualquer minuto de respiro dos trabalhadores como bem exemplificou o vice-presidente da FIESP Benjamin Steinbruch em uma entrevista disse que : “Não precisa uma hora do almoço […] Você vai nos Estados Unidos, você vê o cara almoçando, comendo o sanduíche com a mão esquerda, e operando a máquina com a direita. Tem 15 minutos para o almoço, entendeu? […] Por que a lei obriga que tenha que ter esse tempo?”.

Em seu livro, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra ao tratar de algumas greves derrotadas na Inglaterra, Engels deixa uma importante lição mesmo para os momentos de derrota nas lutas operárias: “É, pois, de se perguntar: por que os operários entram em greve, dada a evidente ineficácia de sua ação? Simplesmente porque devem protestar contra a redução do salário e mesmo contra a necessidade de uma tal redução; devem expressar claramente que, como homens, não podem adaptar-se às circunstâncias, mas, ao contrário, as circunstâncias devem adaptar-se a eles, os homens - porque sua omissão equivaleria à aceitação dessas condições de vida, ao reconhecimento do direito de a burguesia explorá-los durante os períodos de prosperidade e deixá-los morrer de fome nos períodos desfavoráveis. Os operários protestam porque ainda não perderam os sentimentos humanos (...). Ao contrário, o protesto concreto dos ingleses tem sua eficácia: mantém em certos limites a avidez da burguesia e estimula a oposição dos operários contra a onipotência social e política da classe proprietária, ao mesmo tempo em que leva os trabalhadores a compreender que, para destruir o poder da burguesia, é preciso algo mais que associações operárias e greves.”

Para não permitir tamanho absurdo, algumas trabalhadoras do bandejão da Física chamaram um “Tricotaço” contra o assédio moral nesta quarta-feira, às 14h 15 no bandejão da Física e transformar inofensivas agulhas de crochê e tricô em armas de protesto para impor um limite ao assédio moral das chefias. Basta de assédio moral e de adoecer trabalhando! Defender cada uma das nossas conquistas porque nossas vidas valem mais do que esse sistema que tenta arrancar até nossos mais mínimos espaços de respiro.

Saiba mais: Assédio moral – um combate também na USP

 
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