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ENTREVISTA
Christian Dunker: “as homossexualidades não podem ser curadas porque não são transtornos”
Fernando Pardal

O Esquerda Diário conversou com Christian Dunker, psicanalista e professor Catedrático de Psicologia da Universidade de São Paulo, sobre a recente decisão judicial que autoriza psicólogos a oferecem "terapias de reversão" ou "cura" para a homossexualidade de seus pacientes.

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1. Recentemente a justiça federal aceitou parcialmente a liminar movida por Rozângela Justino, entre outros, para que psicólogos possam utilizar a terapia de “reversão sexual” (na decisão do juiz é permitida a “(re)orientação sexual (…) sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do CFP (Conselho Federal de Psicologia)”. Você poderia nos dizer o que pensa do assunto, do ponto de vista ético e profissional? Qual o papel do psicólogo frente à sexualidade e à orientação sexual de seus pacientes?

A liminar é uma barbárie jurídica apoiada em uma inépcia científica e um desconhecimento primário do que vem a ser a clínica psicológica. A prática psicoterápica não é apenas uma técnica mas uma ética, isso significa que não respondemos ao circuito do atendimento de demandas, mas justamente analisamos a sua pertinência e procedência. No caso da sexualidade, as aspirações de adequação e conformidade com ideais sociais são causa de constante sofrimento, não apenas entre homossexuais, e nossa função é permitir que o sujeito se separe desta alienação e da sua própria tendência a se demitir de seu desejo em prol da conformidade e da adequação. Por isso não faz nenhum sentido tomar nossos pacientes como consumidores aos quais se deve entregar o que bem nos pedirem.

A reversão, conversão, cura ou reorientação sexual tem tantos nomes porque ela se redescreve assim que é recusada pelos sistemas de saúde e ético dos países que desde a década de 1970 reconhecem que a tentativa de curar homossexuais não é apenas inócua, mas ela piora o sofrimento das pessoas alimentando promessas que incrementam seu sofrimento e o sentimento de inadequeação em relação a si mesmas.

2. Os promotores da liminar alegam que a resolução do CFP seria uma forma de censura, pois impediria os psicólogos de desenvolver “estudos, atendimentos e pesquisas científicas acerca dos comportamentos ou práticas homoeróticas, constituindo-se, assim, em um ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do país”. Qual sua opinião a respeito desse argumento?

Isso é algo entre a tolice e o cinismo. Há muita pesquisa sendo feita sobre orientação sexual, nenhuma delas produziu qualquer resultado favorável ou indicativo para a reorientação sexual. Os autores da ação não são pesquisadores. Mesmos se fossem, há dispositivos de pesquisa em psicoterapia que impedem que ela se combine com a “oferta de serviços à população interessada”, como figura na liminar do referido magistrado.

Lesivo ao patrimônio cultural do país significa exatamente o quê? Que alguma forma de expressão da sexualidade está sendo coibida ou interditada? Lesivo ao patrimônio cultural é fechar exposições ou impedir a exibição de telas ou de filmes baseada na ideia equivocada de que a imagem ou a representação são incitações ao ato. Na verdade a narrativa de que a sexualidade pode ser induzida por meio de imagens ou representações é o grande temor daqueles que lidam mal com suas próprias fantasias e, portanto, querem controlar as dos outros, por exemplo de seus filhos, de suas mulheres, de todos os que não sabem como se deve gozar corretamente. É esta narrativa, que é uma fantasia de massa, que não tem nada de científico, que está por trás desta liminar e da hipótese de que o CRP está exercendo uma censura.

Censura tem que ver com limitação moral de expressão, a restrição de práticas de reorientação sexual tem que ver com o impedimento de práticas clínicas que causam mal às pessoas. Por acaso deveríamos, em nome da liberdade de expressão científica (se é que isso existe), autorizar as pesquisas de Joseph Mengele, o médico nazista que injetava concreto nas pernas de crianças judias para ver se elas ficavam mais resistentes? A história da reversão é pavorosa, injeção de nauseantes, exibição de imagens aversivas, condicionamentos aversivos, extração de órgãos, castração química (como a que nos tirou um dos maiores gênios da matemática Alan Turing). O que esta história prova é apenas a existência de pessoas que sofrem com uma perturbação de suas próprias fantasias por parte da sexualidade alheia. Isso não deixa juízes, religiosos, políticos e psicólogos de fora.

3. Outro argumento muito utilizado é que esse profissionais atuariam na “reorientação sexual” apenas quando isso fosse apresentado como demanda pelos seus próprios pacientes. Nesse caso, seria ético que o psicólogo conduzisse uma terapia no sentido de uma “mudança na orientação sexual” de seus pacientes?

Desde Hipócrates está claro que não fazemos mal aos nosso pacientes, nem que eles nos peçam. Aliás, o erro mais básico e principiante é imaginar que estamos na psicoterapia para atender às demandas, seja de amor, seja de transformação da realidade de nossos pacientes, apenas e tão somente porque elas são demandas. Demandas são analisadas antes de tudo. Elas são figuras compósitas de nossas ilusões, identificações e alienações. É uma loucura incauta levar para dentro da psicoterapia a lógica do consumidor cliente. Quer alguém que te diga o que você quer ouvir? Arrume um amigo. Não é apenas anti-ético, é iatrogênico, ou seja, um tipo de orientação clínica que causa mal às pessoas, explorando seus auto-preconceitos, suas demandas de conformidade e seu legítimo desejo de que o sofrimento diminua. Por isso não se deve prometer cura de nenhum tipo em nenhum caso. Não porque a cura não aconteça para muitos sintomas, e lembremos que as homossexualidades não podem ser curadas porque não são transtornos, doenças ou perversões, mas porque a promessa cria efeitos patógenos ela mesma.

4. O que você pensa sobre ter sido a justiça a deferir esse tipo de atendimento, mesmo quando há décadas o CFP apresenta um posicionamento contrário e inclusive desde 1999 apresenta uma resolução que impede os profissionais da área de atuar com tratamentos desse tipo? É cabível que a justiça interceda em uma questão deliberada pelos próprios profissionais e que fere as demandas dos movimentos organizados de setores LGBT?

É uma intromissão jurídica incauta e desinformada como estamos vendo acontecer em boa parte do país nas mais diversas áreas. O exemplo vem de cima. O caos gerado pelo golpe parlamentar ofende o sistema estratificado de respeito e de autoridade. As leis se tornam instrumentos disponíveis para qualquer manobra, e a morosidade do processo, a publicidade obtida, o efeito político que uma liminar como esta causa em um momento no qual tramitam dois projetos de lei visando habilitar a cura gay, é desastroso.

No fundo temos um processo análogo às internações compulsórias na Cracolândia em São Paulo, ou seja, a cobertura jurídica necessária para a criação de um novo negócio, aqui coordenado pelas Comunidades Terapêuticas e lá pela Bancada Evangélica ao qual pertencem os dois projetos de lei. O clima geral de obscurantismo e de pós-verdade faz parecer que todas as opiniões se equivalem e a necessidade de novos negócios e de atender ao consumidor se autojustifica. Daí a retórica invertida de que é o CFP que está fazendo censura, na mesma semana na qual a Queer museum é fechada precocemente em Porto Alegre.

5. Qual sua opinião a respeito da luta da população trans pela despatologização de sua identidade de gênero e sua retirada do Código Internacional de Doenças?

Essa é uma situação diferente. As pessoas trangênero não sentem uma inadequação de suas identidades, mas dos seus corpos às suas identidades. Isso não deve ser considerado uma patologia, mas isso traz uma dificuldade adicional. Como autorizar cirurgias de redesignação de gênero, tratamentos hormonais, sem diagnóstico? Ocorre que quando temos um crivo do patológico isso cria efeitos iatrogênicos semelhantes aos que descrevi com relação às homossexualidades logo acima. Também aqui se aplica o problema da demanda e sua escuta, bem como levar o sujeito a se “adequar” especificamente ao seu desejo. Na prática muitas cirurgias são adiadas desnecessariamente, muitos quadros complexos acabam sofrendo muito mais do que seria preciso apenas e tão somente porque não conseguimos entender a experiência trans em seus próprios termos. Apesar disso penso que a cirurgia muito precoce é um risco que vem sendo subavaliado.

6. Em sua visão, como essa decisão judicial está relacionada ao contexto político mais amplo do país? O golpe institucional influencia de alguma forma? E em relação aos casos de censura recentes, como na exposição Queermuseu em Porto Alegre, no fechamento e apreensão do quadro “Pedofilia” na exposição “Cadafalso” em Campo Grande e na censura da peça “O Evangelho segundo Jesus Rainha do Céu” em Jundiaí?

O problema não é mais o golpe, mas o golpe dentro do golpe, o golpe miúdo, feito pelo pequeno poder contra aqueles que já estão oprimidos ou que vivem em estado de vulnerabilidade. A liminar do referido juiz provavelmente será cassada, mas o efeito desejado já terá sido produzido, a visibilidade da causa, a incerteza jurídica, o oportunismo para um novo projeto de lei.

7. O Brasil é um país que tem níveis recordes de violência contra a população LGBT, e a expectativa de vida da população trans é de apenas 35 anos. O que é necessário avançar no país para acabar com essa barbárie cotidiana? Em sua opinião, há algum papel que a psicologia possa cumprir em relação a essa questão?

Muitas coisas precisam ser feitas de modo urgente. A violência epidêmica é o principal efeito da suspensão do funcionamento regular da lei. A psicologia e a psicanálise tem um papel decisivo em um momento como este. Ela precisa desmembrar o discurso moral e a instrumentalização jurídica que parecem ter tomado conta de nossas autoridades simbólicas. O sofrimento é uma nova forma de capital posta em consideração pelo neoliberalismo. Na tradição liberal o sofrimento atrapalhava, ele tirava o trabalhador de seu posto, criava interrupções na produção e mantinha os trabalhadores tempo demais na ativa (este foi o objetivo da introdução da previdência por Bismark na Alemanha). Hoje, o sofrimento é parte do aumento da produtividade. Concorrência entre os grupos e departamentos, trabalho intermitente, uso e exploração do medo para aumentar a adesão ao trabalho. Temos uma verdadeira epidemia de transtornos mentais ligados à emergência desta nova consideração do lugar social do sofrimento. E a política não está isenta neste processo.

8. Por fim, gostaríamos que você colocasse como vê a relação entre os valores morais e sociais (machismo, heteronormatividade) que motivam esse tipo de tentativa de "curar" as orientações/identidades não heterossexuais e cisgênero com a sociedade capitalista. Há alguma relação entre essas estruturas valorativas/psíquicas e a organização econômica social?

O repúdio à feminilidade e a recusa de nossa constituição bissexual, já descrita por Freud, são sistematicamente empregadas para aumentar a relação de negação do sujeito em relação a si mesmo na formação do laço social. Ou seja, frequentemente somos interpelados a fazer laço social à base de uma aliança contra o gozo do outro, contra o fato de que ele goza mais, que ele goza diferente de mim, que roubou uma pare de meu gozo que é a causa e razão de minha infelicidade. Desde que a felicidade tornou-se um fator político as formas contra dominantes de sexualidade tornaram-se problemática em um novo sentido. Não é que elas ofendem nosso padrão de identificação vertical ao mestre, mas ela nos levam a nos perguntar em nome de qual satisfação estamos realmente nos sacrificando. E esta pergunta deve ser silenciada. A necessidade de identidade ou de adequação concêntrica entre gênero, orientação de fantasia e modalidade de gozo, chamada também de cis é um exemplo de como o nosso processo e produção de indivíduos apresenta alternativas subversivas das quais não queremos saber, no sentido neurótico e capitalista do termo.

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